quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Nova guerra fria e ameaças iminentes


 Entrevista com John Pilger  

Nesta notável entrevista com dois jornalistas indianos, John Pilger traça uma
visão de conjunto da ofensiva dos EUA e dos seus aliados no Médio Oriente, na
Ásia e na América Latina. Uma experiência pessoal iniciada na guerra do Vietname
e que prossegue até aos dias de hoje, exemplo da forma como um jornalismo
esclarecido e progressista pode ser um poderoso aliado da luta dos povos.


O seu recente documentário, The Coming War on China, mostra como os Estados
Unidos estão em guerra com a China. Pode explicar o mecanismo dessa guerra
secreta? Acha que a Ásia-Pacífico será a próxima região de intervenção
imperialista? Como ocorrerá essa intervenção e quais serão as consequências?
É uma “guerra secreta” apenas porque a nossa percepção é moldada para ignorar a
realidade. Em 2010, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, viajou a
Manila e incumbiu o recém-inaugurado presidente filipino, Benigno Aquino, de
tomar posição contra a China pela sua ocupação das Ilhas Spratly e de aceitar a
presença de cinco bases de Marines dos EUA. Manila entendia-se bem com Pequim,
tendo negociado empréstimos bonificados para infraestruturas das quais
necessitava muito. Aquino fez o que lhe foi dito e aceitou que uma equipa
jurídica liderada pelos EUA contestasse as reivindicações territoriais da China
no Tribunal de Arbitragem da ONU em Haia. O tribunal concluiu que a China não
tinha qualquer jurisdição sobre as ilhas; um julgamento que a China
categoricamente rejeitou. Foi uma pequena vitória numa campanha de propaganda
americana visando retratar a China mais como territorialmente rapace do que como
defensiva na sua própria região. O motivo foi o crescente receio da elite de
segurança nacional/militar/mediática dos EUA de ter deixado de ser a potência
dominante no mundo.
No ano seguinte, em 2011, o presidente Obama declarou uma “viragem para a
China”. Isso marcou a transferência da maioria das forças navais e aéreas dos
EUA para a região da Ásia-Pacífico, o maior movimento de equipamentos militares
desde a Segunda Guerra Mundial. O novo inimigo de Washington - ou melhor, um
inimigo de novo - era a China, que atingira extraordinários patamares económicos
em menos de uma geração.
Os Estados Unidos têm há muito tempo uma série de bases em torno da China, da
Austrália às ilhas do Pacífico, passando pelo Japão, Coreia e Eurásia. Estas
estão em vias de ser reforçadas e modernizadas. Quase metade da rede global dos
EUA, que conta mais de 800 bases, cerca a China “como o laço corredio perfeito”,
disse um responsável do Departamento de Estado. Sob o pretexto do “direito à
liberdade de navegação”, navios de baixo calado dos EUA entram nas águas
chinesas. Os drones americanos sobrevoam o território chinês. A ilha japonesa de
Okinawa é uma vasta base americana, com os seus contingentes preparados para um
ataque à China. Na ilha coreana de Jeju, os mísseis da classe Aegis são
apontados a Xangai, a 640 quilômetros de distância. A provocação é constante.
Em 3 de outubro, pela primeira vez desde a Guerra Fria, os Estados Unidos
ameaçaram abertamente atacar a Rússia, a aliada mais próxima da China, com quem
a China tem um pacto de defesa mútua. Os media interessaram-se pouco pela
questão. A China está a armar-se rapidamente; de acordo com a literatura
especializada, Pequim mudou sua postura nuclear, passando de um alerta baixo
para um alerta alto.
Pessoas como Noam Chomsky dizem que o império americano está em declínio. Pensa
realmente isso? Nos últimos tempos, vimos os Estados Unidos tentarem chegar a um
acordo com a Coreia do Norte; antes, eles tentaram reestabelecer relações
diplomáticas com Cuba. O que indicam esses episódios? Acha que o mundo se está a
diversificar?
