terça-feira, 8 de janeiro de 2019

A Justiça do Trabalho, as vacas e os brejos.



por Wilson Ramos Filho, Xixo

Tendo sido advogado trabalhista por mais de três décadas, até me aposentar há 5
anos e por ser professor de Direito do Trabalho e Sindical, muitos me procuraram
quando Bolsonaro reiterou a ameaça de extinção da Justiça do Trabalho,
pedindo-me entrevistas ou para que firmasse moções. A todos expliquei que a
questão é complexa e que a defesa da instituição, na contemporaneidade, não pode
ser automática e incondicional e que a ameaça vinha desde a época da campanha.

Inicialmente, de que Justiça do Trabalho estamos falando? A jurisdição
trabalhista passou por diversas fases, desde a inicial, integrante do Poder
Executivo, nos anos 30, passando pelo seu deslocamento ao Poder Judiciário em
1946, até nossos dias. Em todas elas a existência deste ramo incumbido da
solução estatal de conflitos individuais e coletivos decorrente das relações de
trabalho esteve vinculado a fatores muito concretos: ao nível de conflitividade
social, à regulação estatal do trabalho prestado por conta alheia, à maior ou
menor consciência democrática dos integrantes dessa instituição, entre outros.

Em cada uma dessas fases o papel institucional da JT sempre foi a “pacificação
social”, servindo como “amortecedor na luta de classes” no campo das relações
coletivas, para fazer valer os direitos fixados em lei em casos de violações de
direitos individuais, embora sem grande efetividade, vez que – no máximo –
condenava as empresas a pagar o que deviam, muitos anos depois, e com juros
merrecas, raramente atuando preventivamente para impedir a delinquência patronal
com pesadas multas.

No tempo em que frequentei a JT, defendendo exclusivamente direitos de
trabalhadores, até 2014, vivenciei sua “redemocratização”. Se no início dos anos
oitenta suas funções eram basicamente repressivas e restritivas em relação às
reivindicações coletivas e, digamos, parcimoniosa na repressão aos
descumprimentos da legislação, pouco a pouco, a instituição foi sofrendo
metamorfoses, mercê das alterações conjunturais vivenciadas pela sociedade
brasileira. Embora sempre tenha sido funcional ao capitalismo, a JT passou
gradativamente a admitir a existência dos conflitos, dando-lhes um tratamento,
se não adequado, mais democrático nos julgamentos de dissídios coletivos e
individuais.

Com a Constituição de 1988 (e, logo a seguir, com a extinção dos juízes
classistas, uma excrescência corporativa) os direitos aos trabalhadores foram
ampliados. Mas nem por isso foram mais efetivos. Embora a parcela da
magistratura mais conservadora continuasse a “interpretar a Constituição
conforme a CLT”, a JT nos anos noventa recrutou magistrados com maior
sensibilidade social e melhor formação jurídica e humanista. Os procedimentos se
sofisticaram e foi sendo construída uma jurisprudência que, em verdade, por
intermédio de Enunciados e Súmulas, dotou o Direito do Trabalho de relevantes
possibilidades de atuação redistributiva dos poderes entre as classes sociais
fundamentais.

No inicio do século atual a JT foi equipada com suntuosos prédios, dezenas de
varas do trabalho foram criadas, diversos concursos públicos foram realizados
para provimentos de novos cargos e magistrados e de servidores. À aquela altura
4 em cada 5 magistrados haviam ingressado na carreira já sob os auspícios na
Constituição atual, período em que as ideias neoliberais estavam na moda. Com a
chegada ao poder de governos de centro-esquerda assistiu-se a uma ainda mais
significativa sofisticação institucional do Judiciário Trabalhista. Políticas de
pleno emprego diminuíram os temores no ajuizamento de ações e as demandas
judiciais se ampliaram, implicando a necessidade de novos concursos para juízes
e para funcionários, mudando sensivelmente o perfil dos que nela passaram a
atuar.

Esses cargos públicos foram ocupados por uma parcela da burguesia bem-nascida
que podia se dedicar a “estudar para concursos” sem a necessidade de “ganhar a
vida”. Tinha-na ganha desde o berço. Não ingressava no mercado de trabalho,
frequentava dispendiosos “cursinhos preparatórios” nos intervalos entre as
baladas e as horas de treinamento em academias de ginástica. E de tanto se
prepararem, muitos acabaram sendo aprovados, superando concorrentes que,
prestando os mesmos concursos, dispunham de escasso tempo para seus estudos, por
terem que trabalhar durante 44 horas semanais ou mais. Alguns desses filhos da
burguesia passaram em concursos para servidores no Judiciário, nas polícias, no
Ministério Público. Outros, mais “focados” (para utilizar a palavra-chave dos
coachs que os preparam aos certames) ou com melhores condições prévias (domínio
de língua estrangeira, oriundos de intercâmbio no exterior ou de famílias
burguesas mais intelectualizadas) foram aprovados em concursos para Juízes,
Delegados, Promotores e Procuradores, entre outras funções socialmente
valorizadas. Todos e cada um desses concursos eram muito concorridos, centenas
de candidatos por vaga. Objetivamente esses jovens “fizeram por merecer”.
Independentemente de suas desiguais condições de partida (infância bem
alimentada, frequentando os melhores colégios e cursinhos preparatórios,
bancados pelos familiares), com seus esforços individuais, terminaram por ocupar
as desejadas vagas no serviço público. Daí a considerar a “meritocracia” uma
maneira de existir, pouco tardou. Do sucesso nas provas à soberba, menos ainda.
A esse estrato social denomino “Direita Concursada”.

