quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"O projeto de conciliação de classes do PT faliu"


*por Ricardo Antunes [*]

entrevistado por Gabriel Brito [**]


Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República e seus primeiros dias
de mandato deixam claro que sua agenda política é uma radicalização
daquela executada por Temer. Na primeira entrevista de 2019, o Correio
da Cidadania conversou com o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, que
acaba de publicar /O privilégio da servidão – o novo proletariado de
serviços na era digital / (Editora Boitempo), e faz uma dura análise do
atual estágio político e ideológico sobre os setores que deveriam fazer
o contraponto ao projeto de uma direita de evidentes traços autoritários
e excludentes.
Na conversa, Antunes aponta para o caminho de destruição total do mundo
do trabalho ofertado pelo novo governo, o que mal foi disfarçado em sua
campanha eleitoral. E constata que apesar da forte votação o PT já não
tem condições de liderar as lutas sociais no Brasil. "O partido terá de
abdicar de qualquer hegemonismo nas esquerdas. Poderá ser um partido de
centro-esquerda parlamentar, capaz de votar contra projetos que ataquem
direitos do mundo do trabalho e setores vulneráveis da população. Mas
nem com isso devemos ter ilusões. Que ninguém espere que o parlamento
seja a barreira contra a tragédia anunciada de Bolsonaro".
Tal como aponta em seu livro, Antunes afirma reiteradamente as novas
facetas dos movimentos que se opõem ao capitalismo e suas políticas
econômicas, reorganizadas em escala global. "Precisamos de organização
social e política autônoma, de base e classe, formada com espírito
anti-capitalista, coisa que o PT no poder ajudou a obliterar. As
esquerdas sociais precisam jogar sua energia na combinação das lutas de
resistência em todos os espaços possíveis com a busca de um projeto
autônomo de emancipação social e política. O calendário das oposições
não pode mais ser o calendário das eleições".
Sobre este reordenamento mundial, o sociólogo explica: "estamos num
período de tripé devastador: hegemonia profundamente destrutiva do
capital financeiro, uma pragmática neoliberal que não tem mais nenhum
limite e uma reestruturação produtiva do capital que por sinal é
permanente. O mundo informacional-digital sob comando do capital
financeiro sabe que não pode eliminar o trabalho definitivamente. Mas
sabe que pode depauperá-lo e só remunerar quando um trabalho for
realizado, sem descanso, férias, fim de semana, nada. Por isso chamo
tais trabalhadores e trabalhadoras de novos proletários da era digital".
No entanto, é enfático em afirmar que tal modelo de capitalismo
inevitavelmente produzirá uma grande massa de rebelados, dado o
rebaixamento das condições de vida e enorme concentração de renda que
garantirá a seus donos.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
*Correio da Cidadania: O que esperar do governo de Jair Bolsonaro e seu
perfil de extrema-direita, refletido, para além da histriônica figura
presidencial, na equipe de trabalho? O que esperar para o chão social
brasileiro em 2019? *
*Ricardo Antunes: * O que pode ser dito de imediato é que entramos num
tempo de completa imprevisibilidade. Sabemos que Bolsonaro surfa num
momento de ascensão da extrema-direita. Não falamos da direita
neoliberal tradicional, dominante em especial nos países de capitalismo
avançado de forma quase inquestionável, com suas variantes neoliberal
pura ou social-liberal, como no fundo são os socialistas europeus.
O Bolsonaro surfa nesta onda, que, à diferença do neoliberalismo, tem
uma construção menos globalista e mais nacional. O Trump é fundador
deste projeto. Mas uma coisa é ter um projeto de reposição dos EUA no
mundo global, outra coisa é o papel do Brasil. As diferenças são
fundantes: um é o centro, o império do capitalismo, o outro é um país da
periferia, importante, mas um país que depende do comércio com a China,
os EUA, a Europa, a Argentina. Isso torna tal governo imprevisível.
Politicamente, parece não haver dúvida de que será extremamente
conservador, protofascista e que em seu ideário podemos caracterizar
como profundamente antipopular, antissocial, anticlasse trabalhadora.
Bolsonaro deixou claro que vai avançar na informalidade do mundo do
trabalho. Seu projeto de carteira de trabalho verde amarela é
ultraortodoxo no sentido neoliberal.
