sábado, 16 de abril de 2016

Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina: Uma crítica aos pós-modernistas





Edmilson Costa*


Os anos 90 do século passado e os primeiros dez anos deste século foram marcados
por intenso debate entre as forças de esquerda sobre o papel dos movimentos
sociais, das minorias, das lutas de gênero e das vanguardas políticas nos
processos de transformação econômica, social e política da sociedade. Colocou-se
na ordem do dia a discussão sobre novas palavras de ordem, novos agentes
políticos e sociais, novas formas de luta, novas concepções sobre a ação prática
política.

Esses temas e concepções ocuparam o vazio político nesse período em funções de
uma série de fenômenos que ocorreram na década de 80 e 90, como a queda do Muro
de Berlim, o colapso da União Soviética e dos países do Leste Europeu, o refluxo
do movimento sindical, a redução das lutas operárias nos principais centros
capitalistas, a perda de protagonismo dos partidos revolucionários,
especialmente dos comunistas,além da ofensiva da ideologia neoliberal em todas
as partes do mundo, sob o comando das forças mais reacionárias do capital.

A conjuntura de derrota das forças progressistas favoreceu a todo tipo modismo
teórico e fetiche ideológico. Sob diversos pretextos, certas forças políticas,
inclusive alguns companheiros de esquerda, começaram a questionar a centralidade
do trabalho na vida social, o papel dos partidos políticos como vanguarda dos
processos de transformações sociais e políticas, a atualidade da luta de classes
como instrumento de mudança da história e o próprio socialismo-comunismo como
processo que leva à emancipação humana.

Esse movimento teórico e político envolveu forças difusas, mas influentes junto
à juventude e vários movimentos sociais. O objetivo era desconstruir o discurso
dos partidos políticos revolucionários, do movimento sindical e do próprio
marxismo, como síntese teórica da revolução. Para estas forças, os discursos de
temas abrangentes, como a igualdade, o socialismo, a emancipação humana, os
valores históricos do proletariado, as soluções coletivas contra a opressão
humana, eram coisa do passado e produto de um mundo que já existia mais.

No lugar desses velhos temas, tornava-se necessário colocar um novo discurso,
como forma de forma a reconhecer a fragmentação da realidade e do conhecimento,
a constatação da diferença, a emergências de novos sujeitos sociais, com
características, valores e reivindicações específicas, como os movimentos
sociais, de gênero, raça, etnia, etc, e novas formas de formas de luta,
inclusive com renúncia à tomada do poder.

O condensamento desse ecletismo conservador, dessa matriz teórica diluidora,
pode ser expresso no que se convencionou chamar de pós-modernismo. Essa é a
fonte teórica inspiradora de todos os modismos teóricos e fetiches que se tornou
moda as duas últimas décadas. Quais são os principais supostos teóricos dos
pós-modernistas, que tanta influência tiveram nesses anos de vazio político?
Vamos nos ater a três vertentes fundamentais que norteiam os fundamentos dessa
corrente teórica.

1) O fim da centralidade do trabalho. Um dos temas mais destacados pelos
pós-modernistas é o fato de que as tecnologias da informação, a reestruturação
produtiva e a inserção acelerada de ciência no processo produtivo tornaram
obsoleto o conceito de classe operária e proletariado, até mesmo porque esses
atores estão se tornando residuais num mundo globalizado onde impera a robótica,
a internet e a informática avançada. Alguns desses teóricos chegaram a dar adeus
ao proletariado, que seria um conceito típico da segunda revolução industrial.
Prova disso, seria a constatação de que a classe operária está diminuindo em
todo o mundo e, por isso mesmo, perdeu o protagonismo para outros movimentos
emergentes no capitalismo globalizado.

Os teóricos pós-modernistas se comportam como o caçador que vê apenas as árvores
mas não consegue enxergar a floresta. Olham o mundo a partir de uma perspectiva
da Europa ou Estados Unidos. Por isso, não conseguem compreender que o capital
possui uma extraordinária mobilidade, em função da busca permanente por
valorização. Por isso, são incapazes de perceber que o proletariado está
crescendo de maneira expressiva em termos mundiais, com o deslocamento de
milhares de indústrias dos EUA e da Europa para a Ásia, processo que está
incorporando ao mundo do trabalho centenas de milhões de trabalhadores na China,
na Índia e em toda a Ásia, num movimento que está mudando a conjuntura mundial.