Também na JT surgiu um novo mandarinato, uma nova casta de funcionários do
Estado a quem compete, legitimamente, dizer o que o Direito diz, e agora não
mais vinculados às vontades da lei ou do legislador (esses corruptos!) como na
França revolucionária, aos precedentes dos tribunais ou à jurisprudência
assentada (esses antiquados, alguns até garantistas!), como nos países
anglo-saxões, ou às refinadas técnicas de origem teutônica de interpretação
racional dos complexos normativos balizados pela Constituição. O direito do
trabalho já não era mais como outrora, quando a segurança jurídica e a
previsibilidade eram valores estruturantes da judicatura. Legitimados pelos seus
méritos individuais, comprovados pela aprovação em dificílimos concursos, os
filhos da burguesia empossados na JT a partir da virada do século dizem o que o
Direito diz, às suas imagens e semelhança. Nem todos os concursados são assim,
evidentemente, e as exceções são todas dignas de aplausos, reconhecimento e
respeito (embora tenham sido aprovados em concursos públicos nos últimos 15
anos, não integram a Direita Concursada). A maioria dos Juízes e dos servidores
da JT recrutados neste período, contudo, não destoa da caricatura acima
esboçada. Uma nova maneira de aplicar o Direito do Trabalho passou a ser
desenvolvida, tolerada e até incorporada pelas instâncias superiores compostas
por magistrados recrutados no período anterior. De modo coevo desenvolveram-se
nas demais jurisdições as técnicas de lawfare que têm no ex-juiz Sérgio Moro seu
mais midiático protagonista. Como no texto de Thomas Bernhard, as instituições
que deveriam defender a JT atiraram-se, qual vacas, contra o comboio veloz,
sempre nos trilhos.

Sobrevieram o Golpe de Estado de 2016 e, como consequência deste, a
mal-denominada “reforma trabalhista”, uma verdadeira desconstrução e
reconstrução da regulação incidente sobre o trabalho prestado em condições de
subordinação. A parcela da Direita Concursada que atua na JT a ela não resistiu.
Boa parte dela inclusive a apoiou. Desde então assistiu-se a um decréscimo
inaudito no número de ajuizamento de ações trabalhistas. Os dados são
impressionantes. Em muitas varas do trabalho os dados revelam que em 2018
ingressaram apenas uma quinta parte das reclamatórias ajuizadas nos anos
anteriores. Sem as suas tradicionais formas de custeio, suprimidas pela reforma
trabalhista, os sindicatos se viram enfraquecidos. Sem as políticas públicas
redistributivas dos governos de centro-esquerda o desemprego aumentou e a renda
dos trabalhadores despencou. A conflitividade das relações sociais sob o
capitalismo brasileiro, que já não era aguda, entrou em estado de profunda e
estável latência sob o governo golpista. Haveria eleições presidenciais e as
maldades dos golpistas seriam desfeitas, vaticinava-se. Sobreveio o golpe dentro
do golpe e o candidato favorito segundo todas as pesquisas eleitorais foi
impedido de concorrer, sequestrado como preso político em Curitiba, pelo
Judiciário.

A consequência foi a eleição de Bolsonaro, no bojo de uma articulação de cinco
facções da Direita que, logo nos primeiros dias anunciou o desejo de extinguir a
Justiça do Trabalho.

Não se trata de algo inesperado. O golpe de 2016 ocorreu para que fosse possível
a transferência de renda e de poder das classes que vendem a força de trabalho
para quem delas se apropria. A reforma trabalhista aprovada sem discussões e sem
consultas sociais é apena uma das evidências da afirmação acima. Os advogados
trabalhistas, sindicatos, servidores e magistrados da JT não foram, portanto,
surpreendidos com o anúncio de sua iminente extinção.

Resta saber se ainda se justifica socialmente a existência desse ramo
especializado da Jurisdição na atual conjuntura brasileira.

Antecipando a resposta, é óbvio que sempre será necessário que o Estado
solucione as controvérsias entre as classes sociais com interesses e projetos de
sociedade antagônicos. Enquanto houver descumprimento da lei e dos direitos
fundamentais, sob condições capitalistas, haverá a necessidade de um
“amortecedor entre as classes sociais”, até para que se minimizem os efeitos da
explosividade social ampliada pela precarização do trabalho e da regulação sobre
ele incidente. A eleição de um presidente da república direitista não altera
essa situação.