Portanto, para o cotidiano das pessoas só podemos esperar o pior
possível. Mas ele deixou isso claro em sua campanha eleitoral, anunciou
o desmonte completo da classe trabalhadora, coisa que Temer em seus dois
anos já fez amplamente, com a Reforma Trabalhista, a lei da
terceirização total e a permissão da terceirização ampla e quase
irrestrita no setor público.
*Correio da Cidadania: O que esperar dessa combinação de liberalismo
econômico extremado e um governo de traços protofascistas? *
*Ricardo Antunes: * O governo, para além de seu "mito", já mostra em
seus primeiros passos ser eivado de tensões e contradições em seu
interior. Traz uma política ortodoxa capaz de fazer a Margaret Thatcher
revirar-se em seu túmulo. De um lado traz uma liderança que surfou em
cima de uma onda ultraconservadora e de um enorme desencanto da
população com a falência do projeto de conciliação de classes do PT.
Teve um "líder" que soube se utilizar das campanhas anticorrupção para
converter o PT no inimigo central do país como se este fosse o criador
da corrupção e que participou de apenas um debate televisivo, logo no
começo da campanha. E mesmo quando estava em condições de aparecer nos
debates não o fez, fazendo sua vacuidade política não aflorar com a
intensidade que já aflora, como na sua incapacidade de indicar alguma
equação para questões de economia, saúde, educação...
O vazio do seu ideário é compensado pelo ódio às esquerdas, aos
movimentos populares, aos LGBTs, aos indígenas, às mulheres, aos
negros... O elemento complicador é a cunha militar muito forte dentro do
governo. O vice, ao que parece, foi uma imposição das forças armadas, um
sinal de ser preciso alguém de confiança para dar comedimento e mesmo um
contraponto ao tom intempestivo do "líder" vitorioso nas urnas.
É o neoliberalismo levado ao limite, com mais privatização, mais
concentração de renda [rendimento, NR], mais enriquecimento das
burguesias, mais empobrecimento das classes trabalhadoras, mais
informalidade do trabalho, coisa que Bolsonaro insiste em defender...
Dessa forma, a combinação colocada pela pergunta apenas nos faz antever
a multiplicação das possibilidades e tons do desastre econômico, social
e político.
*Correio da Cidadania: Já falamos em outras entrevistas sobre a
dificuldade de recolocar o PT como grande liderança das lutas sociais e
da classe trabalhadora depois de seus governos e opções políticas e
econômicas. Mas também se trata da maior força de oposição, partido que
mais elegeu deputados. Como você imagina a volta do PT à oposição, com
todo seu desgaste entre setores populares e também nas alas
progressistas da sociedade? *
*Ricardo Antunes: * O projeto de conciliação de classes do PT faliu. A
medida do Bolsonaro de fechar o Ministério do Trabalho é mais do que
emblemática. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930 por Getúlio
para ser um organismo a serviço da conciliação de classe. Ao
extingui-lo, Bolsonaro mostra que não vem fazer a conciliação de
classes, mas dar continuidade à contrarrevolução preventiva iniciada por
Temer, que agora entra em período mais crítico, com a radicalização da
Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência que visa jogar a
população pobre na imprevidência.
O PT recuperou certo fôlego por conta do desmonte ultraliberal do
governo Temer. O partido saiu do governo Dilma sem força para fazer
sequer uma greve de um dia por conta do impeachment ou contra a prisão
de seu principal líder, Lula. Mesmo assim, se fortaleceu na reta final
da eleição, entre outras coisas porque a população tem sua
sensibilidade. É muito evidente: o governo do PT foi em seu conjunto
desalentador para a classe trabalhadora, mas o governo Temer foi
devastador. Assim, o PT ainda ganhou um voto de confiança de muita
gente. Até figuras como Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot declararam voto
em Haddad, um amplo leque de tendências o fizeram, abstraindo o fato de
o candidato ser do PT, diante do fato de no outro lado estar o inimigo
maior, com cheiro de fascismo.
Mas as eleições já foram. Como fica o PT agora? Terá de fazer um acerto
de contas profundo consigo mesmo, com o fenômeno do lulismo e sua
pragmática. Isto é, aquela pragmática de um partido que sempre espera a
decisão final de seu líder, entendido pela maioria de seus militantes
como um gênio político infalível. O PT só terá chance de se recuperar se
fizer uma profunda autocrítica em relação a este ponto. E não vejo
condições para isso dentro do partido, especialmente porque sua cúpula é
predominante e visceralmente lulista. Faço uma análise do PT que temos
pela frente, independentemente das adversidades que o Lula padece na
prisão, condenado sem provas materiais, como é de consenso considerável
por todo um pensamento jurídico razoavelmente independente.
