terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A atualidade da crítica anti-imperialista

 
 

POR
Luís Eduardo Fernandes

A crítica ao imperialismo perdeu espaço no debate da esquerda
internacional a partir da década de 90, a ponto de alguns intelectuais
progressistas insinuarem que o conceito esteja ultrapassado. Eles estão
errados. O imperialismo continua vivo, e pensá-lo rigorosamente é mais
urgente que nunca.

“O imperialismo estadunidense deve ser derrotado”, “o golpe de 2016
serviu aos interesses imperialistas” ou “a China está virando um país
imperialista”. São frases frequentemente ouvidas nos espaços políticos e
nas redes sociais. De fato, nos últimos anos o interesse por denunciar e
estudar as novas formas imperialistas ganhou maior espaço no Brasil.
Quem sabe, a conjuntura de ascensão da extrema direita no mundo, golpes
políticos em países periféricos e radicalização do neoliberalismo tenha
contribuído para esse crescente interesse.

Logo após a queda do muro de Berlim, o economista indiano Prabhat
Patnaik realizou uma crítica à esquerda ocidental pelo abandono da
categoria “imperialismo”. Patnaik perguntava-se se o fenômeno da chamada
“globalização” não seria, na verdade, a expressão mais pura e
desenvolvida da dominação imperialista e quão grave era à esquerda, em
especial marxista, abandonar o imperialismo como categoria teórica – com
consequências desastrosas para a estratégia política.

O economista indiano estava certo. Pouco a pouco, principalmente após as
primeiras experiências nesse século de governos populares na América
Latina, com graus diferentes de radicalidade no enfrentamento ao
neoliberal e ao imperialismo, os movimentos sociais, partidos de
esquerda, militantes sindicais e intelectuais progressistas buscam
retomar a centralidade da reflexão anti-imperialista. Apesar da
contribuição teórica e política inestimável de líderes revolucionários
do século XX – como Lênin, Hilferding, Bukharin, Rosa Luxemburgo,
Trotsky e outros – assim como as profundas transformações do capitalismo
contemporâneo, o imperialismo também não é exatamente o mesmo.


    Para além das vulgarizações

Essa saudável retomada, portanto, sem o devido aprofundamento teórico e
contato com as lutas populares em curso, precisa se precaver de dois
erros comuns, que rondam o imaginário do “senso comum” progressista: 1)
o imperialismo se reduziria a uma questão “geopolítica”, e até mesmo a
“teorias da conspiração” para explicar o poder concentrado de algumas
nações em detrimento de outras; por outro lado, 2) o “economicismo”, que
enxergaria no imperialismo apenas um fenômeno econômico vinculado a
exportação de capitais dos países mais ricos para os mais pobres e,
consequentemente, a exploração dos primeiros sobre os últimos.

Há, certamente, um elemento de verdade nas duas interpretações, por mais
unilaterais e simplistas que sejam. No caso da primeira, trata-se da
constatação correta no sistema interestatal global: a aguda desigualdade
no exercício do poder e das soberanias nacionais entre os países. Por
sua vez, a segunda remete a uma leitura limitada da crítica de Lenin ao
imperialismo. Um dos principais objetos da crítica madura do
revolucionário russo, que procurou captar as múltiplas determinações do
fenômeno, relacionando-o com a nova fase da história econômica do
capitalismo: a era monopólica.

Em Imperialismo, fase superior do capitalismo//encontramos uma análise
materialista rigorosa das mudanças, então recentes, no modo de produção
capitalista (a consolidação do capitalismo monopolista e o
desenvolvimento do capital financeiro) e suas consequências no
comportamento e orientação dos Estados capitalistas centrais, nas
disputas interestatais (a política imperialista, a partilha do mundo em
áreas de influência, divisão centro-periferia etc.) e na dinâmica das
classes sociais (oligarquia financeira e aristocracia operária). Ou
seja, o imperialismo é um fenômeno mundial que articula tendências no
campo econômico, político e militar.

Esse preâmbulo é fundamental para compreendermos o imperialismo como um
dos principais elementos da economia política do capitalismo
monopolista. O capitalismo, ao contrário de outros modos de produção,
depende cada vez mais de sua expansão através do mercado mundial. O
desenvolvimento extremamente desigual não é apenas sentido no nível
local e nacional, mas também internacionalmente. Essa desigualdade
econômica e política se expressa por meio de diversos mecanismos que
drenam ou transferem riquezas dos chamados países periféricos para os
países centrais.

