segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Por dentro do coração da Índia rebelde


Em resposta a um governo ultra-liberal e moralmente conservador,
disposto a liquidar sindicatos, 150 milhões de trabalhadores pararam.
Como eles podem, ao longo do ano, mudar a maré do país


Por *Vijay Prashad*, do /Tricontinental Institute/ | Tradução: *Felipe
Calabrez*


As cidades indianas nunca se calam. O som é uma característica constante
– as buzinas dos carros, o cantar dos pássaros, os gritos dos vendedores
ambulantes, o zumbido constante de um motor de motocicleta. Em 8 de
janeiro, uma terça-feira, a Índia entrou em greve. Cerca de 150 milhões
de trabalhadores permaneceram longe de seus locais de trabalho. Os
sindicatos de esquerda convocaram uma paralisação geral em um país
exausto pela crescente desigualdade e tomada por um clima de insatisfação.
As ruas de Kerala – um Estado governado por uma Frente da Esquerda
Democrática – não permaneceram silenciosas. Carros e motos mantiveram
seu caminho. Mas as estradas estavam silenciosas. O transporte público
parou, porque os sindicatos de transporte ajudaram a liderar a greve. A
capital, Thiruvananthapuram, lembrava a cidade de cerca de 20 anos
atrás, quando o trânsito era mais leve e a cidade mais calma. Mas não
havia nada calmo na atmosfera. Os trabalhadores estavam com raiva. O
governo em Delhi continua a traí-los

        *As maiores greves da História *
Paralisações desta magnitude não são incomuns na Índia. A maior greve
registrada na história mundial ocorreu na Índia em 2016, quando 180
milhões de trabalhadores protestaram contra o governo do
primeiro-ministro Narendra Modi. As demandas de agora são – como sempre
– múltiplas, mas centram-se na deterioração do sustento dos
trabalhadores, no desaparecimento do próprio trabalho para muitas
pessoas e no ataque político aos sindicatos.
O governo do primeiro-ministro Modi está ansioso para alterar as leis
sindicais. Tapan Sen, o líder do Centro de Sindicatos Indianos (CITU),
afirmou que as mudanças levariam, na prática, à escravização dos
trabalhadores indianos. São palavras fortes – mas não é impossível.

        *Liberalização*
Desde que a Índia conquistou a independência, em 1947, tem seguido uma
trajetória ambígua de desenvolvimento nacional. Importantes setores da
economia permanecem nas mãos do governo, com empresas estatais formadas
para garantir bens industriais essenciais aos objetivos de
desenvolvimento do país. O setor agrícola também foi organizado para que
o governo fornecesse crédito a agricultores a taxas subsidiadas e o
governo estabelecesse preços mínimos de aquisição, para assegurar que os
agricultores continuassem a cultivar alimentos essenciais.
Tudo isso mudou em 1991, quando o governo começou a “liberalizar” a
economia, privatizar o setor público, reduzir seu papel no mercado
agrícola e receber investimentos estrangeiros. O crescimento passou a
ser baseado na taxa de retorno do investimento financeiro e não no
investimento em pessoas e no seu futuro. A nova orientação política – a
liberalização – aumentou a classe média e produziu quantidades fabulosas
de dinheiro. Mas também criou uma crise agrária e produziu uma situação
precária para os trabalhadores.

        *Desmobilizar os trabalhadores*
O governo, desde 1991, sabia que não bastava privatizar o setor público
e transferir valiosos ativos públicos para a iniciativa privada. Era
preciso fazer mais duas coisas.
Primeiro, era preciso se certificar de que as empresas do setor público
fracassariam e perderiam legitimidade. O governo privou essas empresas
do setor público de verbas e deixou-as balançar ao vento. Sem
investimento, elas não conseguiram renovar-se e começaram a definhar.
Seu falência validou o argumento da liberalização, embora a sua tivesse
sido fabricada pelo corte total de investmento.
Segundo, o governo pressionou para quebrar o poder sindical usando os
tribunais para minar o direito de greve e usando o legislativo para
alterar as leis sindicais. Sindicatos mais fracos significariam
trabalhadores desmobilizar, o que significaria que os assalariados
ficariam totalmente à mercê das empresas privadas.

