sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Como o misticismo e a pseudociência se tornaram centrais para o nazismo

 

 

UMA ENTREVISTA COM
Eric Kurlander
Tradução de
Gercyane Oliveira

Ideias sobrenaturais estavam se generalizando na virada do século XX, em
especial na Alemanha. Porém, na crise social após a Primeira Guerra
Mundial, as ideias esotéricas e pseudocientíficas viraram uma ferramenta
poderosa de mobilização nazista, direcionadas para demonizar os judeus e
a esquerda.


UMA ENTREVISTA DE

Ondřej Bělíček

No fim do século XIX, a Europa industrializada era o epicentro daquilo
que Max Weber denominou de “desencantamento do mundo”. Práticas
religiosas tradicionais vinham sendo desafiadas pelas forças da
modernidade, com a Igreja incomodada com o avanço do Iluminismo, ciência
e secularismo.

Entretanto, geralmente a famosa citação Weber omite a segunda parte de
sua tese – que o mundo estava se encantando também por algo novo. Novos
tipos de doutrinas esotéricas, religiosas e fronteiras emergiam como
alternativas aparentemente modernas à religião e à ciência tradicional.

Isso incluía a antroposofia (uma variação austro-alemã sobre a doutrina
esotérica da teosofia, que combinavam elementos da espiritualidade
oriental com cristianismo, filosofia ocidental e ciência natural);
ariosofia (uma versão mais explicitamente racialista e eugenista da
teosofia), a Teoria do Gelo Mundial (uma teoria “acientífica” que
insiste que o gelo é a substância básica por trás de todos os processos
tanto cósmicos como geológicos e evolutivos da terra), astrologia e
parapsicologia (o estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais). Essa
tendência incluiu também religiões alternativas, New Age, homeopatia,
folclore e um interesse renovado pelo hinduísmo e budismo.

Em seu livro /Hitler’s Monsters/
<https://yalebooks.yale.edu/book/9780300189452/hitlers-monsters>, Eric
Kurlander analisa a específica influência de ideias sobrenaturais que
tiveram ascensão e as consequências da ideologia nazista. Ele argumenta
que a invocação e apropriação de crenças populares esotéricas,
pseudocientíficas e religiosas ajudaram o partido de Adolf Hitler a
atrair apoiadores, desumanizar seus inimigos e perseguir suas ambições
imperiais e raciais. Porém – como diz o historiador a Ondřej Bělíček –,
essas ideias também se enraizaram em um contexto sociopolítico
particular – que se reproduz, se não na mesma escala, também em nosso
próprio presente.

------------------------------------------------------------------------

OB

*No fim do século XIX, desenvolveu-se um forte movimento dedicado a
ideias sobrenaturais, doutrinas esotéricas, espiritualismo e ocultismo.
O que esse movimento na Alemanha e na Áustria teve de diferente, em
comparação a outros lugares onde essas tendências também floresceram?*

EK

A singularidade é dupla. Por um lado, o investimento naquilo que eu
chamo de “imaginário sobrenatural” na Alemanha e na Áustria tinha uma
influência maior. Não se tratava só de um aspecto discreto do dia a dia,
tal qual quando você vai à igreja ou uma sessão espírita no domingo. Foi
algo integrado à política e às teorias sociais de forma muito mais
direta e onipresente. Muitas dessas figuras esotéricas passaram a
delinear conclusões políticas baseadas nessas crenças.

Isso, por exemplo, ocorreu também na França e no Reino Unido, ainda que
não na mesma medida. Por outro lado, o teor do imaginário sobrenatural,
em que existiam muitos movimentos como teosofia, astrologia e assim por
diante, também era bem mais racial-folclórico na Alemanha e na Áustria
que na França ou Reino Unido.