O império americano enquanto ideia pode estar em declínio, a ideia de uma única
potência dominante e a dolarização da economia mundial, mas o poder militar dos
EUA nunca foi tão ameaçador. Uma nova guerra fria conduz ao isolamento dos
Estados Unidos e é um perigo para todos nós. No início do século XXI, Norman
Mailer [jornalista e romancista norte-americano] escreveu que o poder americano
havia entrado em uma era “pré-fascista”. Outros sugeriram que já estamos lá.
Disse que um dos triunfos do século XXI em matéria de relações públicas foi o
slogan de Obama “a mudança em que acreditamos”. Disse também que a campanha
mundial de assassínios de Obama foi sem dúvida a mais dispendiosa campanha de
terrorismo desde o 11 de Setembro de 2001. Por que foi tão duro com Obama, que
ganhou o Prêmio Nobel da Paz? Que acha de Donald Trump e da sua presidência?
Eu não fui duro com Obama. Foi Obama quem foi duro com grande parte da
humanidade, ao contrário da sua muitas vezes absurda imagem mediática. Obama foi
um dos mais violentos presidentes americanos. Lançou ou apoiou sete guerras e
deixou o poder sem que nenhuma delas fosse resolvida: um recorde. Durante o seu
último ano como presidente, em 2016, lançou 26.171 bombas, segundo o Conselho de
Relações Exteriores. É uma estatística interessante; trata-se de três bombas a
cada hora, 24 horas por dia, principalmente sobre civis. A técnica de
bombardeamento adoptada por Obama foi o assassínio por meio de drones. Todas as
terças-feiras, relatava o New York Times, ele escolhia os nomes daqueles que
iriam morrer num “programa” de execuções extrajudiciais. Todos os homens em
idade militar no Iémen e nas fronteiras do Paquistão eram considerados
inteiramente como animais. Ele multiplicou as operações das forças especiais dos
EUA no mundo, especialmente em África. Juntamente com a França e a Grã-Bretanha
ele e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, destruíram a Líbia como Estado
moderno com o falso e familiar pretexto de que o seu líder estava prestes a
cometer um massacre de “inocentes”. Isso conduziu directamente ao crescimento
dos medievalistas Daesh [ou Estado Islâmico] e uma vaga de emigração de África
para a Europa. Ele derrubou o presidente democraticamente eleito da Ucrânia e
instalou um regime abertamente apoiado pelo fascismo - como uma provocação
deliberada à Rússia.
A concessão do Prêmio Nobel da Paz a Obama foi uma impostura. Em 2009, esteve no
centro de Praga e prometeu aí ajudar a criar um mundo “livre de armas
nucleares”. Na verdade, aumentou o número de ogivas nucleares americanas e
autorizou um programa de construção nuclear de longo prazo de US$ 1 milhar de
milhões. Processou mais denunciantes, reveladores da verdade, do que todos os
presidentes dos EUA juntos. O seu principal sucesso, pode dizer-foi pôr fim ao
movimento antiguerra norte-americano. Os manifestantes regressaram a casa dando
crédito às mensagens de ‘esperança’ e ‘paz’ de Obama, e começaram a acreditar
nisso. A única diferença de Obama foi ter sido o primeiro presidente negro na
terra da escravidão. Em quase todos os outros aspectos, ele era apenas outro
presidente americano cuja constante afirmação era que os Estados Unidos eram “a
única nação indispensável”, o que presumia que outras nações eram dispensáveis.
Talvez a inteligência de Obama residisse na imagem que Obama e outros fabricaram
e cultivaram com sucesso. Donald Trump também pode ser descrito como apenas
outro presidente americano (violento). O que o distingue é que ele é uma
caricatura. Muitos membros da elite americana detestam Trump, não por causa de
seu comportamento pessoal, mas por causa de um embaraço muito mais profundo; ele
é a imagem crua da América, sem a máscara.