Não conseguem entender que o próprio capitalismo é uma contradição em processo,
pois quanto mais se moderniza, quanto mais insere ciência na produção, mais
amplia sua composição orgânica e, consequentemente, mais pressiona as taxas de
lucro para baixo. Por isso, o capitalismo não pode existir sem seu contraponto,
o proletariado. Se o capitalismo automatizasse todas suas fábricas o sistema
entraria em colapso, pois os robôs são até mais disciplinados que os seres
humanos, são capazes de trabalhar sem descanso, não reivindicam salário, nem
fazem greve, mas também tem seu calcanhar de Aquiles: não consomem. Se não tem
consumidores, os capitalistas não têm para quem vender suas mercadorias. Ou
seja, antes de uma automatização total, o sistema entraria em colapso em função
de suas próprias contradições.

2) O fim da centralidade da luta de classes. Outro dos argumentos dos teóricos
pós-modernos é a alegação de que a luta de classes é coisa do passado. Afinal,
dizem, se o proletariado está se reduzindo aceleradamente, não existe mais
identidade de classe e, portanto, não teria sentido se falar em luta de classes.
Nessa perspectiva, dizem, a reestruturação produtiva pode ser considerada uma
espécie de dobre de finados que veio sepultar os velhos agentes do passado, como
o movimento sindical. Prova disso, é que os sindicatos perderam o protagonismo e
agora agonizam em todo o mundo. E o principal representante teórico do mundo do
trabalho, o marxismo, também estaria ultrapassado, em função de sua visão
monolítica do mundo.

Novamente, os teóricos pós-modernistas também não compreendem a história e
confundem sua submissão ideológica à ordem capitalista com a realidade dos
trabalhadores. A luta de classes sempre existiu desde que as classes se
constituíram na humanidade e continuará sua trajetória enquanto existir a
exploração de um ser humano por outro. Não porque os marxistas querem, mas
porque a realidade a impõe. Nos tempos de refluxo as lutas sociais diminuem,
parece que os trabalhadores estão passivos e os capitalistas imaginam que
conseguiram disciplinar para sempre os trabalhadores.

Nessa conjuntura, o discurso do fim da luta de classe, da passividade dos
trabalhadores, chega a influenciar muita gente, afinal, quem não tem uma
perspectiva histórica do mundo se atém apenas à superfície dos fenômenos, à
aparência das coisas. Mas nos momentos de crise do capitalismo, esse discurso se
torna inteiramente inadequado, entra em choque com a realidade, uma vez que a
crise coloca a luta de classes na ordem do dia com uma atualidade
extraordinária, para desespero daqueles que imaginavam o seu fim.

Se observarmos a realidade atual, onde o sistema capitalismo enfrenta sua maior
crise desde a Grande Depressão, poderemos facilmente constatar e emergência da
luta de classes em praticamente todas as partes do mundo. É só observar as
insurreições no Oriente Médio, na África, as lutas na América Latina, as greves
e mobilizações na Europa. Além disso, a crise também tornou o marxismo mais
atual do que nunca. Mesmo os capitalistas estão lendo O Capital para tentar
entender o que está ocorrendo no mundo.

3) As vanguardas políticas não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo
globalizado. O terceiro dos argumentos-chave dos teóricos pós-modernistas é o
fato de os partidos revolucionários, especialmente os comunistas, não têm mais
nenhum papel a desempenhar no mundo atual. A ação política agora deve ser
comandada pelos movimentos sociais, pelos movimentos de gênero, minorias
étnicas, de raças, sexuais, etc, que são vítimas de “opressões específicas”.
Isso porque os partidos seriam organizações autoproclamatórias, autoritárias,
portadoras de um fetiche autorealizável, que é a revolução socialista.Essas
instituições, portadoras de um discurso utópico de emancipação humana, estão
também definhando em todo o mundo porque não estariam entendendo a realidade do
mundo globalizado.

Mais uma vez os teóricos pós-modernistas não conseguem compreender a totalidade
da vida social. Por isso, vêem o mundo sem unidade, fragmentado e disperso. Não
entendem que, por trás da “opressão específica” que atinge os movimentos sociais
e de gênero, etnia, raça, sexual, está o grande capital apropriando a mais-valia
de todos, independentemente de raça, sexo ou orientação religiosa . Não
compreendem que os movimentos, por sua própria natureza, têm limites
institucionais e de representatividade.

Um sindicato, por mais combativo que seja, deve representar os interesses dos
trabalhadores que representa. Da mesma forma que uma entidade estudantil, uma
organização de moradores, de mulheres ou de homosexuais tem como objetivo
defender os interesses específicos de seus representados, atuam nos limites
institucionais da ordem burguesa. Somente o partido político revolucionário, que
se propõe a derrotar a ordem capitalista e que junta em suas fileiras todos
esses segmentos sociais, possui condições para entender a totalidade da luta
política e lançar propostas globais para a transformação da sociedade.

