sexta-feira, 19 de agosto de 2022

O que vem a seguir?

 

 

// Alastair Crooke

«Será necessária uma longa catarse para purgar a Europa de suas ilusões
de superioridade – tal como o não-ocidente as percebe – especialmente
porque a sua pretensão a uma linhagem derivada da Roma antiga ou (ainda
menos) da Grécia antiga é mais propaganda do que verdade. A “civilização
e os valores da UE” contemporânea não se articulam de forma alguma ao
mundo pré-socrático.» A queda dessas ilusões trará consigo uma provável
fractura da UE, e não haverá nenhum mal nisso.

Em Janeiro de 2013, o presidente Xi Jinping fez um discurso aos membros
do Comité Central do Partido Comunista Chinês. O seu discurso
proporcionou uma visão do nosso mundo tal como “é” e, em segundo lugar,
embora a sua análise estivesse firmemente focada nas causas da implosão
soviética, a exposição de Xi teve claramente um significado mais amplo.
Sim, é-nos – a construção ocidental – dirigido também.
Immanuel Wallenstein já havia alertado, em 1991, contra a “falsa
consciência” ocidental do triunfo da Guerra Fria: pois, como Wallenstein
aponta, o colapso soviético não foi apenas o fim do leninismo. Foi antes
o ‘começo do fim’ para ambos os polos da grande antinomia ideológica: o
da construção do ‘Século Americano, com Deus ao nosso lado’ por um lado
- e as escatologias leninistas, igualmente universalistas, por outro”.
Uma vez que esses dois eram tecidos a partir do mesmo pano ideológico
universalista – ou seja, cada um definindo (e co-constituindo) o ‘outro’
– a perda de seu inimigo maniqueu levou ao desgaste de uma série de
estruturas geopolíticas da Guerra Fria – como a ideologia predominante e
solitária carecia de qualquer explicação satisfatória para a sua
dominação, objectivos e propósitos globais – estando ausente o “inimigo”
co-constitutivo (ou seja, o comunismo).
No discurso de Xi, ele atribuiu o desmembramento da União Soviética ao
“niilismo ideológico”: as camadas dominantes, afirmou Xi, deixaram de
acreditar nas vantagens e no valor de seu “sistema” mas, carecendo de
quaisquer outras coordenadas ideológicas para situar o seu pensamento,
as elites resvalaram para o niilismo.
“Porque se desintegrou a União Soviética? Porque caiu em pedaços Partido
Comunista da União Soviética? Uma razão importante é que, no domínio
ideológico, a competição é feroz [e necessária, poderia Xi ter
acrescentado]! Repudiar completamente a experiência histórica da União
Soviética, repudiar a história do PCUS, repudiar Lénine, repudiar Stalin
– era instalar o caos na ideologia soviética e envolver-se no niilismo
histórico”, disse Xi.
Isto não vos lembra nada? Tal como os norte-americanos repudiando a
história dos EUA como ‘História do Homem Branco’? Tal como rejeitar os
anteriores líderes da América como “proprietários de escravos”? Tal como
insultar os pais fundadores e derrubar as suas estátuas?
“Uma vez que o Partido perde o controlo da ideologia, argumentou Xi, uma
vez que deixa de fornecer uma explicação satisfatória para o seu próprio
governo, objectivos e propósitos, ele dissolve-se num partido de
indivíduos fracamente articulados, ligados apenas por objectivos
pessoais de enriquecimento e poder”, (novamente Xi). O Partido é então
tomado pelo “niilismo ideológico”.
Este, no entanto, não foi o pior resultado. O pior resultado, observou
Xi, foi que o país foi tomado por pessoas sem qualquer ideologia, mas
com um desejo inteiramente cínico e egoísta de governar.
Este é o ponto de Wallenstein: o “triunfalismo prematuro” da Guerra Fria
