quarta-feira, 13 de abril de 2022

A Segunda Grande Guerra Patriótica e a reformatação da Rússia

 
 


    Dayan Jayatilleka [*]

Cartaz francês da década de 1930.
*A teoria da Guerra justa, originalmente Teologia da Guerra justa,
recusou correctamente deduzir o carácter justo ou injusto – e, por
conseguinte, a legitimidade – de uma guerra apenas do facto de quem
atacou primeiro. Do mesmo modo, o carácter patriótico de uma guerra não
pode ser deduzido do facto de um Estado estar ou não a combater no seu
próprio solo. Se a Rússia é o alvo pretendido, então a guerra assume um
carácter patriótico que não é negado pelo seu carácter antecipativo ou
preventivo.*

    *O que a Rússia enfrenta agora é a segunda edição, a edição do
    século XXI da Grande Guerra Patriótica. *

Os EUA estão a experimentar um novo modelo de guerra, uma actualização
tanto do modelo de vietnamização como do modelo de guerra híbrido.
Extermínio económico; presença sobre o território; sem botas no chão;
fornecimento de multiplicadores de força e inteligência no campo de
batalha em tempo real às forças locais; e um espectro de modos de
combate convencionais, móveis e de guerrilha.

O Ocidente está a travar uma guerra político-militar de carácter total
ou absoluto contra a Rússia. Este carácter total ou absoluto não deve
ser obscurecido pelo facto de os papéis político e militar envolverem
uma divisão do trabalho e de a própria componente militar ser
hibridizada, onde as operações de combate propriamente ditas são
conduzidas pelas forças ucranianas enquanto o armamento e a inteligência
são fornecidos pelo Ocidente.

Quando a revista /Newsweek/ entrevistou recentemente especialistas
norte-americanos sobre a possibilidade de ataques com drones americanos
a alvos militares russos na Ucrânia, a sua intencionalidade revelou que
na mente militar ocidental a linha de actuação é confusa e a Rússia é
considerada como o alvo.

O objectivo da guerra político-militar é total e absoluto: destruir a
base material da Rússia e atacar a economia, os meios de subsistência e
o tecido social dos russos, colocando assim o país de joelhos e
forçando-o a instalar uma liderança fantoche que transformará a Rússia
num estado vassalo do Ocidente.

A Rússia está a ser punida por um regime de sanções que nunca foi
imposto à África do Sul do apartheid. As sanções contra e o
desinvestimento da Rússia são tão maciças que poderiam ser descritas
como "choque e espanto", com o objectivo de criar um sistema global de
apartheid económico e cultural, que isola, marginaliza e suprime a Rússia.

A cultura e as artes russas foram "canceladas" como uma componente da
cultura e civilização ocidentais, enquanto as artes e a cultura
ocidentais foram afastadas da Rússia.

Qualquer canal de televisão mostra agora que o Ocidente, ao nível da sua
elite política e formadora de opinião, está cheio de desejo de sangue
contra a Rússia e os russos. O Ocidente está a usar abertamente a
Ucrânia como uma procuradora para infligir milhares de mortes na Rússia.
Como nunca antes, a conversa na corrente dominante é sobre infligir
baixas às forças russas e o máximo dano à economia e sociedade russas. O
discurso oficial ocidental ao mais alto nível é sobre cortar a "artéria
principal" da economia russa – as exportações de petróleo e gás. Estas
acções e linguagem indicam castigos colectivos e raiva sociopática em
relação à Rússia.

Tais sentimentos dificilmente estiveram ausentes do Ocidente, desde o
desejo de estrangular a criança bolchevique no seu berço (Churchill)
para a Rádio Europa Livre durante a Hungria de 1956, até o documento de
Santa Fé. Mas estes sentimentos foram mantidos em cheque e retidos nas
margens, pela realidade da existência da URSS. Com o colapso implosivo
da União Soviética e o nascimento de um momento unipolar, estes
sentimentos, embora não expressos em público, moldaram a actual agenda
bipartidária como se viu na destruição da Jugoslávia, Iraque e Líbia e,
acima de tudo, nas sucessivas ondas de expansão da NATO.

    *O Ocidente mudou, e a Rússia tem de mudar para sobreviver e
    prevalecer sobre os sintomas comportamentais do triplo H do
    Ocidente: hipocrisia, histeria e ódio /(hatred)./*

O Ocidente nem sequer ficará satisfeito com o regresso ao cumprimento e
à miséria dos anos 90, porque sabe por experiência que o espírito russo
poderia produzir ciclicamente outro líder forte. Em vez disso, vai
querer uma satanização permanente da Rússia, a sua transformação no que
o Ocidente chama um país "normal", ou seja, uma versão maior de um dos
seus aliados da Europa de Leste.