A discussão a respeito da corrupção, que foi intensa nos governos do PT,
é vital. Se não houver uma autocrítica em relação a isso... Até porque o
partido nasceu com uma certa concepção udenista, dado que a UDN tinha um
traço levemente liberal-democrático. Havia a ideia de que o PT seria
capaz de acabar com a corrupção brasileira, mas terminou no mesmo
lamaçal. Dito isso, o que o judiciário fez em relação ao Lula é outra
questão.
De todo modo, o resultado é que o PT não é mais líder, por definição ou
vontade divina de seu líder, da oposição de esquerda no Brasil. As
oposições de esquerda terão de se reinventar, e por fora do lulismo. Uma
coisa é defender um julgamento até última instância e sua condenação a
depender de provas materiais concretas. Outra coisa é praticar uma forma
de lulismo mesmo fora do PT, que dificulta e impede o nascimento de uma
esquerda social e política de perfil mais autônomo, ideologicamente mais
consistente e que perceba que o desafio fundamental do próximo período é
combinar uma resistência de perfil antifascista com um projeto de
classe. Como já vemos na Hungria, onde houve uma manifestação muito
importante contra o governo neofascista e xenofóbico que visa à
devastação da legislação trabalhista do país.
Não que o PT deva ser excluído de tudo. Para algumas questões as
esquerdas devem caminhar juntas, quando houver unidade básica. Se é
contra a reforma trabalhista do Temer e sua radicalização pelo governo
que entra, de devastação integral do mundo do trabalho, deve caminhar
junta. Devemos ter a CUT e o PT em manifestação de oposição deste tipo.
Até por ser importante diferenciar um pouco a cúpula dominante do PT de
amplos setores do partido, que estão de fato descontentes. Não imagino
que figuras como Tarso Genro e Olívio Dutra, com todas as diferenças
marcadas pelo tempo, mas ainda lideranças muito respeitadas, não tenham
nenhuma insatisfação com a tragédia desenvolvida pelo PT no último
período.
Existe um mosaico de movimentos sociais: MST, MTST, dos indígenas, das
mulheres, dos LGBT, dos negros, da juventude, da periferia, uma miríade
de movimentos sociais profundamente descontentes com a tragédia dessa
contrarrevolução preventiva e o que implementará a partir de janeiro.
O PT devia fazer o que tanto cobrou do PCB em relação a 1964 (a partir
daquele golpe militar abriu-se um debate nas esquerdas, muitos saíram do
PCB e foram para a luta armada etc). Em poucas palavras, o debate era: o
PCB cometeu erros "de esquerda" ou repetiu um traço constante desde
1945, isto é, desvios "de direita", de colaboracionismo e conciliação de
classes?
Além desta autocrítica fundamental, o PT não vai poder ressurgir das
cinzas sem pelo menos outras duas autocríticas fundamentais: a excessiva
institucionalidade e apego ao calendário eleitoral e o distanciamento
das classes trabalhadoras, como ficou claro no impeachment, quando
nenhuma reação, nem por uma hora, pode ser realizada. A ponto de a
prisão de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos não ser marcada pela
presença de operários, de gente que foi a base de sustentação do PT e
Lula desde os anos 70. Estavam presentes o MTST, MST e outros movimentos
sociais. A base metalúrgica não fez sequer uma greve ou resistência
contra a prisão de Lula, o que mostra o imenso descontentamento em
relação a seu líder do passado.
O PT deve definitivamente abandonar a ideia de que é o epicentro da
oposição brasileira. O partido e Lula não merecem mais esse posto há
muito tempo. Não lideram a classe trabalhadora mais. Ao longo da
história mereceu, como nos anos 80, quando o partido liderava as lutas
sociais, pois tinha como apoio um tripé espetacular: a classe operária
industrial, amplos setores do campesinato e amplos setores da classe
média assalariada. Por todas as modificações que tais setores sofreram
ao longo de 30 anos, o partido já não tem o apoio majoritário de nenhum
deles. O partido teve votação expressiva, mas tratou-se de um voto
contra o Bolsonaro. Teve votação expressiva entre setores que ganham um
ou dois salários [mínimos, NR] e em especial no Nordeste.