O seu filme The War on Democracy documenta o golpe de Estado orquestrado pelos
Estados Unidos contra Hugo Chávez, que se opunha ao imperialismo, com a ajuda da
burguesia de direita e capitalista da Venezuela. Isso não era novo para a
maioria dos países latino-americanos. Hoje, porém, vemos cada vez mais países do
continente resistindo ao imperialismo americano. Fora de Cuba e da Venezuela, os
governos de esquerda estão no poder em países como a Bolívia e o Equador. Qual é
o significado disso? Hoje em dia, também ouvimos histórias de ofensivas de
direita em países como a Venezuela e o Brasil. Como avalia o actual cenário
político latino-americano?
Eu não concordo que “mais e mais países [na América Latina] estejam a resistir
ao imperialismo dos EUA”. Pode ter sido verdade quando Hugo Chávez ainda estava
vivo; mas mesmo então, os Estados Unidos nunca desistiram da sua influência no
continente. Hoje, há apenas Bolívia, Nicarágua e, claro, Venezuela, a Venezuela
em luta pela sobrevivência. A maior parte da América Latina está de volta à
influência de Washington, especialmente o Brasil. O Equador, anteriormente
esclarecido, é outro exemplo eloquente. O governo obsequioso de Lénine Moreno
convidou a tropas norte-americanas a voltarem e ameaçou abandonar Julian
Assange. A opressão económica do FMI está novamente a prejudicar a Argentina.
Versões do Consenso de Washington, conhecido como neoliberalismo, dominam quase
todo o continente. Cuba está calma, o que é compreensível.
Nos últimos anos, vimos denunciantes como Julian Assange e Edward Snowden
revelarem documentos confidenciais que mostravam como funciona o sistema de
poder. Notará que o WikiLeaks não fez nada mais do que ‘The New York Times’ e
‘The Washington Post’ tinham feito num celebrado passado – revelaram a verdade
sobre guerras de rapina e as maquinações de uma elite corrupta.
Disse que “o WikiLeaks é um marco no jornalismo”. Qual é a importância dessas
revelações? O que é que elas nos ensinam?
O WikiLeaks fez muito mais do que o New York Times e o Washington Post com todos
os louros que estes têm. Nenhum jornal conseguiu igualar - ou chegar perto - os
segredos e mentiras do poder que Assange e Snowden revelaram. O facto de os dois
homens serem fugitivos testemunha o recuo das democracias liberais em relação
aos princípios da liberdade e da justiça. Porque é o WikiLeaks um marco no
jornalismo? Porque as suas revelações nos disseram, com 100% de precisão, como e
porquê uma grande parte do mundo é dividida e dirigida.
Como analisa a evolução do panorama dos media na era digital? Por um lado, a
Internet abriu uma vasta via de espaço livre ou de plataforma independente. A
Internet oferece um espaço contra-narrativo, ao qual os grandes media
corporativos não prestam atenção. Mas, por outro lado, grandes monopólios
digitais controlam o espaço digital. Como vê a situação? Quais são os desafios a
enfrentar?
Os desafios estão à altura da nossa permissividade. Os dados digitais são a nova
corrida ao ouro do capitalismo; A vigilância digital é o novo adversário da
democracia. Ambos diferem apenas em forma e escala das inúmeras formas de poder
a que as pessoas tiveram que resistir desde o início da história. Hoje, todos
nós temos um pé no mundo digital; temos a Internet, que é o poder. A maneira
como desenvolvemos esse poder, em vez de o banalizar, depende da nossa
disposição de adoptar princípios intemporais de resistência.
Está envolvido em reportagens de guerra há mais de cinco décadas. Cobriu a
maioria das grandes guerras, incluindo a Guerra do Vietname, a guerra no Iraque
e a guerra no Afeganistão. Um certo número de países pratica uma política de
armamento crescente como política econômica. O papel das grandes empresas de
venda armas também é importante. O que é a economia política da guerra?
