domingo, 6 de fevereiro de 2022

A estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil

 Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/estagnacao_futuro.html#asterisco
6/2/2022


      Eleutério F. S. Prado [*]
A economia capitalista no Brasil foi fortemente afetada pela crise do
novo coronavírus que se iniciou em 2020 e que ainda não tem data certa
para acabar: o nível do PIB caiu, o desemprego se elevou e a
desigualdade de renda e riqueza aumentou. Considerando que a crise atual
não vai durar para sempre, que talvez termine em 2022, o que os próximos
anos reservam para os brasileiros? Sabendo que ela se encontrava
estagnada ou quase-estagnada pelo menos desde o começo dos anos 1990, o
que os brasileiros, especialmente os mais pobres, podem esperar do futuro?

Uma resposta será fornecida neste artigo, mas ela só virá ao final da
exposição.

Os economistas em geral acreditam na capacidade da política econômica de
produzir o crescimento. Os neoliberais têm fé no mercado: se o Brasil
tem mostrado pouco potencial para elevar o PIB é porque o Estado cometeu
sucessivos erros estratégicos no passado: descuidou da educação e da
estabilidade macroeconômica; pecou pelo protecionismo e pelo estatismo.
A solução que propõem são as reformas liberalizantes, as quais, em
última análise, visam aumentar a taxa de exploração da força de trabalho
e desregular os mercados para que o capital possa exercer o seu mando
sem entraves burocráticos.

Os keynesianos confiam na capacidade do Estado para criar as condições e
suplementar os mercados para que estes possam se desenvolver: é preciso
elevar o investimento público, manter a empresas estatais estratégicas,
sustentar um câmbio desvalorizado, taxar a exportação de bens primários,
implementar políticas efetivas de distribuição da renda etc. Se o Brasil
tem crescido pouco desde os anos 1990, isso se deve ao “thatcherismo
tupiniquim” que, abandonando o nacionalismo econômico, produziu a
desindustrialização, a reprimarização e a financeirização da economia
brasileira, assim como uma enorme concentração da renda e da riqueza.

Se é evidente que a política econômica tem, sim, um papel no
desenvolvimento econômico, julga-se aqui que é preciso colocar em dúvida
quão decisiva ela pode ser. Como ficou implícito nos dois parágrafos
anteriores, não existe qualquer estratégia de crescimento sem uma
compreensão do capitalismo e sem uma base ideológica classista. Os
neoliberais falam em nome de uma burguesia interna e globalista e os
nacionalistas constroem um discurso sobre a possibilidade de um pacto
interno de parte da burguesia com os trabalhadores em geral. Até que
ponto elas podem contrariar a lógica do capital que vem se impondo nos
últimos dois séculos e que se impõem agora, com mais força e mais
abrangência, globalmente? Até que ponto, por exemplo, certas propostas
que vem a teoria monetária moderna não entram em conflito com os
imperativos do capital?

É preciso ver que o capitalismo desde a sua emergência no século XVI,
primeiro como capitalismo comercial e depois como capitalismo
industrial, constituiu-se como um sistema econômico vocacionado para
abranger o mercado mundial. Eis que a história apenas comprova aquilo
que um exposição dialética célebre já apontara em meados do século XIX:
o capital é um sujeito automático que tende a derrubar todos os
obstáculos que se lhe antepõem, sejam eles de natureza puramente
geográfica sejam elas de natureza institucional.

Eis que o capitalismo tem de ser pensado como uma totalidade concreta em
desenvolvimento, a qual está baseada na troca generalizada de
mercadorias. Estas são produzidas privadamente, mas são socializadas por
meios dos mercados. Daí que o trabalho que conta para constituir o valor
não é o trabalho concreto, mas aquele socialmente atuante na produção de
mercadorias e que foi reduzido a trabalho abstrato pelo processo social.

