domingo, 18 de janeiro de 2015

Cooperação agrícola, o símbolo do Assentamento Conquista na Fronteira*



Assentamento Conquista na Fronteira, em Santa Catarina, é exemplo de trabalho
coletivo na produção de alimentos e na geração de renda




Por Daniel Cassol


A cada final de mês o assentamento Conquista na Fronteira, em Dionísio
Cerqueira (SC), recebe caravanas de diferentes partes do Brasil e do mundo.
“Sempre tenho visitas aqui na minha horta”, brinca a assentada Maria Gonçalves,
que coordena a produção de hortaliças. Os visitantes são estudantes,
pesquisadores, integrantes de governos, militantes sociais e demais interessados
em conhecer a exitosa experiência do assentamento localizado no oeste de Santa
Catarina, na fronteira com a Argentina, que faz da Cooperunião uma referência
internacional.


Fundada em 1990, dois anos depois da conquista do assentamento, a Cooperunião é
um exemplo de organização dos agricultores Sem Terra. Mais do que isso, a prova
viva de que a Reforma Agrária pode garantir alimentação saudável, renda e
desenvolvimento tanto para os assentados quanto para as comunidades.


São 60 famílias vivendo nos 1198 hectares do assentamento, mas nenhuma delas
possui seu próprio lote, a não ser formalmente. No Conquista na Fronteira, toda
a produção é coletiva e centralizada na Cooperunião, que conta com 110 sócios
trabalhadores. Cada um é remunerado de acordo com as horas trabalhadas – oito
horas para homens e quatro para mulheres e jovens, que trabalham no turno
inverso da escola ou faculdade.




Distribuição de hortaliças e legumes na horta coletiva do assentamento

Trata-se de um processo relativamente complexo que só funciona com muita
organização. “A principal característica do assentamento é a organização, o que
exige muito trabalho. Há uma divisão entre setores de produção que não se
encontra em qualquer lugar”, afirma Neudi Guindani, integrante da coordenação da
cooperativa.


A Cooperunião é uma Cooperativa de Produção Agropecuária (CPA) na qual todas as
decisões são tomadas em conjunto na Assembleia Geral, instância máxima da
organização, e discutidas nos seis Núcleos de Base do assentamento. As
instâncias diretivas – a Direção Coletiva, o Conselho Diretor e o Conselho
Social e Político – também funcionam de forma colegiada.


A estratégia é primeiro garantir a subsistência das famílias com alimentação de
qualidade e, depois, industrializar a produção para a geração de renda, que é
colocada em prática por cinco equipes de trabalho do Setor de Produção:
Subsistência e Reflorestamento, Bovinocultura, Avicultura, Grãos e
Administrativo e Social. Todos eles atuam de forma coordenada. A cooperativa
também conta com comissões de Educação, Saúde, Esporte e Lazer, Animação e
Visitas e Grupo de Jovens, que organizam as demais demandas na vida do
assentamento.




Em média, são abatidos 3 mil frangos por dia no frigorífico

Cooperação


A melhor maneira de compreender como se organiza a produção na Cooperunião é
percorrer os caminhos do assentamento. Na área central está o escritório, onde
funciona a parte administrativa da cooperativa. Ao lado, localizam-se o setor de
saúde e o alojamento para visitantes, e defronte está o salão comunitário. Mais
adiante fica o galpão que funciona como central da equipe de grãos, responsável
pelo abastecimento de sementes, fabricação de ração para as criações e
organização do uso do maquinário pelos outros setores. “Onde precisa de máquina
ou de sementes, nós somos acionados”, explica o coordenador Matias Weber.


Bem perto deste galpão está o frigorífico de aves, que beneficia o frango Terra
Viva, que presta serviços para empresas avicultoras da região. Ele nasceu em
1997, a partir de uma orientação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) sobre as potencialidades do assentamento. Atualmente, o frigorífico
funciona apenas à tarde e, durante cerca de quatro horas, são abatidos uma média
três mil frangos por dia. Trata-se de uma área estratégica dentro do Setor de
Produção da Cooperunião, já que contribui para capitalizar a cooperativa.


