domingo, 25 de dezembro de 2022

Um merecido prémio!

 
 


    Hugo Dionísio [*]

A génese do sr. Zelensky.

Um sentimento de total justiça foi o que senti quando assisti à entrega
do Prémio Sakharov ao comediante Zelensky. Raramente um prémio
incorpora, de forma tão substancial, a profunda ligação entre a
instituição que o promove, as grandes famílias políticas europeias que o
aprovaram e o próprio destinatário. Aplaudi de pé! Sim, senhor! Eu
aprovo totalmente!

A conta bancária que inexplicavelmente apareceu na Suíça, divulgada
através dos Pandora Papers, recheada com quase mil milhões de euros, em
nome do premiado, explica mais do que se pode imaginar. Explica tudo!

Tomemos Eva Kaili <https://resistir.info/europa/qatar_eva.html>, por
exemplo. Uma estrela em ascensão na política internacional, transformada
numa fugitiva que mostra, por fora, o que ela não é por dentro. Assumir
que Eva e seus comparsas são uma exceção que, pelo dinheiro, fama e
glamour que ele proporciona, concordaram em defender publicamente o que
anteriormente alegavam desprezar... é não está a prestar atenção à
política europeia do século XXI.

No século XXI, ser dos partidos políticos centristas (principalmente os
social-democratas, liberais e conservadores moderados) significa
muito... significa tudo! Significa não ser um "extremista", é claro, "de
esquerda" ou "de direita", reduzindo todo o espectro a dois campos – o
aceitável, o "mainstream", o "equilibrado"; e, o "inaceitável", o
"radical" e o "sectário"; pertencer a um "extremo" é o mesmo, seja qual
for o lado em que você esteja. Estar no meio, isso é tudo, e isso não
está mais em discussão. Nem vale a pena lançar qualquer argumento,
porque a classificação nestes termos visa principalmente não discutir nada.

Não que se possa generalizar e executar tudo pela mesma medida; isso não
é grave nem sequer aconselhável, e é precisamente o que querem os que
determinam que qualquer análise deve ser feita nos termos que mencionei.
Mas esta é, acima de tudo, a história do mainstream político. Dizendo
uma coisa... e fazendo outra.

Tomemos o próprio prémio Sakharov:   conceder esse prémio a um sujeito
cujo governo tornou ilegais mais de uma dúzia de partidos políticos,
confiscando as suas propriedades; ao líder de um governo que confisca
propriedades da Igreja Ortodoxa e persegue seus clérigos por defenderem
a "Santa Russ", composta pelos três países irmãos do Oriente eslavo, dos
quais Kiev é a cidade-mãe; que proibiu o uso da língua nativa de quase
metade da população do país, queimando livros, destruindo estátuas e
filmes que retratam a cultura nessa língua; persegue jornalistas por
relatarem o que ele não pretende; detém ativistas políticos que a ele se
opõem e mentiu nas eleições que ganhou, prometendo o que não pretendia
fazer... Todo cidadão atento foi capaz de testemunhar em primeira mão o
que o prémio Sakharov realmente significa, para que foi criado e quais
objetivos que persegue. Tal como acontece com Eva Kaili, o prémio é tudo
o que diz que não é!

E se Eva Kaili aceitou, por 250 000 euros (o que, sendo dinheiro, não
torna ninguém rico), defender tudo o que aos seus eleitores disse que
não estava defendendo, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: se Eva
aceita tal coisa vinda de um país como o Qatar, com as reservas que tal
origem levanta nos europeus comuns (e americanos), o que não aceitarão
todas as Evas do Parlamento Europeu, da Comissão, do Conselho e dos
Governos, quando as origens de tal "apoio" vierem de uma fonte mais
fiável, geograficamente falando? Quando, por exemplo, vêm do outro lado
do Atlântico, dos EUA?

