segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A universidade brasileira sem reforma e o seu atraso renovado


       por Henrique Júdice Magalhães [*] 

       1 
      A América Latina, em geral, e a Argentina, em particular, comemoram, em
       2018, o centenário da rebelião estudantil que, com epicentro na
       Universidade de Córdoba, levou à  reforma universitária naquele país e
      abalou o cenário acadêmico do continente.
       Os estudantes cordobeses padeciam, em 1918, o domínio de sua universidade
      pela Corda Frates, que manipulava a designação de dirigentes e professores
      no interesse pessoal de seus membros e na conveniência ideológica do
      obscurantismo clerical. A esse problema particular, deram soluções
      universais: admissão de professores por concurso com participação
      discente; liberdade para qualquer pessoa dar cursos em sua área de
      conhecimento; representação paritária de professores, estudantes e
       egressos nas deliberações internas; ensino baseado na crítica; interação
      com o extramuros. Conquistas que mudaram as universidades argentinas e de
      outras nações onde o movimento teve eco (México, Peru, Cuba) e se fazem,
      ainda hoje, ausentes no Brasil.
       Porém, o mais importante efeito da rebelião dividia seus participantes e
      só veio a se concretizar plena e oficialmente em 1953: o fim do
      vestibular.

       2 
      De início, o acesso à educação superior dependia – lá e aqui – de um exame
      de suficiência: entravam todos os que atingissem uma nota previamente
      definida. Mas a falta de transparência sobre conteúdos e critérios tolhia
      o acesso das classes não privilegiadas.
       Nos anos 20, quando as universidades argentinas, sob o impulso
      democratizante de 18, se abrem aos setores sociais remediados, o Estado
      oligárquico brasileiro autoriza suas escolas superiores (universidade, só
      havia a atual UFRJ) a limitar vagas. Nos 50, quando isso se torna um
      problema social no Brasil, a Argentina extingue o vestibular e fixa como
      único requisito de acesso ao ensino superior o diploma secundário.

       3 
      "Fomos aprovados, queremos estudar" era a palavra de ordem de um dos
       pontos altos do movimento estudantil brasileiro: a tomada da Faculdade de
       Filosofia, Ciências e Letras da USP (1968). Pouco antes (1961-64), uma
       das reformas de base reivindicadas com a simpatia do governo  João
      Goulart era a universitária.
       O contínuo crescimento do número de jovens que obtinham a nota de
       aprovação no vestibular, mas não as poucas vagas (os ditos "excedentes"),
      tornara a democratização do acesso ao curso superior uma bandeira
      estudantil com forte respaldo social.
       Duas contrarreformas a frustraram, consolidando e aprofundando o
      afastamento entre a universidade pública e o povo e sujeitando o ensino
      superior brasileiro a uma mistura única no mundo entre clientelismo e
       acumulação de capital. Uma foi promovida pela ditadura de 1964; a outra,
      pelo PT. Graças a elas, só temos a "comemorar", hoje, a renovação dos
      vícios de um sistema universitário que reflete e realimenta os desta
      sociedade.

       4 
      Uma contrarreforma dá ao problema gerador da reivindicação de reforma uma
      resposta capaz de preservar os interesses que esta atingiria. Modifica
      estruturas para que sigam atendendo, com mais eficácia, aos mesmos fins.
      Tal se deu aqui nos anos 60/70 com o acesso das classes médias ao ensino
      superior e nos 2000/2010 com o das classes populares.

       5 
      A ditadura de 64 e as agências de inteligência dos EUA sabiam do potencial
      explosivo da questão dos excedentes e que não a contornariam só com
      repressão nem podiam depender de uma estrutura universitária incapaz de
      formar a quantidade de profissionais necessária a uma economia urbana em
      expansão e ao próprio Estado.
       Mas temiam abrir a universidade pública às massas quando os estudantes
      organizados dentro dela ou pela reivindicação de nela entrar compunham,
      junto aos operários que reerguiam a fronte em Contagem, Osasco e Cabo de
      Santo Agostinho, a vanguarda política do povo brasileiro (em 1969, na
      Argentina, a aliança operário-estudantil enterrou, com o Cordobazo, outra
      ditadura).

