sexta-feira, 20 de março de 2015

A América Latina na dinâmica da guerra global





por Jorge Beinstein [*]

Tudo ao mesmo tempo: em meados do mês de Março de 2015 os Estados Unidos
deram um salto qualitativo de claro perfil belicista nas suas acções
contra a Venezuela, também desenvolvem exercícios militares em países
limítrofes com a Rússia na chamada operação "Atlantic Resolve", algumas
dessas operações são realizadas a uns 100 quilómetros de São Petersburgo
[1] , além disso intensificam-se informações acerca de uma nova ofensiva
do governo de Kiev contra a região do Donbass [2] , aumenta a circulação
de naves de guerra da NATO no Mar Negro, continuam as velhas guerras
imperiais no Iraque e no Afeganistão às quais acrescentou-se a seguir a
ofensiva contra a Síria (passando pela Líbia)... e muito mais...

Evidentemente o Império está lançado numa catastrófica fuga militar para
a frente estendendo suas operações a todos os continentes, encontramo-nos
em plena guerra global. Nem os grandes meios de comunicação, nem os
dirigentes internacionais mais importantes registaram publicamente o
facto, todos falam como se vivêssemos em tempos de paz, só em alguns
poucos casos surgem alguns deles a advertir sobre o perigo de guerra
mundial ou regional. Uma excepção recente é a do Papa Francisco quando
afirmou que actualmente nos encontramos perante "uma terceira guerra
mundial" que ele descreve como a desenvolver-se "por partes" ainda que sem
designar os contendores e fazendo vagas referências à "cobiça" e a
"interesses espúrios" com a linguagem confusa e jesuítica que o
caracteriza [3] .

A cada mês acrescenta-se algum novo indiciar que anuncia a proximidade de
uma nova recessão global muito mais forte e extensa que a de 2009. O
capitalismo, a começar pelo seu polo imperialista, foi-se convertendo
velozmente num sistema de saqueio onde a reprodução das forças produtivas
fica completamente subordinada à lógica do parasitismo. As elites
imperiais e suas lumpen-burguesias satélites "necessitam" super-explorar
até ao extermínio seus recursos naturais e mercados periféricos para
sustentar as taxas de lucro do seu decadente sistema produtivo-financeiro.

As tendências globais rumo à decadência económica exprimem-se de
múltiplas maneiras no dia a dia. Dentre elas, a volatilidade dos preços
das matérias-primas, o petróleo por exemplo, chave mestra da economia
mundial, cujo estancamento extractivo (que não conseguiu ser superado pelo
show mediático em torno do "milagroso" petróleo de xisto) combina-se com
desacelerações da procura internacional como ocorre actualmente. A isso
somam-se golpes especulativos e geopolíticos que convertem os mercados em
espaços instáveis onde as manobras de curto prazo impõem a incerteza.

O curto-prazismo especulativo hegemónico engendra pacotes tecnológicos
depredadores como a mineração a céu aberto, a fracturação hidráulica ou a
agricultura com base em transgénicos acompanhados por operações políticas
e comunicacionais que degradam, desarticulam sistemas sociais procurando
convertê-los em espaços indefesos diante dos saqueios.

O optimismo económico da época do auge neoliberal deu lugar ao pessimismo
do "estancamento secular" agora apregoado pelos grandes peritos do sistema
[4] . Eles indicam que a salvação do capitalismo não chegará a partir da
economia condenada a sofrer recessões ou crescimentos insignificantes, o
melhor é nem falar demasiado desses tristes temas. Então a guerra ascende
ao primeiro plano, algum massacre protagonizado por tropas regulares ou
mercenários, algum bombardeio, alguma ameaça de ataque na Europa do Leste,
Ásia, África ou América Latina. Os meios de comunicação nos esmagam com
essa notícias, contudo ninguém fala da guerra global.