No meu livro e vários artigos anteriores, aponto que a base de apoio do
governo Lula mudou entre o primeiro e o segundo governos. Na medida em
que perdeu apoio na massa sindicalmente organizada pela CUT e
politicamente dirigida pelo PT, ganhou apoio das massas atingidas pelo
Bolsa Família, que embora fosse um tipo de assistencialismo apoiado até
pelo Banco Mundial, pelos traços de forte miserabilidade de seus
beneficiários foi importante. Neste momento o Nordeste se tornou um
pilar de sustentação do lulismo. Mas a classe trabalhadora industrial do
Sudeste e do Sul passou a se afastar. A classe trabalhadora nordestina
ainda ficou ao lado do PT, por motivos compreensíveis, pois vivenciou o
desgaste completo que foi a devastação de Temer.
O partido terá de abdicar de qualquer hegemonismo nas esquerdas. Poderá
ser um partido de centro-esquerda parlamentar, capaz de votar contra
projetos que ataquem direitos do mundo do trabalho e setores vulneráveis
da população. Mas nem com isso devemos ter ilusões. Que ninguém espere
que o parlamento seja a barreira contra a tragédia anunciada de
Bolsonaro. Precisamos de organização social e política autônoma, de base
e classe, formada com espírito anticapitalista, coisa que o PT no poder
ajudou a obliterar. As esquerdas sociais precisam jogar sua energia na
combinação das lutas de resistência em todos os espaços possíveis com a
busca de um projeto autônomo de emancipação social e política. O
calendário das oposições não pode mais ser o calendário das eleições.
Uma lição das rebeliões de junho que as esquerdas deveriam ter aprendido
é que a população não crê na institucionalidade, em nenhuma de suas
expressões. Naturalmente, não quero dizer que tais instrumentos não
tenham nenhuma importância. Vimos que o STF agiu positivamente ao
impedir ataques da extrema-direita institucional às universidades e suas
expressões internas. Aliás, até a ditadura era mais cautelosa em fazer
isso...
De todo modo, as rebeliões de 2013 mostraram que os novos caminhos são
mais plebiscitários, horizontais, extraparlamentares,
anti-institucionais e não jogam todas as suas energias no judiciário. O
judiciário está incapacitado para tanto... Ele reflete o plano da
normatividade e as oscilações das confrontações da vida social, que vêm
das ruas.
*Correio da Cidadania: Pelas declarações de suas principais lideranças
não haverá essa tão propalada autocrítica. Aliás, falar nisso chega a
parecer uma fuga da realidade. *
*Ricardo Antunes: * Com tristeza, digo que não vejo a menor
possibilidade desta autocrítica do PT. Mas muitos setores de base do
partido, e até da direção, menos comprometidos com a trágica política
que levou ao fim de seus governos, participarão de novos embates.
É preciso extirpar o mito de Lula como grande líder e herói da classe
trabalhadora, o infalível e insuperável. Neste sentido, o lulismo, tal
como foi o prestismo no PCB, e como todos os movimentos por demais
canalizados na figura de seu líder, a exemplo também da Venezuela,
padecem do mesmo mal. O chavismo, que tantas mudanças positivas gerou na
Venezuela, não foi capaz de formar lideranças que substituíssem Chávez.
No Brasil, esse líder não tem mais condições de capitanear a luta por
uma outra sociedade. Não vi até hoje uma única frase do Lula a
questionar "onde nós erramos?". Antes de ser preso, Lula dizia em seus
palanques que queria de novo unir o país e acabar com o clima de tensão.
Em que mundo ele vive? Num país pautado pelo racismo, o escravismo e a
superexploração do trabalho, como podem se juntar forças tão díspares?
Esse não e o país da conciliação, é o país da contradição visceral.
É importante lembrar que a extrema direita politizou o debate eleitoral.
Bolsonaro politizou o debate e ao contrário do que se falou da Dilma não
cometeu o chamado estelionato eleitoral. Usou sua retórica contra a
esquerda, disse que precisava rebaixar direitos do trabalho, defender
empresários, fazer privatizações, jogou toda a culpa no PT.