*A reinvenção do sistema imperialista*

Em sua época clássica, o imperialismo se materializou na política
neocolonialista e na partilha do mundo, de acordo com os interesses das
potências industriais. A exportação de capitais sobre-acumulados e a
apropriação de riquezas e lucros, originados na periferia, eram
legitimadas por mecanismos institucionais extra econômicos do sistema
neocolonial. As revoluções na Rússia, China e os movimentos de
libertação nacional no sul global, principalmente no pós-1945, impuseram
uma derrota parcial ao imperialismo em sua faceta neocolonial.

Essa derrota não foi definitiva. O Império Britânico deu lugar aos EUA
na liderança do sistema imperialista. A liderança estadunidense, como
bem sintetizou Ellen Wood, moldou o “Império do Capital”. Assim, as
desigualdades entre países, no pós-1945, passaram a se legitimar quase
exclusivamente através das relações de mercado. O imperialismo, como nos
ensinou Harry Magdoff, não é uma matéria de escolha para a sociedade
capitalista: é o meio de vida dessa sociedade. A ascensão dos EUA
representou a maturidade do desenvolvimento do capitalismo monopolista.
No final dos anos de 1970, diante do avanço de diversos movimentos
contestatórios internos e da concorrência entre transnacionais
estadunidenses, alemãs e japonesas, as lógicas imperialista e
capitalista aprofundaram mudanças em suas estratégias e padrões de
acumulação.

Além da expansão do complexo industrial-militar e suas centenas de bases
em todos os continentes, como uma forma de incorporar parte do excedente
econômico sobreacumulado nos EUA e em outras potências, a atrofia dos
sistemas democráticos e a hierarquização monetária mediante à hegemonia
do dólar foram parte desse remodelamento. Os sistemas financeiros,
centralizados no eixo anglo-saxão (Wall Street e London City), passaram
a ser os grandes detentores e financiadores de títulos e outros papéis
“fictícios”, gerando lucros rápidos e especulativos para a fração
dominante da classe capitalista, a oligarquia financeira.


    Pensando o imperialismo desde o sul

Para o pensador franco-egípcio Samir Amin, o imperialismo atual, ou
tardo-imperialismo, encontra suas bases econômicas na era do
“capitalismo monopolista generalizado”. Segundo Amin, essa fase se
caracteriza pelo avanço da integração mundial dos mercados monetários e
financeiros, assim como pela centralização do poder dos diretores dos
monopólios e seus servidores assalariados. O avanço da mundialização e
liberalização do capital no advento do neoliberalismo se contrasta com
os limites nacionais e locais para a mobilidade da força de trabalho, a
fim de garantir maiores taxas de exploração.

A “arbitragem global do trabalho” é uma categoria utilizada pelo autor
para compreender como a “mundialização da Lei do valor” é a base
sócio-econômica das transferências de riqueza na atual época. Nesse
sentido, Amin propõe que uma “tríade”, ou “imperialismo coletivo”,
passou a liderar a lógica das transferências de riqueza da periferia
para o centro. Liderado pelos EUA, esse “imperialismo coletivo” também
teria participação central na Alemanha e no Japão.

Amin destaca que o imperialismo contemporâneo se baseia na defesa de
cinco monopólios no mercado mundial: os fluxos financeiros e monetários,
as fronteiras tecnológicas, o acesso aos recursos naturais do planeta,
os meios de comunicação e as armas de destruição em massa.

A formulação de Amin foi desenvolvida, ao longo de uma longa trajetória
política e intelectual, em diálogo com outras escolas que também
tentaram realizar críticas ao “novo” imperialismo. A escola do
“capitalismo monopolista” ou da /Monthly Review/, referenciada entre os
intelectuais estadunidenses – como Paul Baran, Paul Sweezy, Leo Huberman
e Harry Magdoff -, desenvolveu a tese de que a sobreacumulação do
excedente criava a necessidade de um departamento na economia dos EUA
(gastos militares) e, consequentemente, uma política belicista
permanente para impulsionar esses investimentos. A escola das “trocas
desiguais”, de Arghiri Emmanuel e Charles Bettlheim, sustentava a
natureza desigual do comércio internacional, por meio da transferência
de valores dos países periféricos para os países centrais, e influenciou
o movimento terceiro mundista, os desenvolvimentistas latino-americanos
e até o maoísmo.