Havia muitas pessoas falando sobre diferentes raças no século XIX, não
só na Alemanha e na Áustria. Entretanto, quando se olha para a forma
como tais doutrinas esotéricas e anti-científicas foram implantadas na
esfera pública, a raça e o antissemitismo foram, ao que parece, mais
proeminentes em comparação com a França, Reino Unido e até mesmo os
Estados Unidos, que tinham seus próprios grupos esotéricos, como os
“camisas prateadas” da KKK e William Pelley.

Em suma, a raça faz parte também da língua oficial da ciência e da
reforma social no Reino Unido, França e Estados Unidos, mas não estava
no centro das práticas científicas e ocultas; e tais práticas,
inversamente, não desemprenharam um papel central nas ideologias ou
teorias de direita na política ou na sociedade.

OB

*Você também menciona que o folclore alemão, a mitologia, a religião
indo-ariana e as teorias racistas frequentemente eram parte do sistema
escolar alemão. Você menciona especificamente a influência que o
professor Leopold Pötsch tinha no jovem Hitler. Isso também foi uma
particularidade nacional?*

EK

Isso chega ao conceito de ciência alternativa. Todos falavam sobre
Charles Darwin e o declínio civilizacional do Ocidente, a ascensão de
raças não brancas – tudo o que fazia parte das discussões científicas
naturais e sociais da segunda metade do século XIX. Até mesmo
progressistas liberais e socialistas utilizavam o conceito de raça
naquele momento, que não seria aceito hoje.

Se você fosse à escola na França ou nos Estados Unidos nas décadas de
1880 e 1890, ouviria teorias sobre a superioridade racial de alguns
grupos sobre outros, e teorias da história que tendiam a idealizar os
homens brancos ou de seu país de uma forma muito nacionalista. A
diferença é que, na Alemanha e na Áustria, a mitologia nórdica e o
folclore se misturaram com esse chamado pensamento “científico” sobre
raça, politizado e, então, integrado à pedagogia. Isso ocorreu não
apenas nas escolas, mas na literatura popular e científica.

OB

*Muitas das principais personalidades de movimentos sobrenaturais na
República de Weimar, na Alemanha, depois se tornaram proeminentes
nazistas. De alguma maneira, os partidos no entreguerras trabalharam
politicamente com a crença do sobrenatural ou isso foi específico dos
nazistas?*

EK

Sem dúvida, existam alguns indivíduos nos partidos de centro esquerda
interessados ​​em astrologia e mitologia alemã, mas, de modo geral, eles
não os integraram em suas ideias políticas e sua propaganda. Se você
fosse membro dos dois partidos liberais, dos social-democratas ou dos
comunistas, seria improvável que você invocasse as imagens de vampiros e
o diabo, lobisomens ou bruxas, para descrever seus oponentes políticos
ou a si próprio. Nem você falaria frequentemente sobre suásticas ou
antigos sóis negros ou runas como símbolo da raça ariana ou nórdica.

Só que não apenas os nazistas invocavam essa iconografia. Existiam
grupos paramilitares famosos de toda sorte que recorriam a esses tipos
de símbolos, que organizavam festivais de solstício e falavam em
restaurar o Império Alemão e reassentar os europeus ocidentais com
“camponeses guerreiros”.

Os partidos de centro esquerda alemães, como na maior parte dos países,
almejavam certamente argumentar a respeito do que fazer com finanças,
tributos e educação, mas os partidos de centro direita eram tão
propensos a invocar propaganda emocional ligada a teorias baseadas em
raça sobre a superioridade germânica e o perigo quase sobre-humano dos
monstruosos judeus e bolcheviques, de uma forma difícil de se engajar
racional ou empiricamente. Como argumentaria com alguém que apela ao
caráter loiro e de olhos azuis quase míticos do povo alemão e diz que
seu país foi colonizado por uma cabala de bolchevistas judaicos, maçons
e raças inferiores?

Nem todos os alemães acreditavam nessas coisas: muitos – talvez até
mesmo a maioria – não acreditava. E se recorde que apenas um terço deles
votou em Hitler. Os nazistas nunca tiveram mais de 37% dos votos, apesar
da crise vinda da Grande Depressão e outros fatores. Porém, as pessoas
que votavam nazistas parecem ter sido desproporcionalmente inseridas no
imaginário sobrenatural.