A economia política da guerra na era moderna é a economia política dos Estados
Unidos. Os Estados Unidos privam cerca de 80 milhões dos seus cidadãos de
cuidados de saúde adequados e gastam quase 60% do seu orçamento discricionário
federal na preparação para a guerra. A Índia também tem uma economia de guerra.
Em 2018, a Índia ficou entre os cinco países que mais gastaram no campo militar,
com um orçamento militar de US $63,9 milhares de milhões, o que supera o da
França. Quase metade do orçamento nacional é dedicado a gastos militares. Quando
fui à Índia pela primeira vez, descobri outro mundo dentro de bases militares,
habitado por pessoas saudáveis e bem nutridas, com água potável e crianças
educadas. No exterior dessas bolhas magníficas, a Índia conta mais crianças
subnutridas do que qualquer outro país do mundo.
Síndroma do Vietname
A Guerra do Vietname foi um dos capítulos mais sangrentos e mortíferos do
pós-guerra. Começou as suas reportagens de guerra no Vietname. Esta foi a
primeira guerra televisionada. A Guerra do Vietname é a história do massacre de
mais de três milhões de pessoas. Poderia falar-nos do horror que viu no
Vietname? Qual foi o papel dos media ocidentais no Vietname? Recentemente,
captou a tentativa de reescrever a história da Guerra do Vietname em manuais
escolares norte-americanos. A própria recordação do Vietname assombra o Estado
mais poderoso do mundo?
Não tenho certeza de que “assombrar” seja a palavra certa. O que incomoda os
apologistas americanos é que o exército de ‘nação indispensável’ foi expulso da
Ásia por uma nação de camponeses, que ela sofreu uma derrota humilhante. Desde
então, eles têm procurado um ‘melhor resultado’, reescrevendo o que chamaram de
’síndrome do Vietname’, um eufemismo para o embaraço prolongado causado por uma
catástrofe.
A série de documentários épico de Ken Burns para a Public Broadcasting em 2017
começou com a seguinte declaração: ‘A guerra foi desencadeada de boa-fé por
pessoas honestas como resultado de mal-entendidos fatais, do excesso de
confiança dos norte-americanos e dos mal-entendidos da guerra fria”. A
desonestidade desta declaração ignora os muitos falsos pretextos que levaram à
invasão do Vietname, como o “incidente” do golfo de Tonquim em 1964. Não houve
boa-fé. A fé era podre e cancerosa e mais de quatro milhões de pessoas morreram.
Vi algo do sofrimento: o facto de o comandante norte-americano, general William
Westmoreland, ter tomado por alvo civis a quem chamava “baratas”. No delta do
Mekong, após um bombardeamento, havia um cheiro de napalm e árvores petrificadas
enfeitadas com pedaços de corpos. Também testemunhei heroísmo. Em 1975,
encontrei a única sobrevivente de uma bateria antiaérea vietnamita, todas
adolescentes; estava ajoelhada diante dos novos túmulos de seus camaradas.


O terrorismo é o produto dos Estados

Questionou a guerra dos EUA contra o terrorismo como um exemplo de hipocrisia e
de duplicidade. Porque diz isso? Se assim for, a questão é de saber como parar o
terrorismo. Até que ponto a ameaça do terrorismo é um desafio para uma vida
moderna e cívica?
A grande maioria do terrorismo é o produto dos Estados. O Iémen é actualmente
vítima de incessantes actos de terrorismo por parte do Estado saudita, que
patrocinou outras formas de terrorismo, nomeadamente os ataques de 11 de
Setembro. A “guerra contra o terrorismo” lançada em 2001pelo presidente dos EUA,
George W. Bush, foi na verdade, uma guerra de terror, matando milhões de
pessoas, na sua maioria muçulmanos. Estados poderosos, como os Estados Unidos e
a Grã-Bretanha, tornaram o terrorismo uma arma “estratégica”; o apoio ao
jihadismo na Líbia e na Síria é um exemplo notável disso. A conclusão é ou
deveria ser óbvia: quando os governos pararem de promover o terrorismo, os
ataques sangrentos nas suas próprias cidades provavelmente acabarão.
