sábado, 15 de setembro de 2018

Um país fracturado


 Mauro Luis Iasi

A situação no Brasil depois do golpe que colocou Temer na presidência não pode
ser vista como «uma “onda conservadora”, ou um acidente inexplicável no curso
normal de uma democratização interrompida, ou ainda uma momentânea espécie de
“psicose de massas”. Estamos diante de uma manifestação compreensível e até
certo ponto esperada de uma sociedade fortemente cindida em interesses
inconciliáveis de classe que tem sido mantida e reproduzida por artifícios
políticos e ideológicos que encontraram seu ponto de esgarçamento.»


“Uma coisa é um país, outra uma cicatriz.”
Affonso Romano de Sant’Anna

Somos um país fraturado. Um país fraturado é mais que um país dividido, é um
país no qual a divisão tornou-se algo explosivo. Não é um mero trauma, é uma
fratura exposta. Os bálsamos e unguentos tradicionais não vão curar o osso
partido, a pele rompida, os tendões e músculos destroçados.
Sempre fomos um país divido. Dividido pela desigualdade estruturante das
formações sociais, incluídas a força na ordem mercantil mundial e depois no modo
de produção capitalista. Dividido entre colonizadores e povos indígenas, entre
escravocratas e escravos, entre oligarcas e povo, entre latifundiários e
agricultores, entre burgueses e proletários. No entanto, essa desigualdade nem
sempre se manifesta como fratura. Em tempos ditos normais, a desigualdade
encontra formas de subordinação à ordem, seja ela colonial, escravocrata,
republicana ou democrática, de maneira que as tensões inevitáveis entre aqueles
que exploram e dominam e aqueles que sofrem a dominação podem se apresentar como
formas “civilizadas” de uma ordem instituída, até mesmo logrando a submissão
passiva ou ativa de amplos segmentos das camadas oprimidas.
Por vezes, no entanto, essa ordem é abalada pela explosão das contradições que
vão se acumulando no tecido de uma sociabilidade fundada na desigualdade e na
exploração. Isso acontece com muito mais frequência do que gostariam os
artífices do discurso sobre nossa “vocação pacífica e ordeira”. São muitos os
exemplos, desde a resistência indígena na Confederação dos Tamoios (1554-1567),
passando pelo Quilombo dos Palmares (1580-1710), a Confederação do Equador
(1824), a Revolta dos Malês (1835), as Rebeliões Regenciais (1831-1840), a
guerra de Canudos (1896-1897) as lutas operárias desde o final do século XIX, a
Greve Geral de 1917 e a insurreição de 1919, o Movimento Tenentista de 1922, a
Revolução Paulista de 1924, a Coluna Prestes (1925-1927), o movimento de 1930
que levou Getúlio Vargas ao poder, a insurreição da ANL e do PCB de 1935, a
revolta de Trombas e Formoso em Goiás (1950-1957), a resistência armada contra o
Golpe de 1964, apenas para citar alguns exemplos numa longa lista histórica de
revoltas e resistências às quais devemos somar a cotidiana e, muitas vezes,
invisível resistência contra a violência, a fome, a exploração e a opressão
diária que empreendem os oprimidos.
A natureza estrutural da desigualdade, que encontra suas raízes no passado
colonial e escravista, mas que que se consolida com o desenvolvimento do
capitalismo dependente e a submissão ao imperialismo, acaba por determinar
limites evidentes ao desenvolvimento da ordem democrática que se vê condenada à
uma democracia restrita para poucos, resultando no aspecto autocrático do Estado
brasileiro, nos termos em que define Florestan Fernandes. Uma democracia para
poucos setores privilegiados, resultantes da fusão oligárquica-burguesa, que tem
por principal problema equacionar a exclusão das amplas maiorias da ordem que as
explora e domina.
O mito segundo o qual o desenvolvimento da economia capitalista resultaria na
gradual diminuição das desigualdades se demonstrou uma falácia, seja pela prova
prática do chamado “milagre brasileiro” durante a ditadura, seja pela recente e
traumática experiência de conciliação de classes do ciclo petista. O que ficou
comprovado é que a alternância de ciclos de crescimento e recessão acabam por
revelar, ao final, aumento significativos das desigualdades econômicas e sociais
entre as classes.