*Reinicialização da Rússia*

Se este novo modelo de guerra for bem sucedido, então, como dita a sua
lógica inerentemente auto-expansiva, será repetido na beira da Rússia,
no solo da Rússia. Portanto, a Rússia tem de resolver uma equação
complexa: prevalecer tão decisivamente na Ucrânia de modo que o modelo
de guerra falhe, que seja administrada uma lição e que o esforço não se
repita. Mas a Rússia tem de o fazer sem entrar num pântano tipo
Afeganistão, uma armadilha da espécie que Brzezinski preparou para
Moscovo em 1979. As abordagens de pensadores militares como Tukhachevsky
e BH Liddell Hart, bem como as tácticas cubanas em Angola e no Ogaden,
assumem agora grande relevância.

Embora ninguém conheça o pensamento do Estado-Maior russo, a lógica
indica que a armadilha ocidental de transformar a Ucrânia num pântano
para a Rússia poderia talvez ser evitada se se evitasse o foco na
apreensão de território e cidades, e se privilegiasse a doutrina da
maior mente militar da era pós II Guerra Mundial, o General Vo Nguyen
Giap do Vietname, o qual insistia numa estratégia de contra-força, ou
nas suas palavras, "a aniquilação das forças vivas do inimigo", ou seja,
a liquidação do adversário como uma força combatente.

Uma vez que os militares ucranianos são uma máquina quase-NATO, certos
paralelos podem não ser totalmente relevantes, mas pode ser útil
recordar o contraste entre os fracassos da Rússia e da América no
Afeganistão e o êxito do Vietname na sua operação no Camboja e de Cuba
em Angola.

Para enfrentar as máquinas de cerco económico do Ocidente, a Rússia deve
buscar o seu passado quando era determinadamente bloqueada pelo
imperialismo. A restauração de alguma forma de planeamento económico
será necessária. A Rússia tem experiência de muitos modelos de economia
planificada, desde o de Nikolai Bukharin ao de Lieberman e o do Prof.
Kudratsyev até à ideia de Yuri Andropov de uma fusão de planeamento e
cibernética.

Isto talvez tenha de ser combinado com um regresso à ênfase de Estaline
na indústria pesada, incluindo a auto-suficiência no fabrico de máquinas
(o sector de bens de capital ou o chamado Departamento I).

A minha experiência diz-me que a Rússia tem nas suas instituições de
investigação económica, todos os cérebros necessários para uma política
criativa capaz de enfrentar e superar as sanções. Cuba sobreviveu às
sanções e ao colapso da União Soviética e passou a produzir duas vacinas
anti-COVID próprias.

Muito depende da dinâmica real do sistema de tomada de decisões na
Rússia. Se for estrangulada, então a matéria será mais difícil. A Rússia
tem um bloco de poder que pode agora ter de ser reformatado para lidar
com o desafio existencial de um estado de sítio global, o qual é parte
da ofensiva estratégica do Ocidente. A guerra contra a Rússia não pode
ser derrotada unicamente pelo Estado. Na situação histórica extrema que
a Rússia hoje enfrenta, será necessária uma frente unida de patriotas;
estadistas e comunistas russos; de tradicionalistas e modernistas; de
conservadores e radicais; de românticos e realistas para resistir e
prevalecer contra os seus adversários.

A Grande Guerra Patriótica não poderia ter sido travada com êxito se não
fosse o novo instrumento, o Partido Comunista, que era ao mesmo tempo um
partido de vanguarda e um partido de massas, funcionando como uma
"correia de transmissão" (na terminologia de Estaline) entre o povo e o
Estado. Era também um partido capaz de ligar o profundo patriotismo do
povo russo a um vasto apelo internacional. Na Rússia soviética, entre os
principais académicos, havia também membros do Partido Comunista. O
Partido Comunista da China é um mandarinato confucioniano meritocrático
com uma base de massa e é, portanto, um filtro e um elevador para os
melhores cérebros e talentos.