Além da reflexão teórica, parte desses intelectuais anti-imperialistas
participaram de governos progressistas ou revolucionários na Ásia e na
África. Na América Latina, as principais escolas de renovação da crítica
ao imperialismo foram a “Teoria Marxista da Dependência” (TMD) e o
“marxismo endogenista”. A TMD, desenvolvida por Ruy Mauro Marini,
Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, se propõe a desvendar a
“legalidade específica” do capitalismo latino-americano. Essa legalidade
estaria permeada pela dominação imperialista, pela superioridade
tecnológica e produtiva das empresas transnacionais, e pelo seu dreno
dos lucros e das riquezas locais, obrigando as burguesias locais a
superexplorarem para compensar a transferência de riquezas imposta pelos
países imperialistas.

<https://autonomialiteraria.com.br/loja/jogos/kapital-quem-ganhara-a-luta-de-classes/>

O chamado marxismo endogenista, por sua vez, sobretudo a partir da
análise do intelectual equatoriano Augustín Cueva, negava a hipótese de
leis específicas do capitalismo latino-americano propostas pela TMD.
Mais próximo dos partidos comunistas, Cueva sustentou as
particularidades históricas do desenvolvimento latino-americano, a
relação entre o capitalismo monopolista e o “fascismo” das ditaduras
civis-militares e os limites da transição destas ditaduras para as
“democracias restritas”.

Essa é apenas uma pequena amostra da densidade e polifonia da crítica da
economia política do imperialismo na segunda metade do século XX. Essa
crítica é reforçada pelo advento de uma série de movimentos, governos e
experiências populares, revolucionárias e anti-imperialistas. Nessa
temática, muitas vezes os chamados “marxismo ocidental e oriental” se
entrelaçam e dialogam.

Esse resgaste não serve como mera peça de museu para alguns curiosos. A
questão crucial é: nesse século, o imperialismo ainda vive? A resposta
é: não somente vive, como se torna uma necessidade ainda mais
impreterível diante da crise do capitalismo. Uma crise de
características sistêmicas, no que diz respeito à supercapitalização, e
que envolve tanto queda nas taxas de lucro dos monopólios quanto
dificuldade de realização dos capitais sobreacumulados.

Principalmente após 2008, os centros imperialistas, liderados pelo eixo
anglo-saxão, dependem cada vez mais de defender e ampliar a dominância
aos cinco monopólios assinalados por Samir Amin. As principais
características do imperialismo maduro, ou tardio, se revelam como a
hegemonia financista, o domínio no interior das cadeias globais de
valor-trabalho, a imposição da austeridade e da ideologia fiscalista
para a periferia e o fenômeno que chamamos de “ocidentalização periférica”.

O predomínio da atividade financeira, por meio da proeminência do
capital monetário e, em especial, do chamado “capital fictício”,
liberalizou mercados e mundializou os lucros. No entanto, apesar do
caráter transnacional de grande parte das empresas financeiras, os
principais mercados estão concentrados nos EUA e na Inglaterra. Tony
Northfield, que chegou a trabalhar como executivo na London City,
pesquisou, em sua tese de doutorado, a transformação do imperialismo
colonial britânico em um novo imperialismo baseado nas finanças, através
do domínio de uma série de títulos e mecanismos financeiros concentrados
em Londres. Esses títulos e mecanismos, segundo Northfield, são formas
mais agressivas de transferência de riquezas das periferias para os
centros imperialistas, tendo em vista que, hoje, muitas empresas não
financeiras, a partir dos seus departamentos de tesouraria, aplicam e se
utilizam desses mecanismos para ampliar seus lucros. O Reino Unido é a
segunda praça financeira mais importante no mundo, perdendo apenas para
os EUA.

A dominância das fronteiras tecnológicas, patentes e propriedades
intelectuais, ao lado do domínio financeiro, forjaram uma nova divisão
geográfica econômica imperialista no capitalismo contemporâneo sediadas
no norte global, onde estão as empresas transnacionais, detentoras de
títulos e recursos financeiros, intelectuais e tecnológicos; a produção
industrial passa a se concentrar na Ásia; populosos países exportadores
de matérias-primas e commodities, na América Latina e em África; e os
paraísos fiscais, onde grande parte dos capitais transferidos encontram
alto rendimento.

O domínio imperialista dessas cadeias internacionais de valor-trabalho
foi estudado, principalmente, por dois pesquisadores: o britânico, John
Smith, e a indonésia, Intan Suwandi. Para eles, a base econômica do
imperialismo tardio é a superexploração dos trabalhadores do sul global.
Nessa divisão geoeconômica, os países periféricos oferecem para o
capital transnacional taxas mais altas de exploração dos trabalhadores e
um exército de desempregados que também influencia na maior exploração
dos trabalhadores do norte global.