tornou – paradoxalmente – o maniqueísmo ideológico, sobre qual
funcionava a modernidade pós-iluminista, muito mais difícil de
sustentar. Assim como uma forma de universalismo – o liberalismo –
eliminou toda competição pela hegemonia ao fazê-lo, paradoxalmente, a
consequência foi levantar o nevoeiro mental da ideologia, permitindo o
regresso da particularidade, do enraizamento e da civilização.
Este processo tem estado há décadas em funcionamento, reformulando as
políticas em todo o mundo e revivificando tradições, povos e diferentes
formas de vida. Apenas na América, na esfera anglo-saxónica e entre os
russófobos europeus, a classe dominante continuou a resistir a essas
mudanças, utilizando recursos significativos para insistir (agora de
forma totalmente cínica) na imposição da “ordem” liberal.
Este é, então, o cerne da revolução de Xi-Putin: levantar o nevoeiro e
os antolhos da ideologia, para permitir o regresso a um concerto de
estados civilizacionais e autónomos.
Assim, “Salvar a Ucrânia” surgiu para se tornar o mais recente “sinal de
virtude” na prossecução do século americano; afivelando agora um rosto
‘atento’ (“woke”), concebido para projectar os EUA como uma ‘polícia’
moral internacional, aplicando doutrinas “atentas”, mais do que como uma
grande potência convencional. (Daí que o símbolo de apoio à Ucrânia
inclui a bandeira transgénero, reforçada com a palavra “paz”).
A guerra da Ucrânia, inadvertidamente, tornou-se ícone de um confronto
maior. A Ucrânia é símbolo de duas formas entrelaçadas de ver o mundo.
E, a nível literal, é o fulcro dos passos e contra-passos no estratégico
Grande Jogo MacKinder que vem sendo elaborado.
O significado da guerra na Ucrânia, no entanto, remonta muito atrás - ao
século V - quando os ‘bárbaros’ francos, mais tarde imbuídos de um ethos
Antigo Testamento de eleito divino, e a quem o mundo estava destinado a
ser ‘entregue’ através da aniquilação daqueles que resistem à vontade
divina, invadiram a Europa Ocidental. Isso levou a Roma Antiga ao seu
fim (em 410) e, finalmente, deu instância ao Império Carolíngio (Reich).
Esqueçam Napoleão como a raiz da russofobia europeia. Os ideólogos
carolíngios, para consolidarem o poder, lançaram cinicamente uma brutal
guerra cultural contra a civilização que se estendera da China e do
Tibete a norte, à Mesopotâmia e ao Egipto a sul, e tinha raízes também
na bacia do Mediterrâneo.
A Europa moderna, ou seja, o “Ocidente”, é um produto da civilização
franca e foi construída sobre as ruínas e o sangue da civilização
anterior. Foram necessários os séculos francos para erradicar
completamente as civilizações romanas (ortodoxas) do sul da Europa e
substituí-las enquanto “novos romanos”. Esta última, portanto,
inclina-se para o judeo-cristianismo, tal como a ortodoxia se inclina
para impulsos anteriores.
Embora a ortodoxia tradicional russa ainda esteja em processo de se
reconstituir, é suficientemente poderosa para tornar fúteis quaisquer
tentativas de submeter a Rússia ao mundo neo-franco. O ponto aqui é que
para entender a guerra da Ucrânia no contexto da interacção em dupla
hélice do tradicionalismo intrínseco e da ideologia literal extrínseca é
tanto entender o que Putin quer dizer quando se refere ao nazismo e
entender por que a Rússia vê a história como um continuum de hostilidade
à civilização russa – que se estende desde O Grande Cisma (1054),
passando pelas duas Guerras Mundiais, até ao cisma de hoje centrado em
torno da Ucrânia.
Mas voltando a hoje, e à geopolítica, e ao que vem a seguir –
Em primeiro lugar, o Grande Jogo. A libertação da costa ucraniana do Mar