A prática das lutas sociais

Se observarmos as lutas sociais que foram realizadas nos últimos anos, poderemos
constatar facilmente que grande parte delas foram derrotadas exatamente porque
não existiam vanguardas com capacidade de conduzir e orientar essas lutas para a
radicalidade da luta de classes e a emancipação do proletariado. Não se trata
aqui de negar a importância das lutas específicas ou dos movimentos sociais.
Pelo contrário, são fundamentais para qualquer processo de mudança, servem
também como aprendizado da luta dos trabalhadores, mas deixadas por si mesmas,
apenas com seu conteúdo espontaneísta, não tem condições de realizaras
transformações da sociedade e terminam se esvaziando e sendo derrotadas pelo
capital.

O teatro de operações é mais ou menos o seguinte: após um momento de euforia e
mobilização os movimentos sociais são capazes de realizar proezas
impressionantes, como desacreditar a velha ordem, desafiar as classes
dominantes, mas num segundo momento a euforia se esgota em si mesma sem atingir
os objetivos por falta de perspectivas. A América Latina é um importante posto
de observação para constatarmos essa hipótese, mas também em várias partes do
mundo os exemplos são férteis para verificarmos a necessidades de vanguardas
políticas.

A Bolívia, por exemplo, foi palco de várias insurreições populares contra
governos neoliberais. As massas se sublevaram, foram às ruas aos milhões,
derrubaram os governos conservadores, mas o máximo que conseguiram foi eleger um
presidente progressista que é fustigado a todo momento pelo capital e não
consegue realizar plenamente nem o próprio programa a que se propôs no período
das eleições.
No Equador, ocorreram também várias insurreições populares. Em uma delas, os
movimentos conquistaram o poder e o entregaram a um militar que depois os traiu
e agora é um personagem conservador na política do País. Posteriormente, no bojo
de outra insurreição, conseguiram eleger um presidente progressista, mas este
não consegue implementar um programa transformador porque o capital não lhe dá
trégua. Recentemente quase foi deposto por um setor militar sublevado.

Na Argentina, em função da crise econômica herdada do governo neoliberal de
Menem, as massas também se sublevaram aos milhões em várias regiões do País. Em
um período curto o País mudou três vezes de presidente. O resultado da
sublevação popular foi a eleição de Nestor Kirchner e, posteriormente, de sua
companheira, Cristina Kirchner. Nesses anos de poder, os Kirchner também não
realizaram nenhuma mudança de fundo. O capitalismo seguiu seu curso como se nada
tivesse acontecido.

Mais recentemente, duas grandes insurreições populares derrubaram os governos
conservadores da Tunísia, do Egito e do Iêmen. Milhares de pessoas se sublevaram
durante vários dias, centenas de pessoas morreram, os ditadores deixaram o
poder, mas os movimentos sociais, sem vanguarda política, não conseguiram seus
objetivos. Setores da burguesia local encabeçaram a formação de novos governos e
os trabalhadores mais uma vez deixaram escapar de suas mãos a revolução.
No Brasil, um grande movimento social, o Movimento dos Sem Terra (MST)
enfrentou com bravura os governos neoliberais, tendo como norte a bandeira da
reforma agrária. Organizou um movimento original e de massas, com base social em
todo o País, especialmente entre a população mais pobre da cidade e do campo. O
MST ocupou fazendas dos latifundiários, realizou formação de grande parte dos
seus quadros e até mesmo conseguiu construir uma universidade popular para
formação permanente dos seus militantes.

No entanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a emergência
do agronegócio criaram uma nova conjuntura no campo brasileiro, onde as relações
de produção passaram a se dar predominantemente entre capital e trabalho. Essa
conjuntura, aliada ao programa de compensação social do governo Lula, o “Bolsas
Família”, uma programa de transferência de renda para a população mais pobre,
levou o MST a uma encruzilhada.

Ou seja, a realidade mudou radialmente no campo brasileiro, mas a razão de ser
do MST era a reforma agrária. Por isso, o movimento, que se tornara um dos
símbolos de luta contra o neoliberalismo e, por isso mesmo obteve simpatia
mundial, agora está perdendo protagonismo. Os acampamentos do MST foram
reduzidos para menos da metade e o movimento vive grandes dificuldades
estratégicas. Afinal, se a maioria dos trabalhadores está nas cidades, se o
capitalismo hegemonizou as relações de produção no campo e subordinou a pequena
agricultura à lógica do capital, torna-se difícil a sobrevivência no longo prazo
de um movimento que tem apenas a bandeira da reforma agrária como luta
estratégica.