Nos momentos de euforia se produz fantasias ideológicas, tais como a
“brasilianidade” da época getulista, o mito do “Brasil potência” na Ditadura, ou
o discurso de que o Brasil poderia ser um “país de todos” no engodo da
conciliação de classes. No entanto, na crise do capital, inevitável no processo
de valorização do valor para quem o conhece, a ideologia se desmascara e a
contradição latente emerge na forma de conflito e, em certas condições, de
fratura. É nestes momentos que a outra face de nosso “caráter” se revela.
Vivemos hoje um desses momentos e é necessário compreendê-lo. Estamos
convencidos de que não se trata de uma “onda conservadora”, ou um acidente
inexplicável no curso normal de uma democratização interrompida, ou ainda uma
momentânea espécie de “psicose de massas”. Estamos diante de uma manifestação
compreensível e até certo ponto esperada de uma sociedade fortemente cindida em
interesses inconciliáveis de classe que tem sido mantida e reproduzida por
artifícios políticos e ideológicos que encontraram seu ponto de esgarçamento.
Resumidamente, podemos afirmar que vivemos em uma sociedade na qual os setores
dominantes (primeiro oligárquicos e aristocráticos; depois burgueses dependentes
e aliados à ordem imperialista, suspeitamos que sem que se percam aspectos
oligárquicos e aristocráticos) que constituem não mais que algo em torno de 3%
da população economicamente ativa, concentram a maior parte da riqueza
socialmente produzida. Os dados de 2014 indicavam que os 10% mais ricos
concentravam cerca de 72,4% da riqueza nacional (em 1990 concentravam 53%), em
2015, 1% dos mais ricos concentravam 28% da riqueza. Como um exemplo, as seis
pessoas mais ricas do Brasil em 2017 (segundo dados da Oxfam), Jorge Paulo
Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB
Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio
Pereira de Moraes (Grupo Votorantim), juntas têm mais dinheiro que metade da
população brasileira.
Alguns estudiosos estão preferindo utilizar termos como “plutocracia” para
designar uma ordem na qual uma pequena maioria impõe seus interesses, e me
parece cada vez mais adequado. Em um quadro como este, as formas políticas têm
que ser limitadas à deformações autocráticas, ainda que, por momentos, se
expressem em aparências democráticas, resultando naquilo que o mesmo Florestan
denominou de “democracia de cooptação”. Nesta situação, a ideologia
evidentemente ganha centralidade, uma vez que a ordem precisa do consentimento
de parte daqueles que de fato nada têm a ganhar com ela, tal consentimento só
pode ser logrado com poderosas doses de encobrimento, naturalização,
justificativas, inversões que possam apresentar os estreitos interesses de uma
insignificante minoria como se fossem interesses gerais.
O momento da crise é também o momento em que os mecanismos ideológicos mostram
sua insuficiência para acobertar o real. As ideias que correspondiam a uma certa
ordem social, perdem essa correspondência, tornando-se, nas palavras de Marx e
Engels, “inautênticas” (A ideologia alemã, p. 283). No entanto, seguem os mesmos
autores, paradoxalmente essas ideias “quanto mais desmentidas pela vida […] tão
mais resolutamente são afirmadas, tanto mais hipócritas, moralistas e santa se
torna”.
A falência dos mecanismos políticos, jurídicos, policiais e ideológicos, abre
espaço para a violência. Mas analisemos mais detidamente essa violência. Na
ordem burguesa (seja ela abertamente autocrática ou formalmente democrática), a
violência sempre se faz presente – ela é uma condição inevitável, inclusive para
a formação do chamado “consenso”. A violência de que aqui se trata é a reação de
um segmento minoritário e privilegiado numa ordem intrinsicamente injusta e
violenta que vê o risco da massa de oprimidos levantar-se contra eles.
Este é outro dos aspectos constitutivos de nossa formação social: as camadas e
classes dominantes se antecipam para evitar que os fechamentos de ciclos possam
levar a explosões que coloquem em risco a continuidade de seu domínio. Foi assim
na abolição da escravidão, cercadas de garantias legais e policiais, para que os
ex-escravizados não resolvessem reagir a séculos de arbítrio, agressões e