É no frigorífico que trabalha a maior parte dos assentados, numa média de 45
pessoas que se dividem entre os diferentes setores da linha de produção. O
coordenador Hélio Draszevski explica que o frigorífico é estratégico para o
assentamento não apenas na questão econômica, mas também “é um trabalho
diferenciado que agrada os jovens. Por isso, além de suprir a parte econômica,
cria uma alternativa para a permanência da juventude no campo”, avalia o
assentado.


Maria Salete, responsável pela horta


Merenda


Vendido no mercado convencional em Santa Catarina e em outros estados, o frango
Terra Viva também integra as 900 cestas básicas distribuídas duas vezes por
semana em Dionísio Cerqueira, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Um convênio com o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) faz com que o frango do
assentamento faça parte da merende escolar do município. A cooperativa também
abastece um restaurante popular mantido pela prefeitura com carne de frango,
peixe e suíno.


Dali, pouco se perde e muito se aproveita. Com a finalidade de se pensar numa
produção de forma sustentável e ecológica, os restos do frigorífico são
reaproveitados na alimentação dos peixes ou na formação de adubo, por exemplo,
algo que exige uma atuação coordenada entre os diferentes setores de produção do
assentamento.




A Escola Municipal Construindo o Caminho nasceu de uma reivindicação das
famílias quando estavam acampadas

Percorridas as áreas administrativa, de grãos, maquinário e de avicultura, uma
quarta estrutura dentro do setor de produção cuida da produção de alimentos e do
reflorestamento. Trata-se de um dos setores mais importantes e diversificados
dentro da estrutura da cooperativa, espalhados por toda a área do assentamento:
as lavouras de feijão, os 12 açudes de produção de peixes, os suínos, as aves de
postura, a criação de abelhas para a produção de mel garantem, de forma
coletiva, a subsistência dos assentados e a renda por meio da comercialização.


Por outro lado, as áreas de manejo da erva-mate e de reflorestamento com
eucalipto para a utilização da lenha representam a conservação das Áreas de
Proteção Ambiental, que foram recuperadas, além de mais uma fonte de renda, uma
vez que as folhas de erva-mate são vendidas para ervateiras da região.


Na horta coletiva, que integra o setor responsável pela subsistência, os
assentados podem retirar hortaliças, legumes, ervas e até mesmo flores sempre
que precisarem. Diariamente, pela manhã, ocorre a distribuição às famílias
assentadas, garantindo verduras e legumes frescos na mesa do almoço. A horta é
coordenada pela assentada Maria Salete Gonçalves, que atualmente participa de um
curso de agroecologia para qualificar a produção. Há também um viveiro de mudas
de árvores frutíferas para que as famílias mantenham pomares nos quintais de
casa.




Fátima e Altidor Matt

Caminhando em direção à entrada do assentamento se encontra outro setor
estratégico para a geração de renda: a produção de leite. São 190 vacas que
produzem de 2,9 mil a 3,1 mil litros de leite diariamente, que são vendidos à
Cooperoeste, cooperativa ligada ao MST no município de Chapecó, responsável pela
produção o leite Terra Viva. A alimentação dos animas é a base de pasto, por
meio do sistema de rotação de pastagens conhecido como Pastoreio Racional Voisin
(PRV), uma alternativa agroecológica para a criação de animais. A suplementação
é feita com a silagem produzida no próprio assentamento, a partir da fábrica de
rações. Contando com as vacas de leite e com o gado de corte, o plantel do
assentamento conta com 402 cabeças de gado. A meta para o próximo ano, segundo
Leoni Rodrigues, um dos coordenadores do setor, é ter 230 vacas produzindo
leite.