Tudo acontece como se a dinâmica da guerra se houvesse autonomizado mas
empregado um discurso embrulhado, difícil de entender. Mas assim como os
super-poderes dos homens de negócios dos anos 1990 não eram independentes
e sim compartilhados no interior de uma complexa trama de poderes
(políticos, mediáticos, militares, etc) que em termos gerais costuma-se
denominar como "classe dominante", também a aparente autonomia do militar
dificulta-nos ver as redes mafiosas de interesses onde se borram as
fronteiras entre os seus componentes. As elites da era neoliberal sofreram
mudanças decisivas, experimentaram mutações que as converteram em classes
completamente degeneradas que, cada vez mais, só podem recorrer à força
bruta, à lógica da guerra. Não se trata portanto de a componente militar
se autonomizar e sim, antes, de que as elites imperialistas se
militarizam. Elas já não seduzem com ofertas de consumo mais algumas
doses de violência, agora só propagam o medo, ameaçam com as suas armas ou
utilizam-nas.

Progressismos latino-americanos

Dentro desse contexto global devemos avaliar os progressismos
latino-americanos [5] que se instalaram na base das crises de
governabilidade dos regimes neoliberais.

Os bons preços internacionais das matérias-primas durante a década
passada, somados a políticas de contenção social dos pobres,
permitiram-lhes recompor a governabilidade dos sistemas existentes. Em
alguns desses casos desenvolveram-se ampliações ou renovações das elites
capitalistas e em quase todos eles prosperaram as classes médias. Os
governos progressistas iludiram-se supondo que as melhorias económicas
lhes permitiram ganhar politicamente os referidos sectores mas, como era
previsível, ocorreu o contrário: as camadas médias iam para a direita e,
enquanto ascendiam, olhavam com desprezo os de baixo e assumiam como
próprios os delírios mais reaccionários das suas burguesias. A explicação
é simples, na medida em que são preservados (e ainda fortalecidos) os
fundamentos do sistema e em que seus núcleos decisivos radicalizam seus
elitismo depredador seguindo a rota traçada pelos Estados Unidos (e
"Ocidente" em geral) produz-se um encadeamento de subculturas
neo-fascistas que vão desde acima até abaixo, desde o centro até as
burguesias periféricas e desde estas até suas camadas médias. Na
Venezuela, Brasil ou Argentina as classes médias melhoravam seu nível de
vida e ao mesmo tempo despejavam seus votos nos candidatos da direita
velha ou renovada.

Estabeleceu-se um conflito interminável entre governos progressistas que
tornavam governáveis os capitalismos locais e direitas selvagens ansiosas
por realizar grandes roubos e esmagar os pobres. O progressismo,
confrontado politicamente com essa direita qualificada de
"irresponsável", cujos fundamentos económicos respeitava, chantageava
aqueles na esquerda que criticavam sua submissão às regras do jogo do
capitalismo utilizando o papão reaccionário ("nós ou a besta"),
acusando-os de fazerem o jogo da direita. Na realidade o progressismo é um
grande jogo favorável ao sistema e em última análise à direita, sempre em
condições de retornar ao governo graças à moderação, à "astúcia"
aparentemente estúpida dos progressistas que por vezes conseguem cooptar
esquerdas claudicantes cuja obsessão em "não fazer o jogo da direita" (e
simultaneamente integrar-se no sistema) é completamente funcional à
reprodução do país burguês e em consequência a essa detestável direita.

Agora o jogo começa a esgotar-se. Os progressismos governantes, com
diferentes ritmos e variados discursos, acossados pelo arrefecimento
económico global e pelo crescente intervencionismo dos Estados Unidos,
vão perdendo espaço político. Em vários casos suas dificuldades fiscais
pressionam-nos a ajustar despesas públicas (e de modo algum a reduzir os
super lucros dos grupos económicos mais concentrados), a aceitar as
devastações da mega-mineração ou a adoptar medidas que facilitam a
concentração de rendimentos. No Brasil, o segundo governo Dilma colocou
um neoliberal puro e duro no comando da política económica, encurralado
por uma direita ascendente, uma economia oscilando entre o estancamento e
a recessão e uma intervenção norte-americana cada vez mais activa. No
Uruguai o novo governo de Tabaré Vazquez mostra um rosto claramente
conservador e no Chile a presidência Bachelet não precisa correr demasiado
à direita, depois da sua rosada demagogia eleitoral afirma-se como
continuidade do governo anterior e em consequência, passada a confusão
inicial, herdará também a hostilidade de importantes faixas de esquerda e
dos movimentos sociais.