A condensação mais expressiva da teoria movimentista foi o Fórum Social Mundial
(FSM). Por ocasião do primeiro FSM, em Porto Alegre, parecia que todos tinham
encontrado a fórmula ideal, a varinha mágica,para as novas lutas sociais.
Milhares de lutadores de todo o mundo convergiram para o Rio Grande do Sul para
se fazer presentes no lançamento da nova grife da luta mundial autônoma. Foi um
sucesso extraordinário e um contraponto ao Foro de Davos, onde os capitalistas
tramavam novas estratégias para dominação do mundo.
O sucesso de público e de mídia do FSM parecia ter enterrado de vez a noção de
vanguarda política. Agora seriam os movimentos sociais, os movimentos de gênero,
etnia, das mulheres, os movimentos sociais que doravante comandariam as lutas no
mundo. Adeus partidos políticos, adeus movimento sindical, adeus velhos atores
sociais da segunda revolução industrial. Agora eram os movimentos difusos, sem
centralidade política, inteiramente autônomos, livres de dogmas e ideologias
ultrapassadas que iriam provar ao mundo a nova realidade da luta social e
política.

Muita gente sinceramente acreditou que o FSM poderia ser a fórmula mágica, o
contraponto contemporâneo ao capital, o substituto das velhas vanguardas
políticas e seu discurso autoproclamatório. Mas a realidade aos poucos foi
colocando no devido lugar o modismo movimentista. Com o tempo, o FSM foi
perdendo fôlego, foi se esvaziando, até o ponto em que hoje ninguém mais
acredita que possa ser alternativa a coisa nenhuma. Mas uma vez a vida provou
que os movimentos por si só não têm condições de mudar a sociedade, é necessário
a vanguarda política para conduzir os processos de transformação.

O significado do pós-modernismo e as lutas sociais

Em outras palavras, a ideologia pós-modernista é responsável por grande parte
das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas, não só porque esse
modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos
sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais.
Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira
espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de
pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo
sistema.

Em outras palavras, o pós-modernismo é o fetiche ideológico típico dos tempos de
neoliberalismo e representa a ideologia pequeno-burguesa da submissão
sofisticada à ordem do capital. Mas essa ideologia carrega consigo uma
contradição insolúvel: no momento em que o capital mais se globaliza, com a
internacionalização da produção e das finanças, é justamente neste momento que
os pós-modernos pregam a fragmentação da realidade, a setorização das lutas
sociais, a especificidade dos combates de gênero, etnia, raça, sexo, etc. Só
mesmo quem não quer mudar a ordem capitalista pensa desse jeito.

Na verdade, todos que seguem esse ritual teórico, de maneira direta ou indireta,
estão abrindo mão de um projeto emancipatório e escondem sua impotência mediante
um discurso cheio de abstrações sociológicas, mas muito conveniente para o
capital. Por isso, combatem as lutas gerais, para fragmentá-las em lutas
específicas, que não afrontam abertamente o sistema dominante.Trata-se do varejo
da política fantasiado de moderno.

Esses setores cumpriram, nos últimos 20 anos e ainda cumprem até hoje, um papel
muito especial na luta ideológica atual: eles são a mão esquerda do
social-liberalismo capitalista. Influenciam as gerações mais jovens, desenvolvem
um discurso com aparência de modernidade, influem na organização das lutas
sociais. Com seu discurso eclético e fatalista, cheio de senso comum,
desorientam setores importantes da sociedade no que se refere à ação política e,
na prática, ajudam a organizar, mesmo que indiretamente, a submissão de vários
setores sociais à ordem capitalista e aos valores do mercado.

Essas duas décadas de experiências fragmentadas nos levam à conclusão de que,
mais do que nunca, as vanguardas revolucionárias têm um papel fundamental no
processo de transformações sociais. São elas exatamente que podem conduzir e
orientar os vários movimentos sociais com uma plataforma estratégica de
emancipação da humanidade, o que significa derrotar o imperialismo e o
capitalismo e transitar para a construção da sociedade socialista.

*Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado na mesma
instituição. É autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo
contemporâneo e A política salarial no Brasil. Professor universitário, é membro
da Comissão Política do Comitê Central do PCB.

In
PCB
http://pcb.org.br/portal2/10851
14/4/2016

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