exploração a que foram submetidos. Foi assim na chamada transição lenta, gradual
e segura transição da ditadura à democratização. Um dos mecanismos desse
fenômeno, que já foi chamado de “mudança conservadora”, é o fato que as classes
dominantes manipulam estereótipos para produzir em torno delas a universalidade
vazia que possa ocupar o lugar daquela que ela um dia por ventura tenha tido
alguma substancialidade. Aí se inscrevem os mitos da “nação”, do
“desenvolvimento”, do “risco do comunismo”, da “guerra contra as drogas e o
crime”, a “defesa da família e da moral”, o combate à “corrupção” entre outros.
É por isso que as classes dominantes são tão violentas e irracionais: medo. E
elas têm motivos para temer. O aspecto aparentemente irracional é adesão de
segmentos dos explorados na defesa desses mitos e reforçando estereótipos que em
última instância se voltam contra eles próprios. Em outra oportunidade
refletimos sobre isso ao remeter aos estudos de Reich e a psicologia de massas
do fascismo. Agora nos interessa um outro aspecto.
Algumas pessoas têm buscado entender a radicalização da fratura em nosso país
pela emergência de um suposto “discurso de ódio”. Para provocar, nossa reflexão
começaria dizendo que não há “discurso de ódio”… o que existe é ódio que se
expressa, entre outras coisas, no discurso. Essa distinção aparentemente sutil
nos parece importante porque, sem ela, podemos cair no equívoco de acreditar que
é o “discurso” que gera o ódio, o que nos levaria à ingênua posição de alertar
as pessoas para ter cuidado com que falam porque o que for dito pode nos
conduzir à violência e à barbárie. Caso estejamos certos em nossas premissas, o
discurso de ódio expresso por representantes das camadas privilegiadas é a
expressão do receio desses segmentos de que as condições que permitem a
continuidade de seus privilégios possam ser abaladas pelo despertar das massas
cuja exploração é condição para tanto. Trata-se de um “ódio de classe”, o que
não impede que se expresse também como racismo, homofobia, machismo e misoginia,
fundamentalismo religioso ou outra forma qualquer de irracionalismo, mas seu
fundamento é o ódio de classe. Há uma clara diferença no tratamento da
desigualdade e da violência contra negros, mulheres, gays e lésbicas, quando se
soma ao estigma do preconceito a condição de classe, ainda que seja sempre
racismo, machismo, homofobia etc. É inegável que para os pobres e a classe
trabalhadora o preconceito assume a forma de risco de morte.
Identificamos o fato de que o trauma da desigualdade e seu fundamento na
exploração, alcançou o status de fratura, na medida que mesmo as manifestações
mais elementares que poderiam indicar um caminho saudável de fusão em torno de
uma universalidade um pouco mais substantiva, são o meio pelo qual o ódio de
classe se manifesta. Vale elencar alguns poucos, mas representativos, exemplos.
Uma jovem negra e lésbica é assinada com tiros na cabeça, uma liderança indígena
é abatida a tiros, um ônibus em campanha é atingido por tiros, um museu pega
fogo e destrói um patrimônio inestimável. Imediatamente, o tecido fraturado da
sociedade dá espaço para o brutal ataque e desqualificação das vítimas, de forma
violenta, mentirosa, mesquinha. Vejam, não é um expediente desconhecido. Quando
um jovem é assassinado na favela é preciso transformá-lo em traficante, quando
um pedreiro é torturado até a morte e seu corpo desaparece é preciso levantar
dúvidas sobre seu comportamento, quando uma mãe de família é baleada e seu corpo
arrastado por uma viatura, é necessário contextualizar essa cena num tiroteio
contra o crime organizado.
Agora, a vereadora assassinada ainda tem que ser alvejada por calunias contra
sua pessoa, a universidade pública incinerada novamente, agora por notícias
falsas que a responsabilizam pela agressão da PEC 241 que congela gastos por 20
anos, o ex-presidente tem que ser preso pela suposta e não provada propriedade
de um apartamento na praia, a presidente deposta tem que ser agredida e
desqualificada, um professor de uma universidade pública, com hábito de ler