O que quero dizer é: se eles estão dispostos a venderem-se ao Qatar, por
uma maioria de razões, a sua vontade de se venderem ao eixo Atlantista é
ilimitada! Vindo este pedido de qualquer Atlantic Council, Fundações
Clinton ou Gates, e todo os interesses dos povos que eles dizem
representar torna-se instrumental para os interesses de seus mentores,
subitamente transformados em guardiões. A verdade é que, no final, o
sistema imposto funciona como uma máfia: uma vez que você entra, não tem
por onde sair... E se você sair, eles decretam a sua morte política,
social e, ainda mais importante (para essas pessoas), morte económica.
Você se torna "extremista" e então…

E nem sequer é preciso dinheiro! Cessam os convites para ensinar, para
escrever artigos em revistas de topo, para falar em conferências
internacionais e para entrar na rotação política, que, mais cedo ou mais
tarde, levará a uma reforma dourada antecipada, paga em espécie, através
de uma brutal dependência ou de uma posição corporativa em qualquer
conselho da Golden Sachs (vejamos Durão Barroso que se comportava como
um líder de claque para a guerra das armas de destruição massiva no
Iraque), em alguma Fundação ou, pelo menos, em alguma ONG financiada
pelo National Endowment for Democracy (NED), estrutura utilizada pelos
donos de todo essa gente para intervir nas mais diversas áreas da
"sociedade civil", moldando e instrumentalizando secretamente o sistema
político, económico e social, a fim de responder exclusivamente às suas
necessidades.

As centenas de milhões de dólares que todos os anos o Congresso aprova –
que não votamos, mas que está muito a cargo de todos nós europeus – com
o propósito de produzir "campanhas de informação" sobre países que são
adversos aos "ideais" e "valores" americanos, alimentam toda uma teia de
interesses que vão desde a imprensa corporativa do Atlântico Norte a
ONGs como a Associação Internacional de Cartunistas pela Democracia
(cartunistas! Eles conhecem muito bem o poder do humor!). Todos os que
vivem para essa roda de altos interesses acabam direta ou indiretamente,
sendo financiados por essas instituições ou por uma das inúmeras linhas
previstas no mesmo orçamento para campanhas de "democracia e direitos
humanos".

Essas linhas, que qualquer pessoa pode conferir no respetivo site,
dedicam milhares de milhões de dólares pagos pelos contribuintes para
que o Departamento de Estado use um de seus exércitos (soft: diplomacia,
imprensa e ONG; hard: serviços secretos e forças armadas) nos países em
que se estabelecem (Venezuela, Cuba ou Bolívia na América Latina;
Malásia, Tailândia ou China na Ásia; Turquia, Moldávia ou Sérvia na
Europa; Argélia, Egito ou Angola na África).

Ana Gomes, cartoon de Fernão Campos.
<http://ositiodosdesenhos.blogspot.com/>

Olhemos para uma Ana Gomes, deputada portuguesa ao Parlamento Europeu,
por exemplo. Não porque em 2014 ela tenha andado na companhia de
Victoria Nuland na Praça Maidan a distribuir lanches para jovens C14
(juventude neonazista, equivalente à Juventude Hitleriana), embora a
companhia de Nuland diga mais do que se poderia imaginar sobre o papel
real – mas não reconhecido – de Ana Gomes. Basta uma pesquisa aleatória,
por exemplo, no site do Atlantic Council (relacionado com a NED), e
rapidamente descobrimos um artigo desta eurodeputada (não foi por acaso
que a invoquei) sobre a Líbia. A mesma Líbia que sua Aliança Atlântica
destruiu, levando-a de ser o país com a maior rendimento per capita da
África, diretamente para a Idade Média.

Sem perder uma noite de sono por ter contribuído para destruir a vida de
dezenas de milhões de pessoas, vemos o epílogo desta atividade na sua
"colaboração" com o Movimento Mundial para a Democracia (também
relacionado com a NED), em que Ana Gomes aparece como "Membro do Comité
Diretivo – Spearheads Nicaragua Advocacy no Parlamento Europeu", em nome
de uma organização... Americana, em Washington, na Pennsylvania Avenue,
como a NED. Por que acham que ela aparece tanto nos ecrãs de TV?