E a esquerda conseguiu minimamente oferecer um projeto de esperança em
direção de outra sociedade? Eu não vi em nenhum programa ou debate. Não
vi ninguém dizer que o desafio é recuperar uma vida dotada de sentido e
um outro mundo, não mais capitalista. Não vi, salvo um ou outro grupo
minoritário. Ninguém defendeu um socialismo de novo tipo, capaz de
acabar com a exploração visceral do trabalho, com a propriedade privada
e intelectual, que domina riquezas criadas pela humanidade, a exemplo
das comunidades indígenas que veem grandes laboratórios se apropriarem
de conhecimentos seculares.
A extrema-direita está apresentando um projeto. A esquerda não. Lembro
de uma vez que estive em Roma, há uns 15 anos, quando vi um cartaz que
me impressionou muito: "nós somos a verdadeira direita". Quinze anos
atrás ou mais. Na Itália a direita está dizendo que ela é a verdadeira,
porque a direita sempre aparecia como liberal, liberal-conservadora,
democrata-conservadora, mas não como fascista e protofascista aberta,
como vemos hoje no Brasil. Por que a esquerda não politiza o debate com
radicalidade? Não estou falando de doutrinarismo. Mas o que ensinam as
comunidades indígenas? A vida comunal. O que o majestoso Quilombo dos
Palmares <https://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo_dos_Palmares> , talvez
o primeiro experimento de emancipação social no Brasil, ensinou? A vida
comunal. O que ensinou a rebelião do Haiti, a primeira dos escravos e
brutalmente reprimida? A possibilidade da vida comunal, com as
propriedades coletivas prevalecendo sobre a privada.
O problema é que na ânsia de ter mais votos considera-se necessário
calibrar e moderar demais o discurso, para adequar-se a uma onda
antiesquerda de amplitude global, sob hegemonia financeira, dado que as
populações sofrem um inculcamento muito profundo contra tais ideias. Mas
nunca é integral. A resposta vem dos levantes, como as greves de Jirau e
Santo Antônio, as greves do começo desta década que foram muito
importantes na história recente do país. Estamos instados a pensar outro
modo de vida.
*Correio da Cidadania: Relacionando a entrevista com seu livro, que fala
da precarização do trabalho em escala totalizante, temos a herança do
governo Temer que avançou neste sentido com leis em favor da
terceirização e a entrada de um governo que visa reforçar tais projetos.
Considerando ainda as politicas econômicas que se anunciam, o que
esperar em termos de emprego e renda para a população brasileira de modo
geral? *
*Ricardo Antunes: * Quando olhamos os países europeus que tiveram
vigência da socialdemocracia, vimos que conseguiram legislações de
proteção social e do trabalho muito positivas, escola e saúde públicas,
níveis de civilidade do capitalismo que jamais existiram na periferia.
Se vemos que o máximo de civilidade que tivemos na periferia, no caso
brasileiro, foi com Getúlio Vargas, sendo que a classe trabalhadora
rural estava excluída da CLT
<https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Consolida%C3%A7%C3%A3o_das_Leis_do_Trabalho>
...
Mas acontece que estamos num período de tripé devastador: hegemonia
profundamente destrutiva do capital financeiro, uma pragmática
neoliberal que não tem mais nenhum limite e uma reestruturação produtiva
do capital que por sinal é permanente. Nasceu na Alemanha, mas se
espalhou no mundo avançado a indústria 4.0. Em poucas palavras significa
que as corporações se devoram. O futuro de uma depende da absorção que
ela fará de sua concorrência.
Exemplo: 20 anos atrás havia uma disputa cerrada entre [os produtores de
cerveja] Brahma e Antarctica. Hoje são a mesma, e são uma empresa muito
maior do que a soma dessas duas marcas. Havia também uma disputa intensa
entre Perdigão e Sadia. Hoje são a mesma, a Brasil Foods. No centro
global as fusões se ampliam exponencialmente. Paralelamente,
considerando que as corporações comandam a vida produtiva e, portanto,
as cadeias produtivas de valores, a tecnologia é vital, especialmente
quando o setor de serviços passou a interessar diretamente aos capitais.
Quando da revolução inglesa, no século 18, a indústria foi o novo, ainda
que houvesse indústria antes. Entre aspas a indústria vem desde as
comunidades primitivas quando ao se aquecer minérios se conseguia a
forma de metal. Mas a revolução inglesa levou a lógica capitalista à
indústria e a um processo de transformação capitalista do mundo rural no
século 19, que passou ao século 20. Indústria e campo eram os setores
principais da criação de valor e lucro, da extração da mais valia.