Disse que os Estados Unidos têm ao mesmo tempo “bons terroristas” e “maus
terroristas”. Quem são os bons e os maus terroristas da América?
A designação pode mudar sem aviso prévio. Actualmente, os sauditas são “bons
terroristas”; na verdade, nem são chamados de terroristas. Os extremos
terroristas maus - Al Qaeda - são agora bons terroristas que lutam ao lado dos
Estados Unidos na sua longa guerra contra os xiitas. Historicamente, os curdos
sempre foram ao mesmo tempo bons e maus terroristas; no Iraque, os curdos eram
bons; na Turquia, eram maus. A designação assentava em eles estarem ou não
lutando contra o mais recente inimigo dos Estados Unidos.
Nas últimas décadas do século XX, o mundo viu a região da Ásia Ocidental
tornar-se o ponto quente da intervenção ocidental. Depois de 11 de Setembro de
2001, essa intervenção tomou a forma de duas guerras: a guerra no Afeganistão e
a guerra no Iraque. A islamofobia atingiu novos picos no Ocidente. A teoria do
choque de civilizações encontrou campeões na máquina estatal, sendo George Bush
o melhor exemplo. Como situa historicamente os interesses ocidentais no Médio
Oriente e a ascensão da islamofobia no Ocidente?
Recomendo o trabalho do historiador britânico Mark Curtis, cujo livro Secret
Affairs relata a estreita relação entre o estado britânico e o islamismo
extremista. O que está claro é que organizações como Daesh e Al-Qaeda eram o
produto dos governos imperiais ocidentais.
No Afeganistão, os mujahidin poderiam ter permanecido uma influência tribal se
não fosse a Operação Ciclone, um plano liderado pelos Estados Unidos para
transformar o Islão extremista numa força que expulsaria a União Soviética e
derrubaria o estado soviético. O que o Ocidente temia no Médio Oriente era o que
Gamal Abdel Nasser, no Egipto, chamava “pan-arabismo”. Temia que os povos árabes
se desembaraçassem das cadeias do tribalismo e do feudalismo e controlassem e
desenvolvessem os seus próprios recursos. Por esta razão, o único governo
progressista no Afeganistão foi declarado “comunista” e destruído. Pela mesma
razão, os palestinos são mantidos num estado de opressão interminável.
Com os Estados Unidos reconhecendo Jerusalém como capital de Israel em 9 de
Dezembro de 2017, o sofrimento e o medo dos palestinos aumentaram. Como disse,
eles são refugiados no seu próprio território. Descreveu a agressão contra a
Palestina como a ocupação militar mais longa da história moderna. poderia
dizer-nos algo mais sobre a questão palestina? Quais são os interesses
estratégicos e geopolíticos dos Estados Unidos na região? Qual é o caminho para
ser feita justiça aos palestinos?
Um dos principais objectivos dos Estados Unidos é manter o Oriente Médio num
estado de incerteza, instável e dividido por guerras tribais. John Bolton, o
conselheiro de segurança nacional dos EUA, disse-o com grande satisfação. Foi
assim que os britânicos controlaram a região. O centro de concepção dessa
“política” é Israel, um anacronismo imperial imposto ao Médio Oriente quando o
mundo se descolonizava. Como o historiador israelita Ilan Pappe documenta no seu
último livro, Israel foi concebido como uma prisão para seus povos autóctones,
os palestinos. Toda a hipocrisia ocidental reside em Israel. Bashar al-Assad é
designado como um monstro, mas Benjamin Netanyahu, um monstro supremo, goza de
impunidade para controlar os palestinos e, em grande medida, o Congresso dos
EUA, a Casa Branca e as Câmaras do Parlamento em Londres.