Na Argentina, o núcleo duro agro-mineral exportador-financeiro e os
grupos industriais exportadores mais concentrados estão mais prósperos do
nunca enquanto a ingerência norte-americana amplia-se conduzindo o jogo de
títeres políticos rumo a uma ruptura ultra-direitista. Na Venezuela a
eterna transição rumo a um socialismo que nunca acaba de chegar não
conseguiu superar o capitalismo ainda que torne caótico o seu
funcionamento, forjando desse modo o cenário de uma grande tragédia. Por
enquanto só a Bolívia parece salvar-se da avalanche, afirmando-se na maior
mutação social da sua história moderna sem superar o âmbito do
subdesenvolvimento capitalista mas recompondo-o integrando as massas
submersas, multiplicando por mil o que havia feito o peronismo na
Argentina entre 1945 e 1955 (de qualquer forma isso não a liberta da
mudança de contexto regional-global).

Na América Latina assistimos a um processo de crise muito profundo onde
convergem progressismos declinantes com neoliberalismo integralmente
degradados, como na Colômbia ou no México, conformando um panorama comum
de perda de legitimidade do poder político, avanços de grupos económicos
saqueadores e activismo imperialista cada vez mais forte.

A este panorama sombrio é necessário incorporar elementos que dão
esperança, sem os quais não poderíamos começar a entender o que está a
ocorrer. Por debaixo dos truques políticos, dos negócios rápidos e das
histerias fascistas aparecem os protestos populares multitudinários, a
persistência de esquerdas não cooptadas pelo sistema (para além dos seus
perfis mais ou menos moderados ou radicais), a presença de insurgências
incipientes ou poderosas (como na Colômbia).

Nem os cantos de sereia progressistas nem a repressão neoliberal puderam
fazer desaparecer ou marginalizar completamente esses fantasmas.
Realidade latino-americana que preocupa os estrategas do Império, que
temem o que consideram como sua inevitável arremetida contra a região
possa desencadear o inferno da insurgência continental. Nesse caso o
paraíso dos grandes negócios poderia converter-se num grande atoleiro
onde afundaria o conjunto do sistema.

Geopolítica do Império, integrações e colonizações

A estratégia dos Estados Unidos aparece articulada em torno de três
grandes eixos; o transatlântico e o transpacífico que apontam num
gigantesco jogo de pinças contra a convergência russo-chinesa centro motor
da integração euro-asiática. E a seguir o eixo latino-americano destinado
à recolonização da região.

Os Estados Unidos tentam converter a massa continental asiática e sua
ampliação russo-europeia num espaço desarticulado, com grandes zonas
caóticas, objecto de saqueio e super-exploração.

Os recursos naturais, assim como os laborais, desses territórios
constituem seu centro de atenção principal, na elipse estratégica que
cobre o Golfo Pérsico e a Bacia do Mar Cáspio estendendo-se em direcção à
Rússia encontram-se 80% da reservas globais de gás e 60% das de petróleo e
na China habitam pouco mais de 230 milhões de operários industriais
(aproximadamente um terço do total mundial).

A América Latina aparece como o pátio traseiro a recolonizar. Ali se
encontram, por exemplo, as reservas petrolíferas da Venezuela (as primeira
do mundo, 20% do total global), cerca de 80% das reservas mundiais de
lítio (num triângulo territorial compreendido pelo Norte do Chile e
Argentina e pelo Sul da Bolívia) imprescindível na futura indústria do
automóvel eléctrico, as reservas de gás e petróleo de xisto do Sul
argentino, fabulosas reservas de água doce do aquífero guarani entre o
Brasil, o Paraguai e a Argentina.

Uma das ofensivas fortes do Império na década passada foi a tentativa de
constituição da ALCA, zona de livre comércio e investimentos que
significava a anexação económica da região por parte dos Estados Unidos. O
projecto fracassou, a ascensão do progressismo latino-americano somado à
emergência de potências não ocidentais, sobretudo a China, e o atolamento
estado-unidense na sua guerra asiáticas foram factores decisivos que em
diferentes medidas debilitaram a investida imperial.