No entanto, essa estrutura imperialista não “anda sozinha”. As relações
de poder também são fundamentais para se compreender as “amarras
imperialistas”. O casal de economistas indianos, Utsa e Prabhat Patnaik
(ambos comunistas), propôs uma interpretação “concreta” do imperialismo
no século XXI, relacionando questões como a fome, alto desemprego e as
políticas de austeridade com as “amarras” econômicas e institucionais da
lógica imperialista.

Para os últimos autores, a dominância do “valor do dinheiro” e da
“deflação da renda” seriam dois dos principais instrumentos de imposição
dos centros imperiais para os países periféricos. O valor do dinheiro,
para os Patnaik, se relaciona com a ascensão da hegemonia do dólar,
desvinculado do padrão-ouro depois de 1971. O dólar, para se tornar
soberano no sistema monetário internacional, depende de uma série de
pré-condições, a fim de gozar de estabilidade e segurança junto às
classes capitalistas. Diante do crescimento da oferta por produtos
tropicais e da necessidade de estabilidade no “valor dinheiro”, o
imperialismo contemporâneo opera uma série de contratendências, gerando
deflação da renda na periferia. A deflação na renda garante os baixos
preços dos produtos tropicais, a tendência ao subconsumo nas
ex-colônias, o grande desemprego e a estagnação econômica.

Esses instrumentos estão longe de ser “puramente econômicos”, são
políticos, e dependem da articulação entre classes capitalistas e o
amoldamento institucional dos Estados periféricos, com a adoção do
fiscalismo e da austeridade como políticas estruturais. A austeridade é
sempre uma janela de oportunidades para o capital transnacional: a
crença em uma eterna “crise fiscal” do Estado legitima uma série de
privatizações e transferências de riquezas públicas para o capital privado.

No campo ideocultural, a intensificação desigual da divisão do trabalho
entre o “norte” e “sul global” complexifica a influência imperialista na
educação política e moral das classes dominantes periféricas e na
“domesticação” de movimentos potencialmente contra-hegemônicos. Além dos
organismos multilaterais tradicionais (Banco Mundial, FMI, OEA, etc.),
desde fins da década de 1970 há uma complexa rede cosmopolita de
financiamentos internacionais, ONG´s, entidades patronais, sindicais e
movimentos sociais que atuam formando lideranças e organizações de
diferentes espectros políticos, mas que necessariamente assumem o
desenvolvimento capitalista como o único horizonte possível para a
humanidade.

Esse fenômeno, estudado por autores como James Petras, René Dreifuss e
Virgínia Fontes, pode bem ser chamado de de “ocidentalização
periférica”, termo utilizado por Carlos Nelson Coutinho, ao descrever
como os países metropolitanos influenciam o processo de formação e
“democratização restrita” da sociedade civil na periferia, o que não
deixa de ser uma expressão ideológica do imperialismo.


    O imperialismo pode ser derrotado

O imperialismo, infelizmente, segue vivo. E , no entanto, como parte do
capitalismo, o imperialismo não é eterno. As diversas lutas
anti-imperialistas no mundo, como as atuais revoltas de camponeses na
Índia, as insurreições populares nas ruas da América Latina, o eficiente
combate à pandemia na China e em outros países do “socialismo asiático”,
as mobilizações populares contra os crimes ambientais cometidos pelas
transnacionais do norte global são alguns exemplos de lutas e conquistas
diante o imperialismo tardio.

Essas lutas e conquistas ficam como lição para a esquerda mundial.
Qualquer experiência de ascensão popular ao poder tem o desafio de
enfrentar as amarras imperiais e seus vínculos internos, para avançar em
conquistas por um desenvolvimento social, econômico e ambiental
alternativo, soberano e potencialmente socialista.

No Brasil, em especial, cabe o desafio de reconstruir uma cultura
política ampla e autêntica de esquerda que tenha o anti-imperialismo e o
socialismo como parte dos seus fundamentos. Se no século XX, o
anti-imperialismo foi uma das principais expressões nacionais de
processos revolucionários de transição socialista, no século XXI a
recuperação da crítica radical ao capitalismo e a defesa de uma outra
sociedade são cruciais para renovarmos a crítica e a luta contra o
imperialismo.


      Sobre os autores


          Luís Eduardo Fernandes
          <https://jacobin.com.br/author/luiseduardofernandes/>

é professor de História e doutorando no programa de pós-graduação em
Serviço Social da UFRJ. Organizador do livro “Introdução ao Imperialismo
Tardio”, lançado pela editora Ruptura.

Em
JACOBIN
https://jacobin.com.br/2022/02/a-atualidade-da-critica-anti-imperialista/
5/2/2022

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