Negro, incluindo Mariupol e Kherson, foi uma enorme “conquista
estratégica do Grande Jogo”, uma vez que, tal como MK Bhadrakumar
perspicazmente explica, a segurança do Estreito de Kerch garante o
trânsito marítimo do Mar Negro até Moscovo e São Petersburgo, além de
proporcionar a rota marítima estratégica entre o Mar Cáspio (através do
Canal Volga-Don) ao Mar Negro e ao Mediterrâneo.
A “grande perspectiva” aqui é que o rio Volga não apenas liga o Mar
Cáspio ao Mar Báltico, mas liga também à Rota do Mar do Norte (Ártico)
(através da hidrovia Volga-Báltico). Basta dizer que a Rússia ganhou o
controlo de um sistema integrado de vias navegáveis, que liga o Mar
Negro ao Mar Cáspio, e daí ao Báltico, e também à Rota do Mar do Norte
(que é uma rota marítima de 4.800 km de comprimento que une o Atlântico
ao Oceano Pacífico, passando pelas costas russas da Sibéria e do Extremo
Oriente).
A inexorável lógica estratégica para esses movimentos é que Odessa tem
de estar na agenda estratégica da Rússia, já que é o centro de abertura
do sistema de hidrovias do Danúbio que liga a Rússia à Europa central. A
distância entre Odessa e o Delta do Danúbio é de aproximadamente 200 km.
Em seguida, o Grande Jogo da Cimeira de Teerão encenado por Moscovo. A
anterior Cimeira do Cáspio (29 de Junho) tendo assegurado o Cáspio
contra a entrada de navios da NATO, abriu caminho na Cimeira de Teerão
(19 de Julho) a uma grande ampliação do corredor Norte-Sul, ligando o
porto de São Petersburgo a norte, através Porto de Bandar Abbas do Irão
no Golfo, ao Mumbai.
Se a encenação do Grande Jogo de Moscovo parecesse excessivamente
centrada em ligações fluviais, estaríamos então a perder a segunda
metade da história. A metade que a acompanha é uma estratégia de rede de
‘corredor e oleoduto’ que cruza Irão, Ásia Ocidental e Central, Índia e
China. Era disso que tratavam os grandes contratos assinados em Teerão
(US$ 40 milhões de milhões com a Gazprom e US$ 30 milhões de milhões com
a Turquia): a energia russa alimenta a China; o desenvolvimento do campo
de South Pars do Irão alimentará a Índia com energia de baixo custo; e a
Turquia tornar-se-á um Estado-Chave de trânsito de energia.
Naturalmente, os EUA estão ocupados em obstruir este movimento do Grande
Jogo, com o chefe da CIA viajando para o Cazaquistão e a UE tentando
atrair o Azerbaijão.
E que mais? Desde há algum tempo, Moscovo vem implementando uma
arquitectura de segurança para a Ásia Ocidental. Os BRICS e a SCO estão
a ganhar peso potencial; A equipa de Lavrov tem trabalhado arduamente no
Golfo; e a Cimeira de Teerão fez este projecto alargado dar um enorme
passo a frente.
Em breve, ao que parece, podemos esperar que Moscovo tenha os seus
‘patos todos alinhados’ de modo a apresentar uma proposta a Tel Aviv:
digamos que Moscovo adianta um ‘Acordo de Minsk’ no Médio Oriente e diga
a Israel que este acordo representa o único caminho para evitar uma
guerra de múltiplas frentes com o Irão. Irá dar certo? Pode Israel fazer
a transição? É problemático. Netanyahu empurrou Israel para uma posição
ideológica de extrema-direita. Israel está agora do lado errado do
paradigma do Médio Oriente.
Paralelamente ao conflito Irão-Israel, um “Minsk” sírio pode também
aparecer – na medida em que a atenção de Moscovo à Ucrânia seja
atenuada. A Rússia está também a ampliar suavemente o movimento em
direcção a um novo sistema de comércio para o não-ocidente baseado em
commodities.
A Reuters informou na segunda-feira (18 de Julho) que a Rússia está a
procurar pagamento em dirhams dos Emirados Árabes Unidos da parte de