OB

*Suponho que, depois da guerra perdida em 1918 e da Grande Depressão,
essas ideias sobrenaturais devem ter se espalhado entre toda a população
alemã. É possível afirmar qual tipo de pessoa tendia a apoiar essas ideias?*

EK

A história, a sociologia e a ciência política nos mostraram que,
enquanto os nazistas apelaram ao número substancial de alemães de todas
as demografias, católicos e trabalhadores tendiam a não votar tanto nos
nazistas. Por outro lado, os protestantes de classe média baixa ou de
origem sociológica no meio rural votavam desproporcionalmente no partido
de Hitler. Ao observar o modo como funciona o imaginário sobrenatural, é
aquilo não aparece de forma proeminente nos socialistas urbanos e no
meio social dos trabalhadores.

Não é que as classes trabalhadoras alemãs fossem imunes às ideias
sobrenaturais – se a ciência oculta, a pseudociência ou a religião
alternativa. De certo, alguns membros da classe trabalhadora liam seus
horóscopos ou acreditavam em aspectos do paranormal. Só que, por
variadas razões, as classes trabalhadoras eram, em geral, mais isoladas
das consequências políticas dessas ideias graças ao caráter do meio
urbano e proletário – poderosamente à esquerda e, de fato, muitas vezes
suavemente marxista.

Além da força dessa cultura proletária, o próprio interesse
socioeconômico dos trabalhadores e sua típica filiação partidária com os
social-democratas ou os comunistas, temos uma ênfase intelectual da
teoria marxista em explicações materialistas sobre a realidade
sociopolítica. Por tais razões, era bastante difícil para os partidos
não marxistas e ideologias não materialistas penetrarem nas classes
trabalhadoras alemãs, sobretudo entre os habilidosos trabalhadores em
áreas urbanas, que se mostraram nitidamente resistentes à política
conservadora, clerical e, em menor grau, fascista no período entreguerras.

Mesmo entre o eleitorado com uma maior propensão ao pensamento não
materialista, baseado na fé, como os católicos rurais e de cidades
pequenas, a força do meio social e religioso católico – reforçado por
décadas de perseguição protestante – isolou os católicos devotos de
formas alternativas de pensamento sobrenatural, assim como os
radicais-nacionalistas, partidos desproporcionalmente protestantes, como
o Partido Nacionalista do Povo Alemão e os nazistas.

Essas ideias parecem ter sido mais populares entre os alemães de classe
média que talvez não fossem mais devotos católicos ou protestantes, mas
que ainda se interessaram em religiões alternativas, esoterismo meio
cristão meio pagão e outras ideias sobrenaturais. Essas tendências
esotéricas também parecem nitidamente ter se originado na Alemanha,
especialmente onde a política é objeto de preocupação – o que parece ser
outra diferença entre o jeito como essas doutrinas se espalham e como o
“imaginário sobrenatural” funcionava na França, Reino Unido, Estados
Unidos, por exemplo, em comparação com a Alemanha e a Áustria.

Nos países anteriores, parece que as mulheres participavam desses
movimentos tanto quanto os homens, certamente como seguidoras, mas
também, muitas vezes, como lideranças. Na Alemanha e na Áustria,
propagando o esoterismo, a pseudociência e o paganismo folclórico
pareciam ser um empreendimento quase exclusivamente masculino.

Você nota isso no movimento nazista, que era também muito masculino.
Eram principalmente homens brancos que não foram particularmente
educados em termos de conhecimento científico, mas tinham certa educação
universitária. Trabalhadores de colarinho branco, pequenos empresários,
engenheiros, esses são os tipos de pessoas que tornaram essas ideias
mais interessantes. Um perfil demográfico similar ao daqueles que gostam
de assistir shows sobre “alienígenas” ou relíquias perdidas ou soldados
mortos-vivos do Himmler no /History Channel/ hoje em dia. São as pessoas
que têm algum tipo de educação, alguns conhecimentos sobre história, mas
estão abertos a argumentos pseudocientíficos e baseados na fé.