Essa sociabilidade requer, pois, o dinheiro não só para intermediar as
trocas, mas para expressar concretamente o trabalho abstrato, medir o
valor. A lógica da produção de mercadorias não é apenas uma lógica
restrita de geração de valor, mas uma lógica que tende a se
universalizar. O próprio valor tende, por isso, a se tornar valor que se
valoriza, ou seja, capital.

É por isso também que não se pode pensar rigorosamente o capitalismo
como um sistema de produção que visa intrinsecamente atender as
necessidades humanas em geral. O seu princípio consiste em fazer o
dinheiro gerar sempre mais dinheiro e, somente quando essa meta
sistêmica é atingida, podem ser providas tais necessidades, não
igualmente e para todos, mas sim diferencialmente de acordo com a
capacidade das pessoas de atenderem as necessidades da valorização do
capital.

O sistema do capital exige, assim, que as pessoas se tornem indivíduos
modernos, agentes racionais que se contentam em se submeter a esse poder
social objetivo na esfera da produção e da circulação de mercadorias. E
a consequência dessa subsunção vem a ser o estranhamento e a alienação –
algo que implica, como sabe, uma interversão do sujeito em objeto por
meio de sua participação em um processo real que tem moto próprio.

A lógica expansiva do sistema exige também que os estados nacionais se
tornem competidores na arena formada pelo mercado mundial. Se devem
garantir as condições da reprodução do capital no âmbito nacional, são
forçados a se abrirem ao comércio internacional, submetendo-se às forças
que aí imperam. Como essa dupla determinação é, em última instância,
irresistível, pode-se compreender por que as políticas econômicas em
geral encontram-se limitadas em sua capacidade de realizar as aspirações
das forças políticas na criação de uma forma específica de
desenvolvimento nacional. E isso ocorre já quando elas se expressam na
linguagem da racionalidade econômica.

Os constrangimentos impostos às políticas econômicas implementadas no
âmbito dos estados nacionais é, sendo enfático, a contrapartida
necessária do movimento insaciável de autovalorização do capital. Os
desejos não deixam de sonhar que se realizarão, mas as determinações do
capital nunca deixam de acordá-los para o pesadelo do mundo real. Ora, a
globalização é uma manifestação fundamental desse processo que acossa a
todos no mundo atual. Ela deveio historicamente por meio de ondas
sucessivas, mas ocorreu em efetivo porque este sempre foi o télos
imanente do processo de acumulação. E isso implícito no trecho que segue
da obra de Marx.^[1] <#notas>

    É apenas o comércio exterior, o desenvolvimento do mercado em
    mercado mundial, que faz com que o dinheiro se transforme em
    dinheiro mundial e o trabalho abstrato em trabalho social. A riqueza
    abstrata, o valor, o dinheiro e, portanto, o trabalho abstrato,
    desenvolvem-se à medida que o trabalho concreto se torna uma
    totalidade de diferentes modos de trabalho abrangendo o mercado
    mundial. A produção capitalista baseia-se no valor ou na
    transformação do trabalho incorporado no produto em trabalho social.
    Mas isso só ocorre com base no comércio exterior e no mercado
    mundial. Esta é, ao mesmo tempo, a pré-condição e o resultado da
    produção capitalista.

O poder do capital como metafísica realmente operante no devir da
sociedade moderna tem sido subestimado, mesmo quando ele vem a ser
reconhecido como um sujeito automático. As teorias econômicas em geral,
entretanto, não o reconhecem e, por isso, confiam excessivamente no
poder da política econômica. Contudo, é possível mostrar como a sua
lógica se impõe de modo “silencioso” a todos os países que moram no
planeta Terra e que se encontram fortemente entrelaçados pelo mercado
mundial. É bem evidente, por exemplo, que a lei da tendência à igualação
da taxa de lucro atua efetivamente em escala global, ainda que
respeitando o grau de desenvolvimento.^[2] <#notas>