poemas, tem que ser processado como um perigoso terrorista que pode eliminar
todos os conservadores a golpe de sonetos, pedagogos têm que ser torturados até
confessar que leram Paulo Freire e que O pequeno príncipe é parte do “kit gay”
distribuído nas escolas. Parece irracional, porque é. Mas é uma irracionalidade
compreensível.
A única maneira de uma ordem desumana, depredadora, profundamente desigual e
cruel conseguir forjar um consenso em torno dos segmentos privilegiados é criar
algo que aparentemente atinja todos e responsabilizar os segmentos que você quer
isolar. Um exemplo clássico é o da corrupção. Uma vez que tal prática delapida o
patrimônio público e acaba desviando os recursos da educação, da saúde e de
outros setores, basta colar o estigma no segmento que se deseja combater e
pronto.
A operação costuma funcionar como um evento traumático que signifique muito para
muita gente. Manipula-se um sentimento de insegurança; uma morte, um
assassinato, que possa gerar identificação imediata. Vários são os exemplos de
episódios que antecederam aventuras violentas e desastrosas: o famoso incêndio
de 1933 no Reichstag, cuja culpa foi atribuída a um pedreiro desempregado que
havia sido membro do Partido Comunista, contribuindo de forma decisiva para a
consolidação do domínio nazista na Alemanha; o atentado contra Carlos Lacerda,
na Rua Tonelero, em 1954, que acabou por isolar o presidente Getúlio Vargas e o
levar ao suicídio; o assassinato do Arquiduque de Sarajevo, em 1914, estopim da
Primeira Guerra Mundial; o conhecido “plano Cohen”, forjado por Getúlio Vargas e
atribuído aos comunistas para justificar o golpe de 1937, entre muitos outros
exemplos.
 É evidente que nem toda tentativa é assim tão sofisticada (tenho muita pena dos
historiadores do futuro), como a delirante denúncia de que os perigosos
marxistas do Foro de São Paulo (poucas iniciativas foram tão reformistas e pouco
marxistas como o Foro de São Paulo) têm um plano secreto para implantar na
América Latina uma federação de repúblicas socialistas. No entanto, a lógica é a
mesma: encontrar o inimigo, estigmatizá-lo, depositar a culpa da crise sobre
seus ombros e arrastar o irracionalismo até o ponto em que parte das massas
sirvam à manipulação e a prestem-se ao papel de defesa de uma ordem que as
oprime e despreza contra aqueles que tentam defender seus reais interesses.
Assim se destrói a saúde pública e se culpa os que defendem o SUS. Assim se
sucateia a universidade pública culpando aqueles que trabalham em sua defesa.
Assim se mata nas favelas, culpando as que próprias pessoas que são obrigadas a
viverem lá. Assim se destrói todo um país culpabilizando aqueles que tentam
salvá-lo. As margens do rio continuam seu trabalho de opressão e já se prepara o
discurso que culpabilizará a força das águas que estão prestes a transbordar.
O problema é o que fazer com fraturas expostas. As classes dominantes estão
jogando um jogo muito perigoso, mas que jogam bem e têm recursos para tanto.
Acreditam, como em outros momentos da história, que podem utilizar de seus
extratos mais radicalizados da extrema direita, eliminar seus adversários e
voltar com reconciliadores da vida nacional. Nem sempre dá certo, como provam os
casos do nazi-fascismo na Europa, a ditadura no Brasil e o Trump nos EUA. No
enterro da democracia, coitada tão frágil, todos os presentes chorarão
copiosamente, inclusive, como vemos sempre nos filmes e series policiais, o
assassino. Uma coisa sabemos: o bálsamo das eleições não ungirá o vencedor com a
legitimidade esperada e o Brasil sairá do pleito ainda mais fraturado do que
entrou.
Nuvens pesadas se assomam no horizonte e diálogos francos e chá de camomila
ajudam tanto como a criança que tenta juntar os cacos do vaso que despedaçou.
***
 Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador
do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro
do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser
da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2018/09/10/um-pais-fraturado/

In
RESISTIR.INFO
https://www.odiario.info/um-pais-fracturado/
15/9/2018

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