       6 
      Ao mesmo tempo, criaram-se novas universidades estatais, sobretudo no
      interior; ampliaram-se vagas nas já existentes, com novos cursos; e
      abriram-se cursos superiores nas escolas técnicas federais, também em
       expansão. O desvirtuamento dessas ações (positivas em princípio) pela
      concepção ideológica congênita às novas instituições, sobre as quais o
       dispositivo burocrático do poder central e as oligarquias locais exerciam
      um controle bem maior que sobre as preexistentes, era o problema menor,
      embora grave.
       Muito pior foi o gordo subsídio ao ensino superior privado, que absorveu
       muito mais matrículas que o estatal. Com isso, escoaram-se milhões de
      jovens para escolas sem organização discente, reduzindo-se a base social
      do movimento estudantil e a pressão sobre o Estado. E azeitaram-se as
      relações da facção que o geria com os donos delas (igrejas, sobretudo a
      católica; esquemas políticos regionais; e meia dúzia de capitalistas
      típicos).
       À questão social da escassez de vagas, ofereceram-se penosas soluções
      individuais: obter bolsas também pré-limitadas, encarando colegas,
      sobretudo os da mesma origem social, como concorrentes; endividar-se; usar
      o salário para pagar mensalidades, etc.
       Não é acidental que se tenha dado a essas escolas, para ministrar uma
      formação em geral restrita, dinheiro capaz de custear número maior de
      vagas nas públicas. A formação dos quadros dirigentes e funcionários mais
      graduados do Estado e das empresas manteve-se em poucas instituições,
      cabendo às demais formar mão-de-obra em ambiente despolitizado e devolver
      aos artífices dessa política parcela do dinheiro que eles fazem jorrar
      para elas.

       7 
      O tópico 6 descreve também a ação do PT em seu ciclo de gerenciamento do
      Estado (2003-16), que se completa com financeirização e formação de
      monopólios no sistema privado e reserva de cotas para estratos sociais não
       privilegiados.

       8 
      Em 12/04/2004, na  Folha de São Paulo,  Marta Salomon e Luciana
      Constantino mostraram ser possível duplicar as vagas das universidades
      federais com os impostos e contribuições que as particulares
      "filantrópicas" não pagam.
       Em 16/05, no mesmo jornal, o então ministro da Educação, Tarso Genro, e
      seu então adjunto e logo sucessor,  Fernando Haddad (FH-2), responderam
      que a ideia de que o ensino privado seja mantido por quem o usa, e não por
      toda a população via Estado, é neoliberal e elevaria mensalidades. Em
      defesa do subsídio às "instituições educacionais de assistência social",
      base do  ProUni , alegaram que "a desoneração tributária do pão não
      favorece o padeiro, mas quem tem fome". (Em 2013, quando caía a carga
      fiscal das empresas de ônibus e subiam as passagens, Tarso, então
      governador do RS, e FH-2, prefeito de São Paulo e associado para tal fim
      ao então governador Geraldo Alckmin, responderam via PM [Polícia Militar]
      com balas de borracha, cassetetes e gás lacrimogêneo aos jovens
      trabalhadores e estudantes que questionavam a aparente incoerência).

       9 
      Nos anos 50, o embate sobre entrega de recursos públicos a escolas
       privadas opusera Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira a Carlos Lacerda. O PT
       optou por Lacerda. E fez pior.
       O dispositivo da lei de educação de 1961 que permitiu isso obrigava os
      destinatários dessas verbas a ter gratuitamente alunos pobres "no valor
      correspondente ao recebido". A de 1971 dispôs que a subvenção se daria
      quando custasse menos que abrir escolas públicas. E, no auge ideológico do
      privatismo (1998), condicionou-se a imunidade fiscal das  pilantrópicas 
      [1] à reversão de no mínimo 20% de seu faturamento total à gratuidade e
      limitou-se a isenção previdenciária ao valor das mensalidades de que
      abrissem mão.
       Já o ProUni só requer delas a reserva de 10% das vagas a bolsistas
      integrais e ainda estende as isenções de imposto de renda [2] , PIS e
      contribuições sociais sobre o faturamento e o lucro líquido às
      assumidamente mercantis, caso ofereçam em bolsas (mesmo parciais) 8,5% do
      que faturam com mensalidades. Se Lacerda, Médici e Fernando Henrique
      Cardoso (FH-1) foram verdadeiras mães para o ensino privado, FH-2 foi uma
      avó.
       De 2004 a 2015, o Estado injetou no ensino superior privado mais de R$ 80
      mil milhões – uns 10% via renúncia fiscal do ProUni e 90%, por meio do 
      Fies . O Brasil passou de 3,9 milhões de matrículas universitárias (2003)
      a 8 milhões (2015); a participação das instituições públicas caiu de 29
      para 25%, o inverso da Argentina, onde tinham 77% em 2014.