O novo governo, apoiado pela maioria da população e com sólida maioria
parlamentar com perfil ideológico semelhante ao seu, pode aprovar o que quiser.
Inclusive a extinção da JT. A dificuldade está em articular a defesa de sua
manutenção. A mídia tradicional, um dos principais componentes do Golpe e da
vitória eleitoral de Bolsonaro, há muito tempo reverbera o discurso ultraliberal
que, por intermédio de mitos, insulta e deprecia o Direito e a Justiça do
Trabalho. A maioria dos magistrados e servidores da JT não se opôs ao Golpe e à
reforma trabalhista, e, pelo que se sabe por relatos de magistrados íntegros,
votou em Bolsonaro. E não se trata, repita-se, de um grupo social desinformado.
O golpe teve seu início por provocação da OAB e as Associações de Advogados
Trabalhistas não se opuseram frontalmente à reforma trabalhista ao argumento de
que também representam advogados patronais que apoiavam a desconstrução do
Direito do Trabalho. A maioria dos advogados trabalhistas votou em Bolsonaro. Os
sindicatos estão desestruturados e deverão sofrer severos ataques por parte dos
governos da direita. O custo social do golpe de 2016 e da quebra da
institucionalidade democrática está ficando cada vez mais evidente e já não há
tantas pessoas dispostas a defender o que havia.

Alguns mencionam a baixa efetividade dos direitos dos trabalhadores,
identificado pelo enorme número de ações trabalhistas e a leniência da JT para
com seus grandes violadores. Grande parte da população foi convencida pelas
igrejas, pela mídia e pelas classes dominantes de que sem direitos para os
trabalhadores a vida será melhor. Outros, compreensivelmente ressentidos, não
controlam seus sarcasmos e sugerem aos magistrados e servidores da JT que “façam
arminha com as mãos”, vistam suas camisetas da CBF e “batam panelas” em suas
varandas. Há ainda os que supõem economia nos gastos públicos imaginando que,
extinta a JT, os cargos de magistrados (com auxílio-moradia ressuscitado e
demais penduricalhos) e de servidores também serão extintos. Ouvem-se aqui e ali
argumentos de que, se não existem mais direitos aos trabalhadores, depois da
“reforma”, não faria mais sentido existir um ramo especializado do Judiciário
para solucionar conflitos trabalhistas. Segundo alguns desembargadores amigos,
parte significativa da Direita Concursada que se agigantou na JT valora
positivamente a sua eventual “fusão” com a Justiça Federal, identificados com a
possibilidade de “transformar o Brasil” pela utilização da lawfare, inspirados
em Moro e na Lava-Jato, que desde sempre apoiaram. Outra parte, juntamente com
os juízes e servidores que nutrem apreço pelo Direito do Trabalho, ensaia alguma
resistência corporativa. Advogados trabalhistas, com pouco trabalho desde a
reforma, já estão convertendo suas advocacias para outros ramos do direito e dão
como admissível a extinção, cedo ou tarde, da JT até por falta de demandas. E
neste pântano de certezas na inevitabilidade, em que vicejam abjetas criaturas,
formam-se novos brejeiros consensos, quase todos favoráveis às pretensões do
novo governo.

A caixa de Pandora aberta em 2013 por longos anos afetará a realidade nacional.
As maiores dificuldades residem, porém, em conceber a resistência à maneira de
existir eleitoralmente sancionada pela maioria da população brasileira e em
convencer a esquerda a defender a JT hegemonizada pela Direita Concursada. Este
setor não cogita fazer alianças com os setores democráticos que forem além da
mera defesa da manutenção da Justiça especializada. E a sociedade civil
organizada não vê motivos suficientes para se expor à repressão estatal para
defender a Justiça do Trabalho como se encontra. Na especializada ou na Federal
ordinária o Estado haverá de se fazer presente. Talvez se mobilizasse para
defender a JT, autônoma, se seus integrantes, fazendo autocrítica, se
dispusessem a atuar positivamente para a repressão da delinquência patronal, mas
isso parece impensável considerando-se a sua atual composição.  Sem a esquerda,
demonizada pelo governo e por significativa parcela dos que dependem da JT para
sobreviver, os esboços de resistência não parecem fadados a prosperar. As
associações de magistrados e os sindicatos dos servidores também não conseguem
convencer suas bases de representação a assumirem alguns compromissos com a
esquerda e com os movimentos sociais e sindicais e se limitam a defender seus
privilégios corporativos. Algumas dessas guildas, com soberba, esperam apoio
automático e incondicional da esquerda sem quaisquer contrapartidas, o que
também não favorece o entendimento. E com isso marcham as vacas, decididas, em
direção ao brejo, com corda e tudo.

Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor, professor de direito do trabalho e sindical
(UFPR/UFRJ), preside o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.


In
GGN
https://jornalggn.com.br/noticia/a-justica-do-trabalho-as-vacas-e-os-brejos-por-wilson-ramos-filho-xixo
8/1/2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário