sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

A exigência orçamental de um Estado Providência

 
 


    Prabhat Patnaik [*]



O período pós Segunda Guerra Mundial assistiu a uma série de medidas do
Estado Providência /(welfare state)/ nos países capitalistas avançados,
especialmente na Europa, numa emulação do que a União Soviética estava a
fazer. O capitalismo teve de aceitar estas medidas, apesar da sua
hostilidade para com elas, porque estava em meio a uma crise
existencial, enfraquecido pela guerra, abalado pelo aumento da cólera da
classe trabalhadora e aterrorizado com a propagação do socialismo na
Europa do Leste. Contudo, com a subsequente consolidação da sua posição
a sua hostilidade às medidas do Estado Providência manifestou-se
abertamente. Tentou fazê-las recuar, embora, graças à resistência dos
trabalhadores, não tivesse o êxito que desejaria. Mesmo uma pessoa como
Margaret Thatcher não conseguiu desmantelar o Serviço Nacional de Saúde
na Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo, ironicamente, o capitalismo retirou
algum grau de legitimidade do Estado Providência, com a sua afirmação de
que, longe de ser predatório, era na verdade um sistema que garantia o
bem-estar do povo.

No entanto, a manutenção do Estado-Providência tem significado um rácio
impostos/PIB substancialmente mais elevado em comparação com o período
anterior nos países europeus e também em comparação com os números
atuais para os países que têm restringido a assistência social. Na lista
de países organizados por ordem decrescente do rácio impostos/PIB no ano
2020, 29 dos 30 principais países são da Europa, tanto ocidentais como
do leste, ou seja, países que tiveram um legado de governos comunistas
ou sociais-democratas; o único país não europeu é Cuba o qual está não
só sob governo comunista, mas cujas medidas de Estado-providência são
admiradas em todo o mundo.

Governos comunistas a adotarem medidas de Estado-Providência e
aumentarem os recursos necessários para este fim através de elevados
níveis de tributação – e esta disposição persistiu mesmo após o colapso
do comunismo – não deveriam ser uma surpresa. O que impressiona, porém,
é que a Social Democracia da Europa Ocidental também tem mantido um
elevado rácio imposto/PIB para financiar as suas receitas de
Estado-Providência. A França encabeça a lista com um rácio impostos/PIB
de 46,2%, seguida pela Dinamarca (46,0), Bélgica (44,6), Suécia (44,0),
Finlândia (43,3), Itália (42,4) e Áustria (41,8). A conclusão inevitável
que emerge é que a manutenção de um Estado Previdência exige uma pesada
tributação, ou seja, uma forte interferência do Estado no padrão da
distribuição de rendimentos que é gerada espontaneamente pelo mercado.

Nenhum destes países europeus tem sido caracterizado por taxas de
crescimento do PIB tão impressionantes como as das economias de
crescimento elevado de hoje, mesmo no auge da chamada Idade de Ouro do
capitalismo nos anos imediatos do pós-guerra. As suas taxas de
crescimento do PIB caíram para níveis ainda mais baixos no período que
seguiu ao colapso da bolha da habitação em 2008. A Índia, pelo
contrário, enquanto os seus responsáveis continuavam a dar palmadinhas
nas costas por ser uma economia supostamente de alto crescimento, tem
medidas de Estado Previdência abissais, e, não surpreendentemente, um
rácio impostos/PIB (18,08 por cento) que se aproxima do extremo inferior
da escala.

Destas verificações decorrem três proposições. *Primeiro*, o chamado
efeito “gotejamento” /("trickle-down")/ do crescimento do PIB é um
conceito completamente vazio. O resultado do funcionamento do
capitalismo irrestrito nunca poderá ter êxito espontaneamente na
elevação do nível de bem-estar da massa da população trabalhadora. Isto
acontece porque o capitalismo nunca pode funcionar sem um exército de
reserva de trabalho, em que uma das suas funções principais é manter os
salários baixos mesmo quando a produtividade laboral continua a
aumentar, de modo a que a parte do excedente na produção social aumente,
levando a um maior consumo por parte dos capitalistas e aos seus
"acólitos". Os trabalhadores não obtêm automaticamente os benefícios do
crescimento económico sob o capitalismo. É verdade que, se se
organizarem, podem lutar por e até obter melhores condições de vida. Mas
nesse caso forçariam também o Estado a aumentar o rácio imposto/PIB com
o qual lhes proporcionaria um salário social mais elevado. Por outras
palavras, o determinante crucial é a sua capacidade de combater
eficazmente, não a taxa de crescimento económico cujos benefícios
supostamente são "gotejados".

O mesmo se pode dizer acerca da crença de que, apesar dos baixos níveis
de tributação, uma elevada taxa de crescimento do PIB colocará
automaticamente tantos recursos nas mãos do governo que este será capaz
de gastar montantes adequados para elevar o bem-estar dos trabalhadores.
Isto é uma crença completamente descabida: a transição para um
Estado-providência nunca ocorre furtivamente ou por pequenos acréscimos
de medidas supostamente benevolentes. Ela ocorre como uma rutura, da
qual a mobilização dos recursos necessários através de um aumento
substancial do rácio impostos/PIB é um reflexo.

A *segunda* proposição é a seguinte. Não só o crescimento /per se/ do
PIB não leva a um Estado-providência, mas, de facto, fetichizar o
crescimento do PIB torna-se um meio de /impedir/ qualquer transição para
um Estado-providência, de criar uma falsa narrativa de que os
trabalhadores ficariam realmente melhor ao permitir transferências de
recursos para os capitalistas, de modo a que estes possam empreender um
maior investimento e, desse modo, dar início a um maior crescimento do
PIB, do que por insistir em transferências para si próprios para a
criação de um Estado-providência. Esta última posição é mesmo
pejorativamente chamada "populismo" e ridicularizada como sendo
esbanjadora e míope porque implica a distribuição dos chamados “brindes”
/("freebies")./ Esta fetichização do crescimento do PIB é utilizada como
argumento para manter baixo o rácio impostos/PIB, pois qualquer aumento
do mesmo, que tipicamente exigiria tributar os capitalistas, é
alegadamente suposto para destruir a sua "empresa" e consequentemente o
seu incentivo a investir, assim prejudicando o crescimento do PIB.

O raciocínio aqui está com certeza analiticamente errado:   os
capitalistas não investem mais apenas porque têm maiores recursos à sua
disposição. As suas decisões de investimento são governadas pelo
/crescimento esperado do mercado/ e, portanto, não aumentam simplesmente
porque lhes são dados maiores recursos através de transferências. Mas
mesmo este argumento analiticamente erróneo é utilizado para
desacreditar qualquer reivindicação de um estado previdência e subverter
qualquer movimento em direção a ele. No entanto, o que mostra a
experiência dos Estados-Providência em todo o mundo é que o rácio
impostos/PIB tem de ser grandemente aumentado para alcançar um tal
Estado, o que envolve um aumento substancial da tributação dos
capitalistas e ignorar completamente o argumento acerca das suas danosas
perspetivas de crescimento. A exigência de um Estado-Providência, por
outras palavras, deve ultrapassar a fetichização do crescimento do PIB o
qual faz parte da apologia burguesa.

A *terceira* proposição diz respeito à dialética da exclusão. Como as
transferências de recursos são feitas do orçamento do governo para os
capitalistas a fim de estimular o crescimento do PIB, e como a magnitude
relativa das transferências aumenta com o início da recessão e da
estagnação que tipicamente constitui o desfecho do capitalismo
neoliberal, restam menos recursos, mesmo para as despesas de bem-estar
miseráveis que estavam a ser feitas anteriormente a partir do orçamento.
Isto resulta na privatização da educação, saúde e outros serviços
essenciais, o que leva a uma maior exclusão dos trabalhadores de todos
estes serviços. Uma vez que as transferências feitas para os
capitalistas não provocam qualquer aumento do investimento ou mesmo um
aumento muito imediato do seu consumo, a redução das despesas de
bem-estar que correspondem a tais transferências, tem o efeito de
/reduzir acima de tudo a procura agregada./ Isto tem o efeito de
/reduzir/ a taxa de crescimento do PIB, de modo que o esforço para
elevar a taxa de crescimento desta forma tem paradoxalmente o efeito
exatamente oposto, mas isto torna-se uma desculpa para novos aumentos
nas transferências para os capitalistas, os quais têm o efeito de
reduzir ainda mais a taxa de crescimento. Uma vez que o reverso de tais
transferências é uma redução das despesas de bem-estar, a escala de tais
despesas diminui gradualmente. Em suma, afastamo-nos cada vez mais de
quaisquer perspetivas de um Estado-providência ao invés de avançarmos
para ele.

Nós na Índia estamos atualmente no meio de uma tal dialética. Tal é a
pressão sobre os recursos orçamentais, tanto devido ao baixo rácio
impostos/PIB como à crescente escala de transferências para capitalistas
sob a ideia errada de promover o investimento e o crescimento do PIB,
que o governo central está mesmo a dissolver o Esquema Nacional de
Garantia de Emprego Rural Mahatma Gandhi, que anteriormente servira como
linha de salvação para os pobres rurais.

Existem, para esclarecer e recapitular, dois problemas distintos com o
fetichismo do crescimento do PIB que é propagado na presente era de
capitalismo neoliberal:   um, o erro analítico subjacente à afirmação de
que dar maiores transferências aos capitalistas leva a um maior
investimento e, consequentemente, a um crescimento; e   dois, a
afirmação de que um maior crescimento do PIB leva por si mesmo a um
maior bem-estar para o povo, mesmo que o rácio impostos/PIB seja
pequeno. A experiência em todo o mundo mostra que a construção de um
Estado-providência exige um enorme aumento do esforço orçamental.


        04/Dezembro/2022


    [*] Economista, indiano, ver Wikipedia
    <http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>


    O original encontra-se em
    peoplesdemocracy.in/2022/1204_pd/fiscal-requirement-welfare-state
    <https://peoplesdemocracy.in/2022/1204_pd/fiscal-requirement-welfare-state>. Tradução de JF.

EM
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_04dez22.html
4/12/2022

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