segunda-feira, 30 de maio de 2022

Tendência rumo à emergência de uma classe média “internacional”

 


    Prabhat Patnaik [*]


O chanceler do Tesouro da Grã-Bretanha, cuja residência oficial é ao
lado da do primeiro-ministro britânico, é Rishi Sunak, de origem
indiana. A secretária do Interior britânico é Priti Patel, também de
origem indiana. A vice-presidente dos EUA Kamala Harris, é de
ascendência mista indiana e jamaicana. Pode-se continuar; há muitos
casos notáveis de "histórias de êxito" no mundo dos negócios
internacionais. Não se trata de pessoas que estejam necessariamente
isoladas dos seus países de origem. A esposa de Rishi Sunak, por
exemplo, continua a ser cidadã indiana; e Madeleine Albright, a [antiga]
secretária de Estado norte-americana de origem checa (não terceiro
mundo), em tempos chegou a ser proposta como candidata presidencial à
República Checa.

Isto é uma situação sem precedentes. É verdade que figuras políticas de
grupos minoritários nos países anfitriões ocuparam posições importantes
nos seus respectivos países, sendo Benjamin Disraeli o exemplo mais
óbvio. Mas a emergente proeminência de políticos e homens de negócios
com origem no terceiro mundo na metrópole é um fenómeno totalmente novo.
Este fenómeno aparenta sublinhar a "equidade" do país anfitrião; tal
"equidade" tem também o efeito de persuadir a classe média dos países do
terceiro mundo de que conseguiria um "tratamento justo" na metrópole e
que, em consequência, está a emergir uma nova e "justa" ordem mundial em
que já não importa o próprio país de origem para alcançar o êxito. Uma
das queixas da classe média das colónias nos velhos tempos era ter de
enfrentar discriminação nos seus próprios países sob o domínio colonial,
nunca lhes sendo permitido subir acima de um certo nível nas hierarquias
oficiais; esta experiência trouxe-a à necessidade de derrubar o jugo
colonial. Em contraste, a experiência atual da classe média do terceiro
mundo convence-a de que tal discriminação já não existe; e portanto, o
fenómeno do imperialismo teria deixado de ser válido.

Mas isto estimula uma outra percepção. Se existe algum obstáculo ao
avanço sócio-económico sob o capitalismo de hoje, ele decorre não das
origens ou da cor da pele, mas da adesão a crenças ideológicas
"antiquadas" da esquerda que só "causam perturbação". Para avançar na
carreira, segue-se, há que abandonar estas crenças, que supostamente
carecem de substância, uma vez que a discriminação sistemática com base
na raça ou na etnia parece ter desaparecido. Esta percepção está
subjacente ao conformismo ideológico que se observa entre as classes
médias por toda a parte e que marca o capitalismo neoliberal
contemporâneo, uma vez que o não-conformismo ideológico, para além da
falta de substância, também prejudica a carreira. Isto tem várias
implicações.

A primeira, claro, é um amortecimento do entusiasmo das próprias classes
médias pela alteração da sociedade, mesmo numa direção não
revolucionária. Por outras palavras, o núcleo da uniformidade ideológica
que caracteriza a classe média é a adesão ao neoliberalismo. Não há
sequer qualquer inclinação rumo ao "novo liberalismo" que pessoas como
John Maynard Keynes haviam defendido, o qual enfatizava a necessidade de
uma intervenção do Estado para tornar o sistema capitalista mais
aceitável para os trabalhadores. Grande parte da "engenharia social"
agora parece mesmo desnecessária para a classe média emergente. Em
segundo lugar, este conformismo ideológico tende a promover a emergência
de uma classe média "internacional", onde o país de origem desta classe
ou o seu lugar de localização pouca diferença faz para a uniformidade da
posição ideológica por ela mantida.

Em terceiro lugar, e o mais importante, isto contribui para uma
aquiescência sem precedentes mesmo entre as classes oprimidas. Marx e
Engels argumentaram no /Manifesto Comunista/ que elementos da burguesia
e da pequena burguesia, que haviam tido o privilégio da educação e que
chegam a ver o "processo histórico como um todo", fazem uma opção de
classe diferente da sua classe de origem /("de-class")/ e desempenham um
papel pioneiro na organização dos trabalhadores e camponeses. Seguindo
esta linha de pensamento, Lênine tinha enfatizado que é esta secção de
intelectuais /"de-classed”/ que traz a consciência socialista, distinta
da mera consciência sindical, à classe trabalhadora. Mas a medida em que
os próprios intelectuais rompem com a sua classe de origem /(de-class)/
não depende apenas das suas convicções intelectuais; depende também da
sua experiência como intelectuais, do grau em que a "injustiça" do
sistema emerge como um obstáculo palpável mesmo nas suas próprias
carreiras pessoais. A remoção dos obstáculos ao progresso pessoal tem,
portanto, um efeito constrangedor sobre a dimensão relativa do grupo de
intelectuais /de-classed/ e, portanto, sobre o grau em que a teoria
revolucionária é levada à classe trabalhadora. Isto é exatamente o que
está hoje a acontecer; o aparecimento da "equidade" no sistema que
aparentemente não discrimina com base na cor da pele tem o efeito
desfocado /(refracted)/ de promover a aquiescência entre os oprimidos,
que muitos notaram ser uma marca do capitalismo neoliberal contemporâneo.