       10 
      O ProUni e o Fies levaram a coisas como "a compra da Somos Educação
      (editoras Ática, Scipione, Atual, Bemvirá e Saraiva, PH, Anglo, Maxi,
      Colégio Motivo, Plurall, Sigma, Ético, Geo, Red Ballon, SER, Chave do
      Saber, Alfacon, Integrado) pela  Kroton (Anhanguera, Unime, Unopar,
      Uniderp, Unic, Pitágoras, LFG e Fama). O maior grupo de ensino superior do
      Brasil (Kroton) acaba de comprar o maior de educação básica. O grupo
      resultante também tem negócios em editoras e cursinhos para concursos. O
      valor da operação foi de R$ 4,6 mil milhões. Os maiores acionistas da
      Kroton são os fundos  BlackRock [3] , JP Morgan Asset Management, Capital
       World, Invesco e Coronation" – escreveu Gustavo Gindre. Em 2017, a Kroton
      tentara comprar a Estácio de Sá, numa das oito operações que o Conselho
      Administrativo de Defesa Econômica (Cade) vetou entre 4,5 mil analisadas
      desde 2011. Interlocutores privilegiados da socialdemocracia alemã que
      tantos revolucionários matou (Rosa Luxemburgo, por exemplo) em 1918-19 e
      1974-77, Tarso e FH-2 promoveram a demonstração empírica da tese do melhor
      economista que ela teve: Rudolf Hilferding, que, antes de renegar o
      marxismo, concluiu que a dependência do crédito leva à fusão entre o
      capital bancário e o industrial (ou, no caso, de serviços) sob controle
       dos operadores financeiros e à monopolização total de cada ramo de
      atividade.
       Com um crescimento de 22.130% no lucro da Kroton de 2010 a 2015, dois de
      seus sócios, Walfrido Mares Guia e Antonio Carbonari Netto foram os maior
       doadores do caixa 1 das campanhas, respectivamente, de FH-2 à prefeitura
       de São Paulo, em 2016, e de Maria do Rosário – casada com um capanga que
      Tarso levou ao MEC e serviria também a FH-2, Eliezer Pacheco – à Câmara
      federal, em 2010 (em 2014, o doador foi a própria Kroton). Já a
      Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) contratou o chefe de gabinete de
      Tarso e adjunto de FH-2 na secretaria executiva do MEC, Jairo Jorge, assim
      que ele deixou o cargo, pagando-lhe, em valores de hoje, R$ 20 mil mensais
      e R$ 800 mil por "consultoria", como revelou Naira Hofmeister no  Extra
      Classe  de 12/2009.
       Aos estudantes, o Fies proporciona um diploma e uma dívida – ou só a
      dívida, caso não concluam o curso.