        *Direito de Greve*
Essa greve, como as 17 anteriores, é sobre as condições de vida e sobre
o direito de greve. Uma nova lei sindical está em tramitação.
Significaria a morte do sindicalismo na Índia. A afirmação de Tapan Sen
sobre escravidão parece menos hiperbólica nesse contexto. Se os
trabalhadores não têm poder, eles são efetivamente escravizados na
empresa. Já é o caso em fábricas que operam quase como campos de
concentração.
Andar pelas fábricas ao longo do corredor de Chennai-Coimbatore, no sul
do país ou na área de Manesar, no norte, dá uma ideia do poder destas
novas fábricas. São fortaleza, difíceis de penetrar. Ou uma prisão. De
qualquer forma, os sindicatos não são bem-vindos lá. São mantidos
distantes à força – violência política ou de músculos . Os trabalhadores
são frequentemente trazidos de longe, migrantes com poucas raízes nas
regiões. Nenhum trabalhador fica muito tempo. Assim que aparentam estar
estabelecidos, são removidos.
A existência de trabalhadores temporários e sindicalistas perseguidos
cria um ambiente de trabalho árido. A cultura da solidariedade da classe
trabalhadora se desgasta, a violência social cresce – é a sementeira da
política neofascista.

        *Esperança no Estado de Kerala*
Kerala é um lugar único na Índia. Aqui, a cultura da luta continua
forte; o orgulho pela história da transformação social de Kerala é
evidente. Ao longo dos últimos cem anos, o Estado intensificou seu
ataque à hierarquia e à divisão. Práticas sociais arcaicas foram
derrotadas, e o movimento de esquerda cultivou a manifestação pública
como uma característica normal da vida social.
Quando a esquerda está no poder – como está agora – ela não introduz
novas políticas por decreto. Os movimentos sociais desenvolvem campanhas
públicas para conscientizar e construir uma vontade política por trás
dos projetos. Esta é uma das razões pelas quais o ar de desesperança não
contamina Kerala.
Em outras partes da Índia, cerca de 300 mil pequenos agricultores
cometeram suicídio, boa parte em razão de dívidas agrárias. O professor
Siddik Rabiyath, da Universidade de Kerala, conta que os pescadores têm
uma dívida maior do que os agricultores, mas que não cometem suicídio.
Ele sugere que isso pode ser devido à esperança de que a captura do dia
seguinte irá resgatá-los da dívida. E também por causa da atmosfera
geral de esperança em Kerala.
Ano passado, quando este Estado de 35 milhões de habitantes ficou
submerso numa inundação, os pescadores pegaram seus barcos e formaram a
linha de frente no resgate. Não fizeram isso por dinheiro ou fama, mas
devido à tradição de solidariedade social do Estado e à cultura de
manifestação pública aqui presente.

        *Greve*
As linhas ferroviárias de Thiruvananthapuram não funcionaram. Os
grevistas sentaram-se nos trilhos e bloquearam os trens. O mesmo ocorreu
em Assam, no extremo nordeste da Índia. Eles também bloquearam linhas
ferroviárias. A Autoestrada National 16, em Bhubaneswar, no estado
oriental de Odisha, tornou-se um estacionamento. Carros e motos não
podiam se mover. Escolas e universidades ficaram silenciosas. Os
sindicatos patrulhavam as áreas industriais fora da capital, Delhi, e de
Chennai. Os ônibus públicos em Mumbai permanecem em seus estacionamentos
e as paradas, desertas.
O governo do Primeiro Ministro Narendra Modi permaneceu em silêncio.
Haverá eleições no final desse ano. A temperatura na Índia não está a
favor de Modi. Mas essa não é a razão de seu silêncio. Ele criou o
hábito de ignorar as ações públicas, de se manter acima de tudo,
fingindo que nada está ocorrendo. Se a nova lei sindical entrar em
vigor, a Índia abandonará qualquer compromisso com a democracia no local
de trabalho. Isso é parte da lenta erosão do processo democrático no
país, um movimento em direção ao horror da hierarquia e dominação. Os
trabalhadores não querem isso. Estão nas ruas. E têm outros planos para
seus futuros.
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        Vijay Prashad
Vijay Prashad é o diretor do Tricontinental: Institute for Social
Research e editor chefe da LeftWord Books. É chefe de redação do
Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute. Ele escreve
regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick e BirGün.
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18/1/2019

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