Nesses séculos o setor de serviços, embora tivesse núcleos privatizados,
era essencialmente público: estradas, telefonia, saúde, educação,
previdência, cárcere...
Mas com a crise dos anos 70, estrutural e muito profunda, tanto do
capitalismo como de seu sistema, houve uma intensificação à enésima
potência da tecnologia de informação e comunicação no mundo das
empresas, em particular do setor de serviços. E a introdução do mundo
maquínico, da lógica informacional e digital, transformou profundamente
a produção capitalista. Hoje uma grande empresa carrega o nome de uma
marca, mas terceiriza toda sua produção. O Wallmart tem uma cadeia
vastíssima, que começa no sul da China. A Amazon tem um mundo
esparramado de empresas que oferecem trabalhos de ponta na área digital,
tem experimentos como lojas e shoppings onde a pessoa entra, é
identificada digitalmente, pega um produto, sai e seu preço cai direto
na conta bancária. Tudo sem contato com nenhum trabalhador. Uber e
assemelhados praticam uma escravização do(a) trabalhador(a) que usa seu
carro, paga seguro, gasolina e que numa corrida vê 20%, 30% do pagamento
imediatamente recolhido pelo aplicativo.
Como cito no livro, tem o contrato de zero hora na Inglaterra, que
abarca praticamente todas as profissões de serviços, médicos, advogados,
técnicos, cuidadores, limpeza, domésticas, jardineiros... Eles ficam à
disposição de seus aplicativos, que os chamam para prestar serviços. E
só recebem quando há uma chamada para fazer um serviço. Se ficar 3 ou 4
dias esperando uma chamada que não vem, não recebe. As empresas de tais
áreas foram as que mais comemoraram a aprovação desta contrarreforma
trabalhista do Temer, em favor do trabalho intermitente, porque podem
fazer os trabalhadores esperarem, seja de sábado, domingo, sem pagá-los.
E quando chamados ganham por duas ou três horas. Se de repente chove e o
movimento de um fast food fica abaixo do esperado a remuneração pode ser
insuficiente até paracondução.
*Correio da Cidadania: Esse aspecto não se choca frontalmente com o
discurso ufanista em favor do trabalho dito autônomo, do
empreendedorismo, condições que supostamente tornariam o trabalhador
mais livre? *
*Ricardo Antunes: * O mundo informacional-digital sob comando do capital
financeiro sabe que não pode eliminar o trabalho definitivamente. Mas
sabe que pode depauperá-lo e só remunerar quando um trabalho for
realizado, sem descanso, férias, fim de semana, nada. Por isso chamo
tais trabalhadores e trabalhadoras de novos proletários da era digital.
E daí vem o título do livro, a partir do livro de Albert Camus, /o
Primeiro Homem, / quando em linhas gerais ele diz que só os acidentes de
trabalho, em empresas que dão seguro saúde, dão a chance de férias e
lazer ao trabalhador. Só quando eles se acidentam podem ter tais
benefícios. O desemprego passa a ser o maior medo e o trabalho, que
deveria ser uma virtude, acaba sendo um caminho para a morte, fotografia
que resulta no /Privilégio da servidão./. Isto é, os jovens que hoje têm
20, 25 anos, se tiverem sorte, serão servos, submetidos e dominados em
seu trabalho. O assalariado é o escravo da era capitalista, como dizia
Marx.
Os jovens de hoje, qualificados ou não, nativos ou imigrantes, se
tiverem sorte terão o privilégio de serem servos. Caso contrário,
estarão no desemprego, que será muito maior no futuro. Em suma, a
indústria 4.0 significa digitalização, automatização, introdução da
inteligência artificial, da lógica dos algoritmos, todo esse monumental
avanço de tecnologia da comunicação e informação, de tal modo que todas
as atividades vão eliminar o trabalho vivo, intensificar o trabalho
realizado pelo mundo digital ("a internet das coisas", como dizem), em
qualquer setor, escolas, bancos etc. No mundo produtivo, seja na
indústria, agricultura, suas intersecções e serviços, tudo que for
possível digitalizar, computadorizar, automatizar e eliminar trabalho
humano será valido.