OB

*De várias maneiras, isso se assemelha aos grupos de pessoas de hoje que
creem em teorias de conspiração, como QAnon, movimento antivacina e
etc.. Como os intelectuais, cientistas e autoridades reagiram a essa
tendência pseudocientífica naquela época?*

EK

Muitas figuras líderes de centro esquerda ou liberais observaram esse
investimento nada saudável no pensamento sobrenatural, baseado na fé, e
afirmaram: “aqui está um fenômeno que é anticiência, irracional e
preocupado com o pensamento mágico, a história alternativa e a religião
mágica, e parece estar ajudando as forças antidemocráticas de extrema
direita. Precisamos ter cuidado com isso”.

<https://autonomialiteraria.com.br/loja/jogos/kapital-quem-ganhara-a-luta-de-classes/>

Na imprensa, Bertolt Brecht e alguns socialistas zombaram dos nazistas
por flertarem com essas ideias. Eles acharam chocante que os alemães
acreditassem nos apelos emocionais de Hitler e Goebbels – em alguns
casos escritos por Hanns Heinz Ewers, um escritor de terror famoso por
romances sobre vampiros, cientistas loucos e adoradores de diabo e,
depois, um propagandista nazista. Não compreendiam como algum partido
poderia chegar ao poder sendo algo equivalente contemporâneo de Stephen
King ou Clive Barker na promoção de sua causa. Alguns apoiadores dos
partidos liberais, que perderam muitos mais de seus eleitores para os
partidos conservadores e de extrema direita que os social-democratas ou
os comunistas, estavam realmente prontos para botar a culpa de seu
fracasso político no comportamento irracional dos alemães.

Alfred Rosenberg, o ideólogo nazista, assumiu que muitas pessoas votaram
nos nazistas porque estavam interessadas no oculto. O influente filósofo
político conservador Carl Schmitt notou um investimento generalizado no
que ele chamou de “romantismo político”. Então, com o declínio do centro
liberal, os únicos partidos políticos que poderiam se opor aos nazistas
eram os partidos de esquerda, mas eles falavam uma linguagem totalmente
diferente e eram incapazes de competir com os nazistas nos termos do
apelo emocional ao nacionalismo e ao renascimento folclórico,
fundamentados no “desejo de mito dos alemães” e desejo de transcender as
crises políticas e econômicas e as divisões sociais do período entreguerras.

OB

*E quanto ao próprio Hitler? Você poderia descrever qual era sua relação
com ideias sobrenaturais, ocultismo ou pseudociência?*

EK

Hitler foi perfeitamente emblemático como um típico membro do Partido
Nazista – ou, de certo, líder nazista – a esse respeito. Ele não era tão
envolvido em ideias sobrenaturais, por exemplo, tal qual Himmler, Hess
ou Alfred Rosenberg. Sempre foi mais cético quanto às teorias
sobrenaturais mais amplas sendo usadas de forma muito proeminente como
parte da propaganda nazista. Ele, todavia, ainda as elaborou, e sua
retórica foi misturada com argumentos pseudocientíficos, a invocação da
mitologia e o apelo às emoções. Ainda que não comprasse todas as
doutrinas de raça esotérica que alguns de seus colegas fizeram, ele
entendeu sua importância para o Partido Nazista e empregou essa linguagem.

No meu livro /Hitler’s Monsters/, menciono a famosa citação de Hitler em
/Mein Kampf/ alertando o Partido Nazista a não se tornar lar de
“acadêmicos errantes envolvidos em /bearskins/”. Lembrando do xamã do
QAnon com pele de animal que invadiu o prédio do Capitólio
norte-americano em janeiro de 2021, esse comentário obscuro de Hitler
parece bem mais relevante. Como Donald Trump ou Marine Le Pen, que se
afastaram publicamente dos “xamãs do QAnon” em suas fileiras, Hitler
estava preocupado se o Partido Nazista pudesse perder apoio entre os
eleitores da classe média tradicional.