O maior erro que o Estado russo poderia cometer é pensar que a situação
de conflito e bloqueio poderia ser enfrentada sem uma frente unida com
os comunistas russos. Nenhuma tendência ou tradição na Rússia tem mais
experiência e doutrina para enfrentar e travar uma guerra
político-militar-ideológica à escala mundial contra o imperialismo
ocidental do que o comunismo russo. Quando o Partido Comunista da União
Soviética perdeu o seu caminho, foram os comunistas russos que se
separaram, reconstruíram o partido e combateram ideologicamente contra o
apaziguamento da NATO e as reformas económicas neoliberais que visavam
liquidar o Estado. Nenhuma outra força política tem maior experiência de
combate na guerra ideológica internacionalmente.

A incorporação dos comunistas russos no bloco dominante também
cimentaria laços com os partidos comunistas da China, Vietname e Cuba –
mais crucialmente, o da China.

Os comunistas russos têm uma tradição mais robusta de "agit-prop" do que
qualquer outra força política. Têm também uma história de mobilização da
solidariedade internacional para com a Rússia, que apelos puramente
nacionalistas-estatatais não podem alcançar. Como repositório da memória
da Rússia soviética, os comunistas russos podem ser úteis para manter
elevado o apoio social, especialmente da classe trabalhadora russa.

Votação na AG da ONU.

Os trinta e cinco países que se abstiveram durante a votação da ONU
sobre a Rússia e os poucos que votaram com a Rússia fizeram-no não só
devido às actuais relações com a Federação Russa, mas também porque os
seus dirigentes, partidos no governo e público tinham uma memória
residual da URSS que os tornou relativamente desprovidos de reflexos
russófobos. Isso, juntamente com as memórias que estes países têm da
hipocrisia ocidental, deu-lhes um certo cepticismo e agnosticismo. Não
foi a memória da Rússia czarista e sim a da Rússia soviética. Estes
países, principalmente asiáticos e africanos, são o embrião de uma ordem
mundial multipolar.

A vasta frente global com que a Rússia poderia contar, baseada na
soberania do Estado, está fendida pelo facto de o secessionismo e o
tema-mestre da soberania do Estado ser virado contra a Rússia pelo
Ocidente. Existe apenas uma doutrina que reconciliou a principal agência
do Estado na luta contra o imperialismo com o direito das nações e dos
povos à autodeterminação e essa era a tradição Lenine-Estaline.

    *O patriotismo estatal russo dá uma profundidade imperativa mas não
    uma amplitude; ele é nacional, não global; ele é definidamente e
    inerentemente auto-limitador.*

A Rússia precisa de entrar na sua própria história política e
intelectual para uma doutrina que tenha uma dimensão de universalidade.
A única que contém uma dimensão universal é o comunismo russo. Não pode
e não deve substituir o nacionalismo estatal russo, mas é um suplemento
existencial e grandiamente imperativo.

Ninguém tem uma tradição combativa melhor do que o Exército Vermelho e
ninguém tem uma cultura de combate político melhor do que a dos
comunistas russos. Para fazer face ao desafio extremo que a Rússia
enfrenta actualmente, a bandeira vermelha pode ser necessária juntamente
com a bandeira vermelha-azul e branca.

*'Estalinização'?*

Estalinização é o crime de que o Presidente Putin é acusado por /The
Economist,/ do Reino Unido, numa recente matéria de capa, ilustrada por
uma fotografia de um tanque russo com o seu 'Z' no lugar da letra 'z' na
palavra 'Estalinização'.

Mas o que significaria a Estalinização, não no seu sentido
propagandístico ocidental mas no seu sentido histórico, estratégico e
conceptual, para a Rússia de hoje?

Para a Rússia, não seria estrategicamente realista basear-se no
postulado de que o Ocidente acabará por regressar ao bom senso. Como
disse Estaline num debate no seio do Partido Bolchevique sob a liderança
de Lenine, acerca da revolução alemã, "essa é uma possibilidade, mas não
nos podemos basear em possibilidades, só em factos".

Houve e continua a haver um debate considerável sobre a sabedoria das
políticas de Estaline no período que antecedeu o ataque da Alemanha à
Rússia em 1941. Isso inclui a sua estratégia na Espanha, o expurgo do
Exército Vermelho, o pacto Molotov-Ribbentrop e a insuficiente atenção
dada aos despachos de Richard Sorge. Será que Estaline ganhou tempo para
mover as indústrias para além dos Urais ou perdeu tempo e permitiu que a
Alemanha nazi se tornasse mais forte? Seja qual for o caso, sabemos que
estava despreparado e chocado quando o ataque nazi chegou.

No entanto, o que é vital hoje é a lição daquele tempo: o povo e o
exército russos, bem como aqueles que em todo o mundo compreenderam o
significado global e histórico da existência da Rússia soviética,
enterraram todas as dúvidas e alinharam-se em torno do Estado e da
liderança de Estaline, apesar dos erros que ele possa ter cometido.