Isto leva-nos ao cerne do problema. O neoliberalismo traz
invariavelmente miséria aos camponeses e pequenos produtores do terceiro
mundo, agravando o seu nível de vida absoluto. Traz também
miserabilização absoluta aos trabalhadores:   o inchaço das reservas de
trabalho devido ao ataque à pequena produção prejudica tanto os do
exército de trabalho ativo como os do de reserva; a globalização do
capital reduz a força negocial dos trabalhadores de qualquer país em
particular; e a privatização das empresas do sector público tem um
efeito semelhante. Os trabalhadores no seu conjunto ficam assim
absolutamente pior sob o neoliberalismo; mas a classe média que se torna
"internacional", tanto devido à sua capacidade de migrar para o
estrangeiro sem receio de discriminação como também devido à
deslocalização de atividades da metrópole que lhe proporciona
oportunidades de emprego em casa, melhora a sua posição económica em
comparação com a anterior. Desenvolve-se assim um hiato dentro do
terceiro mundo entre não só a grande burguesia como também a classe
média florescente e o povo trabalhador a sofrer por causa do
neoliberalismo; e este mesmo facto contribui para uma aquiescência entre
os oprimidos.

Três advertências devem aqui ser feitas. Utilizei aqui o termo "classe
média" como uma categoria “apanha tudo”, o que é obviamente
injustificado. Vastas faixas de pessoas entre aqueles que seriam
geralmente entendidos como pertencendo à "classe média" também sofrem
sob o neoliberalismo. A questão, porém, é que números substanciais da
classe média, especialmente entre os seus escalões superiores,
beneficiam significativamente sob o regime neoliberal. E ainda que
constituam apenas um segmento de uma classe média muito mais vasta,
utilizei por conveniência o termo "classe média" apenas para eles. Em
segundo lugar, mesmo dentro deste escalão superior, a tendência para a
homogeneização ideológica acima referida é apenas uma tendência; não
afeta todos os que a ela pertencem. Há grandes números que continuam
empenhados na ideia de mudança social progressiva, só que o seu peso
relativo desce em relação ao tempo anterior. E, em terceiro lugar, mesmo
entre os restantes, a tendência para uma inculcação da homogeneidade
ideológica, não é necessariamente um fenómeno permanente. Com o
aprofundamento da crise do neoliberalismo, mesmo este segmento é
suscetível de mudar a sua perspetiva: o aprofundamento da crise, para
usar a linguagem de Marx, iria "martelar dialética" nas suas cabeças;
mas até agora o seu entusiasmo pelo neoliberalismo não parece ter-se
desvanecido.

Uma área em particular onde o hiato entre esta "classe média" e o povo
trabalhador se tem manifestado é na atitude dos media nos países do
terceiro mundo. Com certeza, os media, de propriedade e controlados pela
grande burguesia, refletem substancialmente a atitude dos seus
proprietários, a qual é pró-neoliberal e anti-trabalhadores. Mas isto é
complementado também pela atitude pró-neoliberal desta classe média, a
qual fornece o pessoal para gerir os media, e que se torna não simpática
a qualquer resistência por parte dos trabalhadores (geralmente nem
sequer mencionando tal resistência quando ela ocorre). Além disso, os
media fazem mesmo vista grossa, para o dizer de forma suave, à
perseguição de minorias étnicas ou religiosas. Não combatem o
"supremacismo maioritário" e o ódio contra a minoria, quando tal "ódio"
se torna um aliado do neoliberalismo atingido pela crise.

Na Índia esta aliança entre o "supremacismo maioritário" e a ordem
neoliberal assume a forma de uma aliança entre as corporações e o
Hindutva e assenta na propagação do ódio contra a minoria muçulmana. O
objetivo é impedir que a grande burguesia se torne o alvo de ataque por
parte dos trabalhadores, dividindo estes últimos de acordo com linhas
"comunais" e assegurando que todo o discurso social seja isolado das
questões do pão e da manteiga da existência material. O facto de, num
momento em que a rupia se afundou a um nível sem precedentes, quando a
inflação dos preços grossistas ultrapassou os 15%, quando a inflação dos
preços no consumidor se aproxima dos 8% e quando o desemprego está a
níveis nunca vistos desde a independência, os media estão cheios de
reportagens sobre um ídolo (shivling) encontrado dentro do recinto da
mesquita de Gyanvapi em Varanasi, o que indica que o veneno
comunal-fascista está a ser injetado no discurso público do país. A
conduzir esta injeção, não pode haver dúvidas, está o silêncio, ou mesmo
a cumplicidade silenciosa, deste segmento da classe média.

O combate contra a aliança corporações-Hindutva que utiliza este veneno
comunal-fascista exige ir além da agenda neoliberal e colocar perante os
trabalhadores uma agenda alternativa que os entusiasme, por aqueles
elementos da classe média que permanecem não apegados à sua classe de
origem /(“de-classed”)./


        29/Maio/2022


    [*] Economista, indiano, ver Wikipedia
    <http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>


    O original encontra-se em
    peoplesdemocracy.in/2022/0529_pd/tendency-towards-emergence-“international”-middle-class <https://peoplesdemocracy.in/2022/0529_pd/tendency-towards-emergence-%E2%80%9Cinternational%E2%80%9D-middle-class>

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_29mai22.html
30/5/2022

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