Essa impunidade manifestou-se recentemente quando Jeremy Corbyn, o líder
trabalhista britânico que pode ser o próximo primeiro-ministro britânico, foi
alvo de uma campanha inteiramente falsa que o difama como antissemita. Em vez de
a rejeitar com desprezo, Corbyn curvou-se a ela e traiu os seus muitos anos de
apoio aos direitos dos palestinos aceitando uma definição de sionismo que negava
a Israel o seu verdadeiro estatuto de estado racista. No momento em que escrevo,
os soldados israelitas massacram regularmente palestinos em Gaza, incluindo
crianças. Desde março [2018], 77 palestinos desarmados tiveram que ser
amputados, incluindo 14 crianças; 12 ficaram paralisadas por toda a vida após
serem baleados nas costas. Nem um único israelita ficou ferido.
Aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, o capitalismo neoliberal.
Provavelmente expôs a primeira experiência do programa de ajustamento estrutural
na Indonésia na década de 1960. Diz que não há diferença entre a implacável
intervenção do capital internacional nos mercados estrangeiros hoje e os de
antes, quando eram apoiados por canhoneiras. Como jornalista familiarizado com o
funcionamento do Estado profundo, poderia falar-nos sobre a evolução das
experiências econômicas neoliberais? Como funciona isso hoje em dia?
O neoliberalismo é uma extensão do que antes era chamado monetarismo, as duas
versões exóticas ou extremas do capitalismo dominante. No Ocidente, sob a
liderança de Margaret Thatcher e Ronald Reagan e seus homólogos europeus, foi
declarada uma “sociedade a dois terços”. O terço superior seria enriquecido e
pagaria pouco ou nenhum imposto. O terço médio seria “ambicioso”, alguns de
entre eles seriam “bem-sucedidos” num mundo impiedosamente competitivo e outros
ficariam irrevogavelmente endividados. O terço inferior seria abandonado ou
ser-lhe-ia oferecido um empobrecimento estável em troca da sua obediência. A
relação entre as pessoas e o Estado mudaria de benigna para maligna. Uma nova
classe de gestores educados no espírito empresarial dos Estados Unidos, com a
sua própria “cultura” e vocabulário, supervisionaria a conversão da
social-democracia numa autocracia de empresa. O “debate” público, gerido por
meios de comunicação totalmente integrados, seria dominado por “políticas de
identidade”, todas as noções de classe banidas como “falsidades”. Falsos
demônios estrangeiros (liderados pela Rússia, seguidos de perto pela China)
seriam designados como “inimigos necessários”.


A unidade europeia é propaganda

A experiência da União Europeia foi saudada como um sinal de unidade dos
europeus e um modelo na era pós-socialista. Mas o Brexit foi um grande golpe que
atingiu essa propaganda. Qual é o seu ponto de vista sobre a UE? Como analisa o
Brexit e reivindicações semelhantes?
A União Europeia é basicamente um cartel. Não há ‘livre comércio’. Existem
regras de exclusividade estabelecidas e controladas pelos bancos centrais,
principalmente o banco central alemão, com benefícios para os membros mais
fracos, nomeadamente o movimento transfronteiriço de mão-de-obra, embora isso
seja agora posto em causa. O objectivo central da UE é a proteção e o
fortalecimento do poder econômico dos mais fortes. Bruxelas é uma burocracia
centralizada; a democracia é mínima. A “unidade europeia” de que você fala é
propaganda, promovida por aqueles que mais recebem da UE. O esmagamento da
Grécia é uma lição que a maioria dos britânicos parece ter entendido.