Numa época em que a revolução europeia esperada por Lenine, Trotsky, e a
maioria dos líderes bolcheviques foi efectivamente bloqueada após a
derrota na Polónia, e a URSS sofreu o choque da morte de Lenine alguns
anos depois, foi Estaline que deu ao povo russo a perspectiva e a
esperança de que poderia construir um país forte com base nos próprios
recursos e no potencial da Rússia, mesmo que a transformação europeia
fosse adiada indefinidamente. Isto foi a famosa fórmula "Socialismo num
só país". Evidentemente, ele permitiu que a fórmula caducasse após a
Segunda Guerra Mundial e a extensão do socialismo à Europa pelo Exército
Vermelho e, mais importante ainda, o acontecimento maciço da Revolução
Chinesa em 1949.

Estaline foi capaz de reconhecer a necessidade e a possibilidade de
construir uma civilização industrial, embora num padrão alternativo
(socialismo), mesmo numa Rússia isolada. Isto deu ao povo russo uma
perspectiva de esperança e uma tarefa concreta, ainda que totalmente
desafiadora.

Cartaz soviético da década de 1920.

Em termos de estratégia global, ao contrário de outros líderes
bolcheviques, apenas Estaline, seguindo Lenine, foi capaz de compreender
o potencial do Oriente, desde o Irão (Pérsia) até à China. Quando todos
os olhos estavam postos na revolução europeia, Estaline escreveu, em
Novembro de 1918, um ensaio intitulado "Don't Forget the East" (Não
esquecer o Oriente), que se seguiu ao ensaio de Dezembro de 1918 "Light
from the East" (Luz do Oriente). Foi necessária uma enorme perspicácia e
originalidade para o fazer naquele tempo: "Numa altura em que o
movimento revolucionário se ergue na Europa... os olhos de todos estão
naturalmente virados para o Ocidente... Nesse momento tende-se a perder
de vista, a esquecer o longínquo Oriente, com as suas centenas de
milhões de habitantes..."

Prosseguiu neste ensaio a enumerar "Pérsia, Índia, China". Embora isto
tenha sido cinco anos após o admiravelmente pouco ortodoxo "Backward
Europe, Advanced Asia" (1913) de Lenine, foi antes do último ensaio de
Lenine no qual ele fez a sua aposta final na Rússia, Índia, e China
(proporcionando a base da perspectiva Primakoviana). Estaline foi o
autor do pivot estratégico e paradigmático da Ásia e, nesse sentido, o
primeiro estratega euro-asiático da modernidade ou da modernidade
("soviética") alternativa.

Obviamente, a mais famosa contribuição de Estaline foi recuperar dos
seus custosos erros iniciais e dar liderança política de génio à União
Soviética e ao Exército Vermelho na derrota dos nazis, bem como negociar
a ordem do pós-guerra em Yalta e Potsdam. Ele também teve um claro
entendimento das intenções do Ocidente nos primeiros anos da Guerra Fria.

Tanto na arena nacional como internacional, foi sob Estaline que se
formou um novo bloco sobre o patriotismo, mesmo nacionalismo, estatismo
e esquerdismo; uma amálgama que alimentou a vitória na Grande Guerra
Patriótica e ajudou a Ásia durante meio século na sua luta contra o
imperialismo predatório japonês e ocidental.

Se bem que a história reconheça o aspecto negativo daa repressões
internaa de Estaline (e nesse sentido a crítica e o relaxamento de
Khrushchev a Gorbachev foram positivos), as suas políticas externas
provaram ser menos positivas.

No balanço histórico global, a contribuição de Estaline foi muito mais
positiva do que negativa, e esse aspecto positivo é relevante para a
situação da Rússia no mundo de hoje e indispensável à Rússia. A acusação
ocidental de estalinização poderia, numa inversão dialéctica (ou lance
de judo), ser um ingrediente essencial para a sobrevivência e êxito da
Rússia, como foi outrora. Se a questão que a Rússia enfrenta é
"NATO-ização ou neo-estalinização?", só pode haver uma resposta racional
e patriótica.


        22/Abril/2022


    [*] Ph.D. em Ciência Política, antigo Embaixador Extraordinário e
    Plenipotenciário da República Democrática Socialista do Sri Lanka
    junto da Federação Russa.

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/russia/guerra_justa.html#asterisco
22/4/2022

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