Mesmo se Hitler publicamente tentasse divulgar nazistas de grupos
religiosos esotéricos e pagãos, como a Sociedade Thule e o folclore
“errante dos estudiosos em /bearskins/”, ele, porém, reconheceu que seus
apoiadores estavam atraídos por ideias sobrenaturais e teorias de
conspiração para dar sentido a um mundo cada vez mais complexo e ameaçador.

OB

*Qual foi a relação dos nazistas com ideias sobrenaturais depois que
Hitler chegou ao poder? Você menciona que era perigoso para o Partido
Nazista deixar crescerem o movimento sobrenatural e o ocultismo, pois
temiam que pudesse sair de seu controle.*

EK

Não é que eles rejeitaram o raciocínio sobrenatural. Eles estavam com
medo especificamente de grupos ocultos que representassem um obstáculo
sectário a uma “comunidade racial” unificada liderada pelo o Partido
Nazista. Essas doutrinas e associações ocultas, como a teosofia, a
ariosofia, o movimento da antroposofia de Rudolf Steiner, e outros
grupos folclóricos e messiânicos – que tiveram seus próprios rituais,
tradições secretas e, acima de tudo, seus próprios “Führer” – foram
vistas pelos nazistas como sectárias. Isso significava que eles detinham
sua própria identidade sociocultural e, potencialmente, uma ideologia em
competição com o nazismo.

Portanto, muitos estudiosos apontam a repressão ao ocultismo durante o
Terceiro Reich – equivocadamente, em minha visão, dizendo “olha, os
nazistas odiavam o ocultismo”. Só que eles não odiavam. Eles tentaram
controlar certos tipos de ocultismo e outros grupos “sectários” por
várias razões, da mesma maneira que tentaram controlar a religião, os
programas sociais, mulheres, trabalhadores, camponeses ou industriais. A
propensão natural deles como um regime fascista era tentar controlar as
coisas e fazer com que todo mundo “trabalhasse para o Führer”, mas isso
não significa que eles rejeitassem o /völkisch/ esotérico ou religioso
ou o pensamento pseudocientífico.

Então, sua hostilidade aos ocultistas não era do mesmo tipo que aquela
que envolvia atitudes nazistas em relação aos socialistas ou comunistas
ou, de certo, aos judeus. Eles reiteradamente aceitaram no partido
ex-líderes ocultistas, desde que parassem de tentar manter organizações
esotéricas-folclóricas separadas, como a Sociedade Thule ou a Werewolf
Bund ou a Tannenburg Bund.

Os nazistas estiveram também divididos sobre o que era “ocultismo
científico” e o que era o ocultismo popular para ganhar dinheiro. O vice
de Hitler, Rudolf Hess, os membros do Ministério da Educação do Reich,
Himmler, a SS e até o Ministério de Propaganda de Goebbels trabalharam
para diferenciar as doutrinas ocultistas e as ideias e indivíduos
“científicos” alternativos ou, ao menos, pragmaticamente úteis daquilo
que chamavam de ocultismo de Boulevard popular ou “judaico”, como Erik
Hannusen – que, eles diziam, apenas roubava o dinheiro das pessoas.

Assim, os nazistas vigiavam e periodicamente prendiam ou interrogam os
ocultistas que supostamente faziam dinheiro minando o “esclarecimento
público”. Contudo, para Himmler, Hess, Walther Darré, e outros líderes
nazistas, os ocultistas científicos “reais” e cientistas alternativos
ainda podiam averiguar se o raio de Thor era mágico ou se a posição das
estrelas e da lua promovia a agricultura orgânica.