O seu trabalho concentra-se em quem controla o destino da humanidade, de que
forma nações poderosas, grandes empresas, a burguesia, lobbies poderosos fazem
as leis e regras do mundo. A democracia parece ser a vítima disso. Apesar disso,
temos histórias inspiradoras em todo o mundo sobre a resistência contra essas
forças poderosas. É optimista, e optimista no que diz espeito a um mundo melhor?
Existem forças inspiradoras de resistência em muitos países, incluindo a Índia.
Desde a minha primeira reportagem na Índia, na década de 1960, emocionou-me o
desejo das pessoas comuns, especialmente dos agricultores, de defender a justiça
na sua vida. A recente grande marcha [de 23 de Setembro a 2 de Outubro] de
50.000 agricultores de [Haridwar] em Uttar Pradesh, em Nova Deli, era típica.
Disciplinados, políticos e engenhosos, eles têm muito a ensinar àqueles de nós
que no Ocidente que imaginam que o protesto consiste em gozar com Trump ou
assinar uma petição dirigida ao deputado da sua zona. Quando o governo de Deli
permitiu que a polícia atacasse os fazendeiros no aniversário de Mahatma Gandhi,
eles reagiram. A promessa política de saber onde seus movimentos podem conduzir
talvez seja o mais notável registo revolucionário do mundo hoje. Eles
representam a luta dos povos e da agricultura em todo o mundo contra os
bulldozer neoliberais do ‘desenvolvimento urbano’: o roubo do espaço humano e
sua conversão numa mercadoria grotesca e lucrativa. O facto de os governos
indianos não terem reagido aos suicídios de mais de 300.000 agricultores é uma
tragédia histórica, mas pode ser revertida a qualquer momento. De certo modo, os
agricultores indianos representam-nos a todos. Como Vandana Shiva escreve, a sua
difícil situação e a sua resistência constituem uma advertência: a menos que a
segurança sobre a terra, a segurança sobre as sementes e a agricultura pertençam
ao povo, a colonização dos campos do mundo por gente como a Monsanto é uma
ameaça tão séria para a existência humana quanto as alterações climáticas. Claro
que as pessoas nunca estão paradas. Eles “levantar-se-ão como um leão depois de
dormir …’, como Percy Bysshe Shelley escreveu … Quando a resistência não é
visível, é ainda uma ’semente sob a neve’. Nunca conheci tanta sensibilização do
público como hoje, mas reina também a confusão. O “populismo” dos ocidentais,
tantas vezes deturpado como reaccionário, exprima ao mesmo tempo a disposição de
resistir e uma desorientação sobre como o fazer. Isso vai mudar. O que nunca
muda é o medo dos poderosos do poder das pessoas comuns.
O tipo de jornalismo que pratica é realmente um desafio, e difícil. Através de
seus documentários, artigos e outros trabalhos jornalísticos, questionou os
Estados mais poderosos do mundo e suas fraudes democráticas. O que moldou o seu
ponto de vista para se tornar uma voz dissidente no jornalismo? Quais são as
suas influências e o que é que o mantém atento?
Hoje, a maioria dos jornalistas estabelecidos são estafetas do poder. Não são o
“mainstream”, que é uma palavra orwelliana. Um mainstream real tolera a
dissidência, não a censura. O que é que moldou o meu ponto de vista? O facto de
relatar a luta das sociedades pelo mundo fora, incluindo os seus triunfos, por
mínimos que sejam, continua sendo uma influência duradoura. Ou talvez essas
influências tenham início cedo na vida. “Apoiamos os oprimidos”, disse-me minha
mãe um dia, quando eu era pequeno. Eu gosto disso.
John Pilger
Entrevista com Jipson John e Jitheesh P.M., membros do Tricontinental: Institute
for Social Research e que contribuem para várias publicações nacionais e
internacionais, incluindo The Indian Express, o The Wire e o Montly Review.
Podem ser contactados em jipsonjohn10@gmail.com e jitheeshpm91@gmail.com.

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/nova-guerra-fria-e-ameacas-iminentes/
2/1/2019

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