       11 
      Na cidadela do capitalismo (os EUA), é considerado um problema grave que
       os jovens se formem devendo dezenas ou centenas de milhares de dólares e
       precisem aceitar empregos que, de outro modo, recusariam. Aqui, farsantes
      como FH-2 dizem que isso é uma conquista.
       Quem faz isso possível? Uma direita tão ou mais canalha, para quem o mal
      que o PT fez foi dar vida mansa às vítimas desse arranjo e que defende
      agora, pela boca de Geraldo Alckmin e Gustavo Franco, a cobrança de
      mensalidades no ensino público; e uma "esquerda" incapaz de exigir uma
      reforma que a Argentina fez entre 100 e 65 anos atrás.
       O livre ingresso (e, em sua falta, o exame de suficiência) não são pautas
      maximalistas. Não garantem sequer possibilidade plena de concluir o curso
      ante as barreiras que o capitalismo impõe até em seus países centrais (a
      alta evasão subsiste na França). Nem tocam no problema central da
      universidade brasileira, que não é de onde seus alunos vêm, mas para onde
      vão, a quem servem após formados. Muito menos na iniquidade de ser aqui o
       ensino superior caminho quase único da ascensão social e esta a única via
      para melhorar de vida, como se os filhos de operários e camponeses não
      tivessem direito a viver melhor em sua classe de origem, mas só saindo
      dela – algo que deveria ser escolha guiada pela vocação, não imperativo
      material ou de status.
       São apenas o mínimo a esperar de um reformismo digno desse nome, até
      porque a Constituição preconiza o exame de suficiência ao assegurar o
      acesso ao ensino superior (graduação e pós) "segundo a capacidade de cada
       um" (art. 208, V), e não segundo o número de alunos que a burocracia
      universitária estatal queira ter.

       12 
      Nenhuma outra instituição do Estado brasileiro decide quantas pessoas
      atenderá. É indefensável que a universidade se interponha entre a demanda
      social por profissionais e o anseio das pessoas por formação. Na
      Argentina, apenas a ditadura genocida de 1976-83 fez isso: nem Onganía e
      Menem foram além de permitir os exames de suficiência que o reformismo de
      Cristina Fernández de Kirchner tornaria a abolir em 2015.
       A história da restrição do acesso ao ensino superior público brasileiro é
      também a da recusa da burocracia docente a sair da guilda e viver na
      república. Ela se mantém coesa pela escassez de seus membros e pelo férreo
      controle sobre a seleção deles.
       O que areja a universidade argentina e sustenta as conquistas da reforma
      de 18 é a amplitude do acesso. Ela torna necessário um número muito maior
      de professores, tirando de pessoas e grupos o monopólio de disciplinas,
      reduzindo seu poder sobre os estudantes e inviabilizando o grau de tirania
      que professores mais antigos e titulados exercem aqui sobre colegas mais
      jovens e alunos de pós-graduação – nível no qual tampouco vigora, lá, o
      sistema de número fechado, embora haja seleção por suficiência.
       As próprias perspectivas profissionais dos pós-graduandos – que, em
      geral, aspiram a um cargo docente – são afetadas pela perversa pirâmide em
      que se reestruturou, nos governos petistas, o ensino superior brasileiro.
      Hoje, o doutorado é um requisito inelidível para as pouquíssimas vagas
      docentes das universidades federais e um obstáculo intransponível a um
      emprego nas particulares incubadas pelo Fies/ProUni: só em 2011, a Kroton
      demitiu 1.500 doutores e mestres para reduzir custos e aumentar o lucro de
      seus acionistas.

       13 
      Só à luz da iniquidade do regime de número fechado se pode avaliar a
      política de cotas e a conduta das frações liberais e petistas do movimento
      negro, que defendem um sistema em que entram  alguns  negros (por certo,
      mais que antes) na universidade pública, e não outro em que entrariam
       todos  os negros – e brancos, orientais, indígenas e mestiços – que o
      desejassem ou, ao menos, que atingissem a nota mínima.
       O mesmo se aplica às cotas para alunos de escolas públicas e com renda
      [2] familiar até 1,5 salário mínimo  per capita.  Elas mudaram o perfil do
      alunado de alguns cursos (outros já tinham esse setor social como seu
      público), mas a distribuição mais justa de vagas escassas teve por
      premissa a renúncia a reverter a injustiça maior, que é a própria
      escassez.
       NR
       [1] Pilantrópica: amálgama de pilantra+filantrópica
       [2] No Brasil chamam de renda a qualquer tipo de rendimento.
       [3] BlackRoch: Trata-se do mesmo fundo abutre que em Portugal comprou o
      Novo Banco (ex-BES) por preço negativo. 
      [*] Jornalista.
       O original encontra-se em  anovademocracia.com.br/... 
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/universidade_07set18.html#asterisco
8/9/2018

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