Os gráficos da figura abaixo, que cobrem um período de 70 anos do
evolver da economia global, exibem um resultado surpreendente.^[3]
<#notas> Mostram que as taxas de lucro médias dos países ricos (G7), dos
países do G20 e dos mercados emergentes (ME)^[4] <#notas> apresentaram
todas um mesmo padrão geral de evolução: tenderam a subir entre 1950 e
1967 e a cair após 1997. Nos países ricos, tenderam a cair entre 1967 e
1982 e, nos países emergentes, elas começaram a cair em 1974 sem nunca
se recuperarem tendencialmente. Nos países do G7, ao contrário do que
ocorreu nos países do ME, houve uma recuperação das taxas de lucro entre
1982 e 1997. O caso da China, não tratado aqui, mostra-se como uma
anomalia nesse padrão.

A crise de lucratividade dos anos 1970 atingiu quase todos os países,
mas a recuperação neoliberal ficou restrita aos países desenvolvidos.
Ora, isso ocorreu em virtude de um impacto diferenciado das políticas
neoliberais que então se difundiram. Estas se orientaram desde o início
para reforçar o poder internacional dos países imperialistas, em
especial dos Estados Unidos.

Taxa interna de retorno do capital (%).

Nos países centrais, elas reduziram os nível dos salários reais dos
trabalhadores, transferiram as atividades intensivas em trabalho para a
Asia, promoveram a liberação financeira etc. Nos países dependentes, a
elevação da taxa de juros nos EUA para combater a inflação produziram
crises nas economias periféricas; daí em diante elas tiveram de se
submeter ao sistema financeiro internacional, o que reforçou a sua
dependência. Ao invés de importador, muitos deles – como o Brasil –
tornaram-se exportadores de capitais.

A figura em sequência apresenta a taxa interna de retorno do capital
para o Brasil, cujo padrão, é bem evidente, segue grosso modo o padrão
do agregado das economias emergentes, antes apresentado. Com uma
diferença importante: aoinvés de as taxas de lucro se estabilizarem
entre 1982 e 1997, tenderam então a cair fortemente. Assim, a transição
democrática ocorrida a partir de 1985 foi acompanhada de uma tendência
ao declínio econômico, o que se deveu operacionalmente às políticas
neoliberais que sancionaram a nova forma subordinação, liderada pelas
finanças, posta pelas potências imperialistas.

Taxa interna de retorno do capital (%) no Brasil.

Agora, é preciso perguntar por que a taxa de lucro é tão importante no
sistema capitalista em geral. Ora, sabe-se desde Marx que “a taxa de
lucro é o aguilhão da produção capitalista”, pois a “valorização do
capital é a sua única finalidade”. Em consequência, os períodos
históricos em que a taxa de lucro tende a subir são caracterizados como
de euforia econômica; ao contrário, quando ela tende a cair tem-se
sempre estagnação ou mesmo depressão. A sua queda, como diz o autor de
/O capital,/ retarda o investimento, promovendo “superprodução,
especulação, crises, capital supérfluo ao lado de população supérflua”.
Ora, foi exatamente isso o que ocorreu no Brasil nos últimos cinquenta
anos. Mas essa tendência, entretanto, foi episodicamente contrariada
entre 2002 e 2010 – nos governos Lula, como se sabe – em virtude de um
boom nos mercados internacionais de /commodities./

Taxa de investimento bruto (% do PIB) no Brasil.

A conexão entre o evolver da taxa de lucro e o evolver da taxa de
acumulação encontra-se hoje bem documentada estatisticamente. Quando
cresce a taxa de lucro, a taxa de investimento tende a subir junto com
ela. Quando cai, essa última tende igualmente a declinar. É isto que se
vê quando se compara a evolução da taxa interna de retorno do capital no
Brasil com a taxa de crescimento do estoque de capital. A figura em
sequência mostra essa correlação com uma divergência importante. A taxa
de lucro começa a cair já em 1974, mas a taxa de investimento muda de
sentido apenas a partir de 1982. Ora, esse retardo de aproximadamente
seis anos se deve ao chamado II PND, plano por meio do qual a ditadura
militar tentou manter o seu projeto de Brasil grande.