Esses “cientistas” foram patrocinados por vários ministérios nazistas e
especialmente pela SS de Himmler. Então, eles seletivamente rejeitavam
algumas ideias e indivíduos ocultistas como não sérios e
anticientíficos, mas também estavam dispostos a legitimá-los e até mesmo
empregá-los quando eram simpáticos à doutrina esotérica e alternativa
particular ou à crença /völkisch/ religiosa. O conceito duvidoso da
Teoria do Gelo do Mundo parecia reforçar a ideia de uma raça ariana
antiga e sugerir o questionamento da “física judaica” da mesma maneira a
lei relatividade e a mecânica quântica. Daí o porquê de tanto Himmler
como Hitler tê-la patrocinado.

OB

*Você menciona que a imaginação sobrenatural “propiciou um espaço
ideológico e discursivo em que era possível desumanizar, marginalizar os
inimigos dos nazistas e transformá-los em monstros”. Você poderia
elaborar como funcionou isso?*

EK

Quando você sai do reino da ciência moderna, como a biologia e a física,
começa a operar no reino do “imaginário sobrenatural”, onde tudo é
possível ou justificável, visto que passa a misturar a biologia com
esoterismo, história e arqueologia com folclore e mitologia, pode
transformar os judeus asquenazes de um povo parcialmente europeu que
compartilharam com alemães uma ancestralidade da Europa Central e
Oriental, em monstros biológicos totalmente alienígenas, com tendências
cruéis e sobre-humanas, por trás de tudo de malévolo ocorrido na história.

O imaginário sobrenatural, que mistura a ciência e o ocultismo, a
história e a mitologia, permitiu também que os nazistas escolhessem as
características que gostariam de atribuir ao inimigo deles,
comparando-os a vampiros, zumbis, diabos e demônios. Também permitiu a
eles que atribuísse certas características superiores aos alemães,
delineadas, muitas vezes, de forma idêntica da mitologia ou da ciência
alternativa.

Em seu último esforço para criar uma divisão partidária na elite no fim
de 1944, eles invocaram os nomes de lobisomens, do folclore germânico.
Apesar de os lobisomens serem considerados heróis trágicos ou nobres
possivelmente ligados à horda de Odin ou aos /berserkers/ nórdicos, eles
eram na França seres amaldiçoados ligados ao satanismo e à feitiçaria.
No folclore alemão, os lobisomens eram, portanto, heróis trágicos,
ligados enfim ao sangue e ao solo; criaturas que defenderiam suas
florestas e terra contra os intrusos eslavos. Por outro lado, os
vampiros não eram figuras românticas trágicas nem mesmo heróis, como
foram retratados na França ou no Reino Unido, mas parasitas orientais
degenerados ligados aos judeus e aos povos eslavos, que estavam tentando
minar a pureza do sangue alemão.

Folclore, mitologia, teorias sobre alienígenas, Teoria do Gelo Mundial,
gigantes de gelo, deuses e monstros foram usados para justificar por que
os alemães teriam o direito de invadir o Leste Europeu e subjugar ou
destruir raças inferiores e o chamado “judaico-bolchevismo”.

O pensamento sobrenatural tinha um efeito multiplicador sobre as
políticas violentas já existentes na eugenia dessa época, abusadas em
tantos outros países, incluindo o Reino Unido, a Suécia ou os Estados
Unidos, mas nunca em uma extensão desenfreada. O ingrediente “secreto”
aqui, argumento eu, era o pensamento “sobrenatural”.

OB

*Que influência o imaginário sobrenatural teve sobre o esforço de guerra
dos nazistas?*

EK

Em primeiro lugar, o imaginário sobrenatural influenciou as visões
geopolíticas dos nazistas, que manipularam a arqueologia, o folclore e a
mitologia para fins de política externa. Himmler e Rosenberg
desenvolveram os argumentos – com base, em larga medida, em folclore,
mitologia e ciência alternativa – de que, há milhares de anos, as
pessoas nórdicas eram a civilização dominante na Europa e que eles
tinham o direito de reivindicar esse status. Arqueologia ruim, o uso
seletivo de biologia e da antropologia e a mitologia alimentou várias
ideias a respeito da Europa Oriental e por que os alemães teriam
direito, tais quais cavaleiros teutônicos medievais, de (re)conquistar o
Leste.