alguns importadores indianos pelo seu comércio de petróleo. Uma factura
a que a Reuters teve acesso mostrou que esses pagamentos devem ser
feitos ao Gazprombank via o seu banco correspondente em Dubai, o
MashreqBank. Na cimeira de Teerão, os laços entre Irão e Rússia
estreitaram-se e foi acordado um sistema conjunto de compensação financeira.
Podemos esperar mais disto: o ritmo está a acelerar. O comércio de ouro
e commodities, bem como alguns serviços financeiros como seguros de
navios e cargas, podem bem ser transferidos da Europa para a região
(para nunca mais voltar) - e talvez um mecanismo de negociação de
futuros de referência nos Urais seja estabelecido no futuro. O objectivo
é libertar das garras ocidentais os mercados de commodities, pela via da
manipulação dos mercados de papel de commodities e da negociação de opções.
Quanto à Europa, a “retribuição do gás” por parte de Moscovo pelas
sanções impostas está efectivamente a levar a UE a “auto-mutilar-se”,
imitando a mesma cartilha económica em relação ao fornecimento de gás
russo, tal como a Alemanha fez em relação aos seus baratos depósitos de
carvão. Este acontecimento ocorreu depois de a França, em 1923, ter
tomado o Ruhr (como penalidade por incumprimento nas Reparações dos
danos da guerra). Localizada no oeste do país, a região do Ruhr era o
coração industrial da Alemanha, lar da maior parte da sua produção de
carvão e aço. A Alemanha (enfrentando grandes pagamentos de Reparação)
estava determinada a subsidiar a sua base industrial e a financiar as
suas desmembradas linhas de fornecimento de armas para se rearmar –
enfrentando todavia o sequestro de um fornecimento de energia barata, o
governo de Weimar começou a imprimir dinheiro. O que a Alemanha “obteve”
foi hiperinflação e quebra das linhas de abastecimento, agravando a
inflação. Bruxelas parece pronta para seguir este mesmo manual.
O que é extraordinário aqui é que a Europa assumiu essa lacuna sobre si
mesma, num excesso de entusiasmo por “salvar a Ucrânia”. O protesto
público na Europa já começou e provavelmente aumentará ainda mais. À luz
da enorme oscilação do pêndulo da Europa da adesão a alguma aparência de
autonomia estratégica – apenas para se abandonar à influência de
Washington e da NATO – o pêndulo provavelmente voltará atrás, à medida
que a recessão e os picos de preços mordam.
O Deep State Europeu irá esforçar-se para manter o rumo, mas irá
abrir-se uma fissura na Europa entre os Estados que não ousam deixar o
‘Tio Sam’ (como a Polónia) e aqueles determinados a afastar-se e
envolver-se com a Rússia. Essas tensões podem bem fracturar a UE.
Será necessária uma longa catarse para purgar a Europa de suas ilusões
de superioridade – tal como o não-ocidente as percebe – especialmente
porque a sua pretensão a uma linhagem derivada da Roma antiga ou (ainda
menos) da Grécia antiga é mais propaganda do que verdade. A “civilização
e os valores da UE” contemporânea não se articulam de forma alguma ao
mundo pré-socrático. A Europa moderna – o Ocidente – é mais o produto da
civilização franca e carolíngia.
No entanto, Moscovo pode também, em última análise, oferecer ao tronco
europeu um “acordo de Minsk”. Isso está, contudo, provavelmente muito longe.

Fonte:
https://www.strategic-culture.org/news/2022/07/25/llusions-of-superiority-whats-next/ <https://www.strategic-culture.org/news/2022/07/25/llusions-of-superiority-whats-next/>

Em
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/o-que-vem-a-seguir/
19/8/2022

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