Posto esse quadro geral em que tento combinar sinteticamente um pouco da
teoria crítica do modo de produção capitalista com dados empíricos
tirados das contas nacionais, tem-se agora condições de especular sobre
o futuro dessa sociabilidade no Brasil. O que se pode esperar?

É possível pensar em dois cenários alternativos: em um deles seria
mantida a política neoliberal que tem prevalecido desde 1990, a qual –
note-se – busca subordinar a estrutura econômica do país aos mandamentos
do capital internacional e às condições institucionais impostas
internacionalmente pelas potências imperialistas; no outro, essa
política “entreguista” seria substituída pelo novo desenvolvimentismo, o
qual pensa o Brasil como um sujeito histórico capaz de certa
autodeterminação.

Num caso, ter-se-ia mais do mesmo, mas no caso alternativo haveria
mudanças importantes. Como o novo desenvolvimento não dissocia o sistema
do capital do Estado como as correntes liberais, prevê a adoção de um
“intervencionismo moderado” com os seguintes objetivos: reverter a
desindustrialização, elevar o investimento público, manter o câmbio
desvalorizado, sustentar taxa de juros baixas, taxar a exportação de
/commodities/ com o fim de neutralizar a vantagem comparativa na
produção de produtos primários.

Como se deixou claro anteriormente, a política econômica em geral tem
alguma eficácia na busca de certos objetivos, mas ela não pode
contrariar substantivamente às tendências mais profundas da acumulação
de capital, a qual acontece agora como um processo global que integrou
fortemente todas as nações por meio do mercado mundial. De qualquer
modo, é preciso se preocupar na luta política com as formas
institucionais e como as políticas estatais, porque elas pode ser mais
ou menos desfavoráveis para os trabalhadores em geral.

No entanto, como foi visto no primeiro gráfico aqui apresentado, a
economia mundial se encontra numa fase de longa depressão. E a economia
capitalista no Brasil não é uma exceção, mas um caso paradigmático. Em
consequência, não se pode prever que essa economia possa alcançar
novamente um nível de desenvolvimento acelerado tal como ocorreu no
período após o fim da II Guerra Mundial até 1980, aproximadamente. Ora,
o autor que aqui escreve pensa que o capitalismo enquanto modo de
produção se encontra agora no seu ocaso e que, por isso, as dificuldades
para obter um crescimento crível provavelmente aumentarão em relação ao
passado recente. Assim, ele não prevê que o futuro do sistema econômico,
mas também da sociedade brasileira como um todo, possa ser próspero,
risonho e franco.

É preciso, pois, construir a alternativa de um socialismo democrático.

[1] O presente autor deve essa citação, retirada do Livro III das
/Teorias do mais-valor,/ a um escrito de Tony Smith: /The place of the
world Market in Marx’s systematic theory./
[2] Quando maior o grau de desenvolvimentode um país menor deve ser a
sua relação produto/capital, que é, como sabe, um determinante da taxa
de lucro. O outro determinante importante é a participação do lucro no
produto nacional (PIB).
[3] Todas as taxas internas de retorno aqui apresentadas foram obtidas
das Penn World Table 10.1. Elas são comparáveis porque as séries foram
construídas com uma mesma metodologia. A agregação das taxas do G7, G20
e ME foram feitas por Michael Roberts e publicadas em seu blog The next
recession.
[4] Fazem parte do G7: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália,
Japão e Reino Unido. O G20, além desses sete, inclui outros doze países:
África do Sul, Argentina, Brasil, México, China, Coreia do Sul, Rússia,
Índia, Indonésia, Turquia, Austrália, Arábia Saudita. Vinte e sete
nações formam o ME, entre elas, aquelas doze já elencadas e que compõem
o G20.


        30/Janeiro/2022


    [*] Professor Titular e sênior do Departamento de Economia da
    FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blog na internet:
    https://eleuterioprado.blog.


    O original encontra-se em
    eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/ <https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/>


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