Entre janeiro e outubro de 2012, a Cooperunião teve um faturamento de R$ 268
mil, montante que é dividido entre os assentados e utilizado na própria
manutenção e crescimento da cooperativa. Cumprindo os objetivos estratégicos de
garantir primeiramente a subsistência do assentamento para depois avançar na
industrialização e comercialização da produção, a Cooperunião é um marco da
importância da Reforma Agrária. Há um tempo, uma placa na entrada do
assentamento dizia: “Uma experiência que deu certo”. O assentado Altidor Matt
propôs uma mudança simples, embora significativa: “Uma experiência que dá
certo”. Porque as conquistas são visíveis dia após dia.


União desde o acampamento


A história do assentamento Conquista na Fronteira se confunde com a história do
próprio MST. As famílias que construíram a Cooperunião estavam entre as
primeiras que ocuparam latifúndios em Santa Catarina, em 1985, nos municípios do
oeste do estado. Hoje assentado, o casal Fátima e Altidor Matt recorda com
detalhes os cerca de três anos em que estiveram acampados antes de conquistar a
terra. “Olhando a nossa situação hoje em dia, até parece mentira tudo o que
passamos”, recorda Fátima, que atravessou o estado na caçamba de uma caminhonete
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) junto com outras
companheiras, naquele junho de 1998, quando chegaram ao assentamento.


A geografia da fazenda desapropriada impulsionou a ideia de produção coletiva,
algo que já estava sendo elaborado nos tempos do acampamento. Se cada família
ficasse com seu lote individual, um grupo seria muito beneficiado, com áreas de
erva-mate e bastante água, enquanto outros ficariam muito prejudicados com áreas
pedregosas. Assim, se consolidou a ideia de coletivizar a terra e a produção.
“Se não fosse assim não teria dado certo. Foi a melhor forma de organização”,
afirma Altidor Matt.


Assentados trabalham na carpia da lavoura


O assentado recorda que, inicialmente, as famílias do Movimento estavam
organizadas em núcleos no acampamento, discutindo a forma de produção que
levariam ao futuro assentamento. Após muitas discussões com o Incra, definiu-se
que o assentamento seria dividido entre 35 famílias ligadas ao MST e outras 25
que vinham de comunidades do interior de Dionísio Cerqueira que também foram
beneficiadas.


O primeiro recurso foi utilizado no aluguel de um trator para arar as terras e
plantar alimentos. Na safra seguinte, os assentados compraram o trator e, aos
poucos, as famílias dos dois grupos foram compartilhando as máquinas e
consolidando a ideia de lavrar a terra coletivamente.


“Começamos a discutir primeiro a produção do que comer. Depois veio a questão da
comercialização e da industrialização da nossa produção”, conta o assentado
Neudi Guindani. “Mas já saímos do acampamento decididos a trabalhar
coletivamente”, reforça.


O começo da produção no assentamento foi de muita dificuldade. Até no plantio
de fumo os assentados se aventuraram, abandonando a empreitada ao perceberem os
malefícios para a saúde e o meio-ambiente. A Cooperunião acabou sendo a
ferramenta necessária para impulsionar a produção de alimentos e a geração de
renda para os agricultores. Mas os desafios são permanentes.


“Para manter uma estrutura como essa, é preciso muito trabalho e organização. É
uma tarefa cotidiana”, afirma Altidor Matt. “O grande desafio hoje é avançar na
formação política e técnica dos assentados para dar um salto na produção”,
complementa Neudi Guindani.





A escola do assentamento trabalha com uma realidade voltada à Reforma Agrária

Educação, saúde e lazer


O assentamento Conquista na Fronteira não se caracteriza somente pela produção
de leite, frango, hortaliças e erva-mate. A educação caminhou junto com o
processo de desenvolvimento da Cooperunião. E o assentamento hoje coloca
questões como saúde e lazer no mesmo patamar de prioridade da produção de
alimentos.


No organograma da Cooperunião, a escola, a ciranda infantil e o Setor de Saúde
integram uma das equipes de trabalho do Setor de Produção, dentro de uma lógica
de que a educação e a saúde contribuem no processo de produção. No âmbito do
Conselho Social e Político, existem as comissões de Educação, Saúde, Esporte,
Lazer, Animação e Visitas e Grupo de Jovens.