A "defesa da Nicarágua" que ela promove, é a mesma "defesa" que
"defende" sanções aos povos porque elegeram quem Washington não queria,
por quererem integrar o país nas novas rotas da seda e por terem
relações privilegiadas com Moscovo. Depois de inúmeras campanhas
subversivas e tentativas de uma revolução colorida a que as pessoas
resistiram, acompanhadas por uma campanha internacional de calúnias
maliciosas e mentiras descaradas, aqui estão as famosas sanções usuais,
destinadas a matar de fome o povo para derrubar o governo. Pessoas como
ela chamam tudo isso de "defender a Nicarágua".

Mas a farsa não estaria completa sem a atribuição do Prêmio Nobel da Paz
de 2022, pelo menos 1/3 dele, ao CCL (Centro para Liberdades Civis),
formado em 2007 e, segundo eles, muito focado no estabelecimento da
democracia e do Estado de Direito na Ucrânia. Esta é outra organização
financiada pela Freedom House, o Freedom Fund (não há necessidade de
dizer de onde vem, de acordo?), pelos governos francês, belga e de todos
os governos da Europa Ocidental e, claro, pela União Europeia.

Uma joia de uma organização nacional da Ucrânia! Nem um centavo vem
desse país. E não há dúvida de que fez um trabalho digno de um Prémio
Nobel da Paz: a formação de uma milícia nazista como o batalhão Azov e
Haidar, ou o C14, um golpe de Estado em 2014, a formação do segundo
maior exército da NATO depois do dos EUA, a extinção de partidos, a
perseguição de opositores e, cereja no topo do bolo, um dos países mais
corruptos do mundo. Isto é motivo para dizer: Parabéns CCL. Realmente
merece o Prémio Nobel da Paz! Do resto, os 2/3 do prémio, nem vale a
pena falar, porque revelam em toda a extensão o que é o Prémio Nobel da
Paz. Uma arma política a serviço da Casa Branca!

Tudo funciona ao contrário. Se quiser saber como a UE pensa, não precisa
de ir mais longe, por exemplo, ao CEPA (Center for European Policy
Analyses), também financiado pelo NED, invariavelmente localizado na
Pennsylvania Avenue, em Washington, que analisa, estuda e propõe
políticas para a Europa que vão da energia à segurança. Ler os
relatórios e comunicados e registar a sua estreita ligação às políticas
europeias "democráticas" e "transparentes" que influenciam decisivamente
os nossos países e as nossas condições de vida é um exercício brilhante:
90% dos eleitores europeus acabariam por descobrir a inutilidade
original do seu voto. Eles votam aqui, mas está decidido lá! Eu sei que
dói... Mas é só ir ver!

Esta rede composta por milhares de organizações que a nível global vivem
da ligação central com o NED, o braço "social" da CIA (também sediado no
mesmo lugar) constitui um dos pilares mais importantes do império
neoliberal. É através dessa interseção de organizações, onde as palavras
"liberdade", "democracia", "transparência", "direitos humanos", "ajuda
humanitária", "meio ambiente" e "sustentável" abundam como seu próprio
léxico de identificação, e circulam as propostas políticas que fluem
diretamente para o cérebro do mainstream e encontram um lar na imprensa
corporativa do Atlântico Norte. Depois de serem repetidas no google, nas
escolas, nas universidades ou nas TV, a maioria chega a pensar que foram
elas que as adotaram quando, na verdade, não passam de meras ferramentas
de gravação e reprodução. Desculpe dececionar aqueles de vocês que
pertencem aos principais partidos, mas seus cérebros não são outros
senão os da CIA. Vocês são meros terminais.

E esta é outra farsa que deve ganhar um grande prémio! Talvez deem aos
povos europeus o prémio da inteligência, da consciência política e da
determinação! Estaria em linha com os anteriores!


        22/Dezembro/2022


    [*] Advogado, conselheiro político, analista e investigador da
    Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN).


    A versão em inglês encontra-se em thesaker.is/a-well-deserved-prize/
    <https://thesaker.is/a-well-deserved-prize/>.

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/ucrania/um_merecido_premio.html
22/12/2022

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