A pergunta que não quer calar é: o que vai acontecer com a massa de
trabalhadores(as)? Teremos um pequeno grupo de trabalhadores(as) muito
qualificados(as) na ponta do sistema, para realizar as atividades
humanas absolutamente insubstituíveis ao menos até o presente, mas toda
a massa de trabalhos intermediários, desde as gerências e supervisões
até a parte mais executora, operária, todos jocosamente chamados de
"colaboradores", vai perder seu emprego. Assim teremos uma situação na
qual os bolsões de desempregados aumentarão.
O Brasil tem praticamente 20 milhões de desempregados. Mais um conjunto
que faz bico, trabalho informal, autônomos sem formalização, à margem
muitas vezes do sistema de previdência. Consequentemente, a previdência
arrecadará menos, vão dizer que ela é deficitária por culpa dos
trabalhadores, quando é o grande capital que arrebenta a previdência
pública em favor da previdência privada, favorável aos bancos com seu
modelo de capitalização.
*Correio da Cidadania: É um cenário profundamente destrutivo. *
*Ricardo Antunes: * Tem um elemento importante que destaco no livro:
essa massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras na China, Índia, na
Europa, EUA, Canadá, Brasil, Argentina etc. etc. etc., enfim, massa
imensa de jovens informalizados, terceirizados, intermitentes, alguns
com poucos direitos, outros com burla completa, se rebela. Recentemente
houve greves dos trabalhadores de fast food nos EUA e das trabalhadoras
da limpeza dos tribunais de justiça de Londres. Há greves frequentes em
escritórios de telemarketing.
Precisamos estudar, compreender e analisar o modo de ser daquilo que
chamo de nova morfologia do trabalho, do proletariado de serviços, que
não é a classe média. O que caracteriza a classe média é a prevalência
do trabalho intelectual, o que não é o caso das categorias aqui citadas.
Há uma massa de jovens bem formados em Portugal, Grécia, que vai
trabalhar em hotéis, restaurantes. Vi em Veneza jovens formados em
engenharia abrindo e fechando as portas do vaporetto (as barcas que
transportam as pessoas pelos canais) por 500 euros por mês, seis dias
por semana, durante 5 ou 6 meses, em um contrato só, depois substituído
por outro jovem.
É claro que tal contingente de proletários é diferente em sua
subjetividade quando comparado ao antigo operário industrial, um
metalúrgico, um trabalhador rural. Mas o setor de serviços se tornou
altamente produtivo, gerador de lucro e mais valor. Duas passagens
importantes colocadas por Marx em /O Capital:/   para gerar valor e mais
valia a produção do trabalho não precisa ser materialmente produtiva;
ela pode ser vista no espaço da circulação, a exemplo da indústria do
transporte. Esta não produz nada, mas transporta pessoas e mercadorias.
É um eixo vital da geração de lucro. É preciso entender o processo de
produção que existe dentro de atividades de circulação. E tal atividade
é vital porque quanto mais tempo se leva a circular, menor sua
produtividade. Quanto mais rápido o tempo de circulação se aproxima de
zero, maior o tempo de produção.
Não é difícil compreender que o mundo das tecnologias da comunicação e
informação expandidas em todas as áreas passou a ser um setor vital na
esfera de circulação do capital. Nossos gostos são conhecidos pelos
sites e redes sociais. Se procuramos uma passagem para a França, na
mesma hora recebemos no computador informações de novas passagens a um
preço mais razoável. Significa que o capital quer extrair mais valor em
todos os espaços em todas as formas de produção no sentido lato.
Por que o governo Bolsonaro defende o ensino a distância? Porque o
professor, ganhando 15 reais por aula, pode deixar de dar aula para 20
ou 30 alunos e poderia dar para 20 mil ou 30 mil. Quando isso ocorre,
aquele professor que foi vital para a aula presencial, numa escola
privada, passa a ser gerador de um lucro muito potencializado.
Tudo isso cria um proletariado de novo tipo que luta, se rebela, e é
diferente do anterior. Dizem na Europa "nós somos a parte mais precária
da classe trabalhadora: somos jovens, temos qualificação, homens,
mulheres, nativos, imigrantes, brancos, negros, amarelos, mas não temos
direitos adquiridos como tinha a antiga classe trabalhadora". Vi muita
gente na Itália a dizer, "o sindicato representa vocês, a velha classe
trabalhadora. Teremos de criar os nossos, porque o de vocês não nos
representa". O sindicalismo, especialmente o europeu, muito moderado e
tradicional, aprendeu a representar sua classe no desenho
socialdemocrata. Mas hoje a socialdemocracia é mais ficção que realidade.
Os direitos estão sendo eliminados país por país. Era inimaginável na
Itália, que em 1970 fez um código do trabalho altamente avançado,
vermos, como estabelecido em 2017, um sistema de pagamentos por voucher.
O trabalhador faz, por exemplo, 100 horas mensais e pega um voucher por
hora de trabalho, para depois trocar cada um deles pelo equivalente à
hora do salário mínimo italiano. O empresário diz que pode arrumar mais
horas de trabalho, mas não pelo mesmo valor. Cria-se um sistema de
pagamento direto. E se o trabalhador não aceita há uma massa imensa de
imigrantes e pobres desesperados por tais postos.
Estamos diante da criação ilimitada de massas de jovens disponíveis para
o trabalho que não têm mais o regime de proteção, no qual há direitos
como férias, saúde, descanso etc. É um movimento duplo e contraditório:
precarização ilimitada, na qual o intermitente global é emblemático, e
uma massa que se rebela, está lutando para aprender a criar suas novas
formas de associativismo, como se vê em Milão, em Nápoles, em Portugal,
a exemplo do movimento Precari@s e Inflexíveis. Neste país há o recibo
verde como modo de pagamento, recibo que mede seu pagamento de acordo
com a produção no tempo de trabalho.
*Correio da Cidadania: Desse modo, faltaria reconhecer que uma das
brechas aproveitadas pela extrema-direita na atual conjuntura foi uma
interpretação deficiente da atual formação das classes trabalhadoras? *
*Ricardo Antunes: *  As teses sobre o fim da classe trabalhadora estão
sepultadas. É uma classe que se amplia. Mas como é muito segmentada,
heterogênea, com distinções de classe, geração, gênero, etnia, é
evidente que há uma dúvida sobre quais organismos vão dar sentido de
pertencimento de classe a este conjunto heterogêneo, polimorfo,
polissêmico que caracteriza a classe trabalhadora na China, na Índia, na
Coreia do Sul, na África, no leste europeu, na América do Sul...
Nas rebeliões de junho [de 2013] era muito visível o jovem proletariado
brasileiro que ralava o dia inteiro em empregos precários para pagar uma
faculdade de noite imaginando que ia participar da festa e dividir o
bolo. Quando ele percebeu que a divisão do bolo, metaforizada nos
megaeventos esportivos, não tinha pedaço nenhum paraele, só para as
grandes corporações, se rebelou. Esse jovem é política e ideologicamente
muito diferente, porque não tem tradição política nem sindical em seu
lastro.
E os sindicatos e partidos de esquerda, grosso modo, têm sido incapazes
de compreender a vida cotidiana, a consciência contingente e aquilo que
é capaz de mobilizar o proletariado que na Europa já se autodenomina
precariado. Essa definição não veio da sociologia do trabalho. Foram os
movimentos de trabalhadores que deram este nome, a exemplo do San
Precario, dos trabalhadores de Milão. É a nova franja do proletariado,
que antes era pequena, mas se expandiu mundialmente, solapando as bases
sociais da socialdemocracia. É uma parcela da jovem classe trabalhadora
que não se beneficia das conquistas sociais da época do welfare state do
taylorismo e do fordismo.
Portanto, quais os interesses desses segmentos que compõem a totalidade
da classe trabalhadora? Que lutas querem realizar? Como vão soldar laços
de pertencimento de classe a fim de evitar que sejam tratados de forma
individual? Como mostram as reformas de Temer, Macri e Macron, querem
que o trabalhador se entenda sozinho com a empresa. Mas quando o
trabalhador ganhou uma? Neste cenário o capital ganha todas.
A saída dos trabalhadores só pode ser solidária e coletiva, como tento
trabalhar nos dois capítulos finais do livro: "Há futuro para os
sindicatos? Há futuro para o socialismo?" É decisivo recuperar as
questões vitais da vida cotidiana e desenhar outro modo de vida, muito
além do capital. Este é o imperativo do século 21.
11/Janeiro/2019
*[*] Sociólogo.
[**] Jornalista e editor do Correio da Cidadania.
O original encontra-se em www.correiocidadania.com.br/...
<http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13625-na-reorganizacao-do-neoliberalismo-a-extrema-direita-apresentou-um-projeto-e-as-esquerdas>
*
*Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/
<http://resistir.info/> . *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/antunes_11jan19.html
17/1/2019

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