A Escola Municipal Construindo o Caminho nasceu de uma reivindicação das
famílias quando elas ainda estavam acampadas. Formalizada em 1990, ela surgiu da
necessidade não apenas de alfabetizar os filhos de assentados, mas inseri-los
numa proposta pedagógica adequada à Reforma Agrária. A começar pelo nome. A
prefeitura municipal queria que a escola se chamasse “Tracutinga”, nome da
comunidade onde se localiza o assentamento e da antiga fazenda que existia no
local. Mas os assentados optaram por “Construindo o Caminho”.


A escola também conta com atividades curriculares complementares para as
crianças

A escola hoje tem atividades curriculares e complementares para crianças da
pré-escola ao quarto ano do ensino fundamental. Dentro da proposta pedagógica do
MST, os professores trabalham os temas a partir do fato gerador. As crianças
também são responsáveis pela gestão da escola: assim como na cooperativa, elas
tomam decisões em conjunto, definem regras para o funcionamento da escola e
atividades que serão desenvolvidas. Por sua história, método de aprendizagem e
importância no contexto do assentamento, a escola Construindo o Caminho é um dos
motivos que faz do Conquista na Fronteira uma referência para a Reforma Agrária.


Marinês Brunetto e Vanda Grespan, professoras efetivas da escola, explicam que
Dionísio Cerqueira conta atualmente com apenas duas escolas do campo. O
município, que já teve 56 escolas, hoje tem quatro núcleos municipais.
“Concordamos com a nucleação, mas com escolas que se enquadrem no mesmo
objetivo. Por isso a importância da nossa escola”, afirma Marinês.




Ciranda Infantil ajuda as mães a também participarem das atividades

Além da escola, o Conquista na Fronteira conta com a ciranda infantil, cuja
historicidade também remonta às origens do assentamento. Ali, crianças de zero a
quatro anos são cuidadas e realizam atividades enquanto os pais trabalham em
algum dos setores de produção da cooperativa. Já os estudantes maiores, que
precisam estudar em escolas da cidade ou mesmo nas faculdades da região, são
acompanhados pela comissão de Educação.


Os assentados também construíram ao longo do tempo uma política de saúde,
centralizada no setor coordenado atualmente pela assentada Natalia Hebert. Ela é
responsável pela produção de chás naturais e pela conscientização dos assentados
da importância da prevenção às doenças. Casos mais graves são encaminhados ao
hospital da cidade. Uma vez por semana, um médico vem ao assentamento.


A preocupação com o bem estar dos moradores do assentamento se estende para
outras áreas. Um grupo de jovens com 24 integrantes discute as inquietudes da
juventude. “Seja por falta de trabalho ou mesmo para conhecer outras realidades,
os jovens estão deixando o campo. No grupo refletimos sobre estas questões”,
afirma Matias Weber, que integra o grupo responsável também por atividades
festivas e recreativas.


O Conquista na Fronteira se destaca também no esporte. No salão da comunidade,
há um espaço reservado para dezenas de troféus conquistados pelos times de bocha
e futebol em torneios da região. A grande atração do assentamento é o Estrela
Vermelha, um dos primeiros times de futebol de assentados, que costuma amealhar
títulos municipais em Dionísio Cerqueira. “No último campeonato ganhamos o
troféu de equipe mais disciplinada”, ressalta César Gonçalves, jogador e às
vezes treinador do Estrela Vermelha.

In

MST
http://www.mst.org.br/2015/01/15/cooperacao-agricola-o-simbolo-do-assentamento-conquista-na-fronteira.html
15/1/2015
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* Referências analíticas relativas à CPA, bem como à escola Construindo o Caminho,
podem ser encontradas em:
DAL RI, N.M.; VIEITEZ, C.G. Educação democrática e trabalho associado no movimento dos trabalhadores rurais sem terra e nas fábricas de autogstão São Paulo: Ícone:

FAPESP, 2008. 345 p.

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