Mas a partir da chegada de Obama à presidência os Estados Unidos
desencadearam uma ofensiva flexível de reconquista da América Latina: foi
posta em marcha uma complexa mescla de pressões, negociações,
desestabilizações e golpes de estado. Os golpes brandos com êxito em
Honduras e no Paraguai, as tentativas de desestabilização no Equador,
Argentina, Brasil e sobretudo na Venezuela (onde vai-se perfilando uma
intervenção militar), mas também a tentativa em curso de extinção
negociada da guerrilha colombiana e a domesticação de Cuba fazem parte
dessa estratégia de recolonização.

A mesma é implementada através de uma sucessão de tentativas suaves e
duras tendente a desarticular as resistências estatais e os processos de
integração regional (Unasul, Celac, Alba) e extra-regionais periféricos
(BRICS, acordos com a China e a Rússia, etc) assim como a bloquear,
corromper ou dissolver as resistências sociais e as alternativas políticas
mais avançadas, em curso ou potenciais. Tentando levar avante uma dinâmica
de desarticulação mas procurando evitar que a mesma gere rebeliões que se
propaguem como um rastilho de pólvora numa região actualmente muito
inter-relacionada.

Sabem muito bem que em muitos países da região a substituição de governos
"progressistas" por outros abertamente pró imperialistas significa a
ascensão de camarilhas enlouquecidas que a curto prazo causariam situações
de caos que poderiam desencadear insurgências perigosas. Alguns estrategas
do Império acreditam poder neutralizar esse perigo com o próprio caos,
desenvolvendo "guerras de quarta geração" instalando diferentes formas de
violência social desestruturante combinadas com destruições
mediático-culturais e repressões selectivas. Nesse sentido, o modelo
mexicano é para eles (por agora) um paradigma interessante.

Temem por exemplo que um cenário de caos fascista na Venezuela derive
numa guerra popular que os obrigaria a intervir directamente num conflito
prolongado, o que somado às suas guerras asiáticas os conduziria a uma
super extensão estratégica ingovernável. É por isso que consideram
imprescindível obter o apaziguamento da guerrilha colombiana, potencial
aliada estratégica de uma possível resistência popular venezuelana.

O panorama é completado com o processo de integração colonial dos países
da chamada Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile). A isso
somam-se os tratados de livre comércio de maneira individual com países da
América Central e outros como o Chile e a Colômbia e o velho tratado entre
EUA, Canadá e México.

Integração colonial e desarticulação, manipulação do caos e
fortalecimento de pólos repressivos, Capriles mais Peña Nieto, Ollanta
Humana mais Santos mais bandos narco-mafiosos... tudo isso dentro de um
contexto global de decadência sistémica onde a velha ordem unipolar
declina sem ser substituída por uma nova ordem multipolar. Tentativa de
controle imperialista da América Latina submersa na desordem do
capitalismo mundial.

O cérebro do Império não consegue superar as mazelas do seu corpo
envelhecido e enfermo, os delírios reproduzem-se, as fugas para a frente
multiplicam-se. Evidentemente encontramo-nos num momento histórico
decisivo.


19/Março/2015

Notas
[1] Finian Cunningham, "NATO's Shadow of Nazi Operation Barbarossa",
Strategic Culture Foundation, 13/03/2015
[2] Colonel Cassad, "Ukraine: Reprise de la guerre au printemps?",
http://lesakerfrancophone.net/ le 13 mars 2015
[3] "El papa Francisco advirtió que vivimos una tercera guerra mundial
combatida 'por partes' ", http://www.lanacion.com.ar , 13 de septiembre
de 2014
[4] Laurence H Summers, "Reflections on the 'New Secular Stagnation
Hypothesis'" y Robert J Gordon, "The turtle's progress: Secular
stagnation meets the headwinds" en "Secular Stagnation: Facts, Causes,
and Cures", CEPR Press, 2014.
[5] Utilizo o termo "progressista" no sentido mais amplo, desde governos
que se proclamam socialistas ou pró socialistas como na Venezuela ou
Bolívia até outros de corte neoliberal-progressista como os do Uruguai ou
Brasil.

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[*] Doutorado em economia e professor catedrático das universidades de
Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba. É autor de
Capitalismo senil: a grande crise da economia global, publicado no Brasil
pela editora Record (2001). Dirige o Instituto de Pesquisa Científica da
Universidade da Bacia do Prata e publica regularmente em Le Monde
Diplomatique (em castelhano).

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

http://www.resistir.info/crise/beinstein_guerra_global_mar15.html
20/3/2015

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