O pensamento sobrenatural não era o único fator na determinação da
política nazista, mas certamente reforçou as relações racistas e
imperialistas dos nazistas em relação aos europeus orientais. Sim, em
algum momento durante a guerra, os nazistas negociaram acordos com os
ucranianos e os Estados bálticos por razões pragmáticas, mas, em última
instância, eles tinham esse gigantesco complexo de pensamento
sobrenatural subjacente às suas concepções de raça e espaço. Isso ajudou
a justificar, por exemplo, a deslocar os poloneses para fora de suas
casas e botar alemães em seu lugar ou enviar os judeus para os campos de
concentração.

O imaginário sobrenatural estava também diretamente ligado a
experimentos de eugenia durante o Holocausto. Um dos piores médicos
nazistas, Sigmund Rascher, era filho de um dos mais célebres
antroposofistas, Hanns Rascher. Você tem esse importante médico muito
aberto a essa ideia de raça e espaço – que acompanha Ernst Schaefer na
expedição ao Tibet de Himmler para descobrir as antigas origens da raça
ariana – e mais tarde está disposto a fazer experiências em seres
humanos para testar suas teorias pseudocientíficas e de Himmler.

Quando você toma o nível de ingenuidade científica e de confiança que os
alemães tinham nos anos 1930 e o mistura com um regime imerso no
pensamento sobrenatural, liderado por Hitler e Himmler, que não tinham
experiência em ciência natural, que eram autodidatas, que liam folclore
e mitologia e sonhavam com espaçonaves, e propicia a plataforma de uma
guerra terrível onde a violência massiva já se tornava aceitável, isso é
bastante perigoso. Junto à eugenia, isso tudo compôs o combustível
desses experimentos horríveis e até mesmo do Holocausto.

OB

*Parece que os alemães que acreditavam no imaginário sobrenatural
realmente achavam que os eslavos eram vampiros, os judeus vermes e os
soviéticos basicamente monstros.*

EK

Eu não posso dizer a você que milhões de soldados em campo de batalha
realmente viam judeus como monstros sobre-humanos; muitos alemães tinham
amigos e cônjuges judeus antes e depois do Terceiro Reich. Entretanto,
os nazistas certamente usaram o imaginário sobrenatural para desumanizar
judeus, eslavos e bolcheviques e transformá-los em um inimigo desumano.
Alguns alemães étnicos relataram terem sido atacados, confessamente
durante o trauma da guerra, por “bebedores de sangue” eslavos.

A questão é: como isso aconteceu? Meu argumento é que não era /somente/
a ciência da biologia ou imperialismo ou capitalismo industrial ou a
violência em massa e o trauma da “guerra total” – todos esses fatores
eram importantes –, mas também o imaginário sobrenatural nazista. O
quanto alguém acredita de fato nas várias doutrinas, contos e ideias que
constituíam esse imaginário dependia da pessoa. Às vezes, todavia,
parece que alguns nazistas realmente acreditavam que havia outras
espécies e raças – em particular, os judeus, que eram simplesmente
monstros desumanos, literal ou figurativamente, e que tinham que ser
eliminados para que a civilização “ariana” sobrevivesse.


      Sobre os autores


          Eric Kurlander <https://jacobin.com.br/author/erickurlander/>

é professor de história na Universidade Stetson.


          Ondřej Bělíček <https://jacobin.com.br/author/ondrejbelicek/>

é editor do A2larm.cz.

Em
JACOBIN
https://jacobin.com.br/2022/01/como-o-misticismo-e-a-pseudociencia-se-tornaram-centrais-para-o-nazismo/
25/1/2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário