sábado, 17 de dezembro de 2022

O capitalismo como ditadura

 


 

// Manuel Loff

Os “estados de emergência” aprovados no parlamento (por PS, PSD, BE,
PAN, Chega) deram golpes profundos nos direitos dos trabalhadores. Os
primeiros retiraram o direito à greve - nas condições que o governo
entendesse – e suspenderam “o direito das associações sindicais de
participação na elaboração da legislação do trabalho” em termos que
abriam caminho a toda a arbitrariedade. Medidas de emergência? Pelo
contrário. Do que se tratou foi de empreender uma escalada que os
governos e a Comissão Europeia pretendem levar ainda mais longe. O alvo
a abater são todos e quaisquer direitos conquistados pelos trabalhadores.

Chegado o outono regressa a recorrente crise do sistema público de
saúde. E, contudo, há muito pouco tempo, com a pandemia, vivemos a
ilusão de que a saúde pública, em Portugal e nos demais países onde ela
foi sujeita a décadas de austeridade e a processos de “racionalização”
de serviços e equipamentos que favoreceu descaradamente a privatização,
ia ser finalmente devidamente valorizada, os seus trabalhadores iam
passar a ser respeitados, as suas carreiras e as suas remunerações iam
espelhar o seu esforço e compromisso profissional, dando-se dessa forma
um contributo decisivo para resolver o crescente défice de pessoal com
que o SNS se enfrenta.

Esta foi a mais amarga das ilusões alimentada pela reação social e
política à pandemia. A de que os gestores neoliberais de governos, de
direita ou sociais-democratas, pareciam arrepender-se de 30 anos do que
haviam (des)feito. Não fora Boris Johnson salvo pelo SNS britânico, não
estava ele grato ao enfermeiro português? — que, diga-se de passagem,
havia emigrado para procurar fora de Portugal as condições de trabalho
que aqui lhe não davam. A verdade é que, uma vez passada a opressão do
medo da pandemia e a encenação política do “estamos todos no mesmo
barco”, a forma como se tem tratado os trabalhadores da saúde pública é
uma extraordinária lição sobre a verdadeira natureza do neoliberalismo.

Parece que nos esquecemos que, enquanto se aplaudia nas varandas os
trabalhadores do SNS que salvavam vidas, Marcelo, Governo e a grande
maioria do Parlamento (PS, PSD, BE, PAN, Chega) aprovavam os três
primeiros estados de emergência (março e maio de 2020), retirando a
esses trabalhadores (mulheres na sua grande maioria) nada menos do que o
direito à greve “na medida que possa comprometer o funcionamento de
infraestruturas críticas ou de unidades de prestação de cuidados de
saúde, bem como em setores económicos vitais para a produção,
abastecimento e fornecimento de bens e serviços essenciais à população”
— isto é, basicamente tudo o que o Governo entendesse. No segundo estado
de emergência suspendeu-se também “o direito das associações sindicais
de participação na elaboração da legislação do trabalho, na medida em
que o exercício de tal direito possa representar demora na entrada em
vigor de medidas legislativas urgentes”. Em duas penadas varria-se dois
dos direitos básicos de qualquer Estado de direito democrático.
Quem achou que tudo isto era coisa só da pandemia (e, pelos vistos,
justificável) precisa agora de perceber a sequência autoritária de todos
os processos de normalização da exceção. Desde setembro passado que a
Comissão Europeia pretende retirar aos trabalhadores o direito de fazer
greve no quadro de “medidas de contingência para garantir a livre
circulação, bem como a disponibilidade de bens e serviços essenciais
durante uma crise”. E quem vai definir o que é uma “crise”? Os governos
dos Estados-membros. A Confederação Europeia de Sindicatos denunciou
nesse momento que tal significaria que “uma greve poderia ser
considerada uma ‘crise’”, o que significaria diretamente “violar
direitos reconhecidos na própria Carta dos Direitos Fundamentais da UE”.
Dias depois, foi o que fez o Governo finlandês (social-democrata) ao
aprovar legislação que limita o direito de greve dos trabalhadores da
saúde. Na semana passada, convocadas que estão greves no SNS britânico,
o Governo conservador ameaçou os sindicatos que as convocam com medidas
que proíbam trabalhadores de “infraestruturas estratégicas como a saúde”
de fazer greve (Guardian, 9/12/2022). Ora, “infraestrutura estratégica”
é também a educação, qualquer serviço público… Esta é uma velha lição da
história das relações de trabalho e das políticas sociais sob o
neoliberalismo. Quanto mais se desinveste nas políticas sociais públicas
(saúde, educação, Segurança Social), pior se prestam os serviços, mais
cresce o descontentamento e mais os governos neoliberais nele procuram
sustentar as duas soluções que querem sempre impor: privatizar e
securitizar. Isto é: enquanto não se consegue privatizar o que resta dos
serviços públicos, sujeitar os trabalhadores a normas militares,
tratando-os como soldados ao serviço do Estado (ou do patrão privado). O
sonho da ditadura capitalista.

Fonte: jornal “Público”, 13.12.2022

Em
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/o-capitalismo-como-ditadura/
16/12/2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário