sexta-feira, 1 de abril de 2016

Alexandra Kollontai, uma mulher à frente do seu tempo


Miguel Urbano Rodrigues


Pode o livro de um anticomunista que deturpa grosseiramente a História ter
interesse e ser útil?

Acabo de reler Alexandra Kollontai*, de Arkadi Vaksberg, biografia romanceada da
revolucionária russa.

Vaksberg não é somente reacionário; é um anticomunista fanático. Abomina o
socialismo, odeia a Revolução de Outubro e tudo o que ela significa. Essa
posição transparece ao longo do livro. Stalin aparece como um monstro
sanguinário, um inimigo da humanidade. O seu Lenin também é apresentado como um
ser maquiavélico, satânico, desumano.

Arkadi Vaksberg nasceu na Sibéria em 1933 e toda a sua obra é uma condenação
agressiva do socialismo e do pensamento marxista.

Perguntará o leitor que interesse pode então ter um livro incompatível com um
olhar sereno sobre a História, um livro do qual transpira aversão ao comunismo?

O conteúdo da biografia ajuda compreender a contradição entre a opção politica e
ideológica de Alexandra e a admiração que inspira ao autor uma personalidade que
se assumiu desde a juventude como comunista.

O positivo no livro não são as opiniões de Vaksberg, mas as transcrições de
textos, cartas e palavras de Kollontai que permitem ao leitor aceder à
compreensão da mulher e da revolucionária.

O autor teve acesso a uma documentação importantíssima: arquivos da União
Soviética e da Federação Russa, do Ministério dos Negócios Estrangeiros da URSS,
das Letras e Artes da Rússia, da ex-KGB, da cidade de São Petersburgo, do
Exército soviético, do Supremo Tribunal da URSS, e da atual Biblioteca Nacional
da Rússia, e a numerosos arquivos privados.

Mas mais valiosas do que essa documentação e do que o seu correio diplomático
são os arquivos pessoais da própria Alexandra Kollontai.

Ela quase se autorretrata na sua volumosa correspondência, milhares de cartas.

Ainda adolescente, Alexandra iniciou um diário íntimo que durante anos lhe
ocupou muitas horas. Mas em plena juventude, tomava também notas em caderno que
conservou. Registava ideias e pensamentos até em papéis de restaurantes e
hotéis.

Escreveu milhares de artigos e guardou os recortes de muitos.

Já em idade avançada, tentou escrever as suas Memórias. Não foi longe, porque
compreendeu que iria esbarrar em obstáculos intransponíveis. Durante décadas
elogiou Stalin e a linha que ele impusera ao Partido e quis evitar a contradição
frontal entre a sua identificação com a política oficial e o que dela pensava e
dizia nas conversas com amigos íntimos e em algumas cartas. Mas o que sobrou das
Memórias interrompidas é esclarecedor da conceção do projeto.

A preocupação que a atormentava na velhice relativamente à imagem que dela
permaneceria explica as mutilações que infligiu ao seu diário íntimo: tesouradas
aqui e ali, páginas arrancadas dos cadernos, parágrafos riscados, etc.

Foi difícil preservar esse acervo, mas ela conseguiu, confiando-o a amigos, para
evitar que caísse mas mãos da polícia política ou de inimigos seus.

PIONEIRA DO FEMINISMO

Alexandra Kollontai nasceu numa família abastada. O pai, ucraniano, fez uma
carreira brilhante no exército, ascendeu ainda novo ao generalato e estava
aparentado com a alta nobreza russa; a mãe era de origem finlandesa.

Alexandra estudou em casa, na tradição da aristocracia. Passou a infância em
Petersburgo e numa propriedade da família na Finlândia. Casou cedo contra a
vontade dos pais, com um jovem oficial, Vladimir Kollontai, que não pertencia à
sua classe social.

Uma amiga, Lelia Stassova, deu-lhe a ler obras proibidas na Rússia czarista.
Alexandra adquiriu ideias então consideradas subversivas. Adepta da justiça
social, percebeu que a sua conquista passava pela destruição da ordem social
existente.

A posição da mulher na sociedade russa revoltava-a. Mas não encontrou no marido
um interlocutor para discutir os problemas que a preocupavam.

O amor evoluiu rapidamente para uma grande amizade quando se apaixonou por um
oficial, colega e amigo do companheiro. Foi o seu primeiro amante. Mas não se
separou. Concluiu que era possível amar dois homens simultaneamente, de uma
maneira diferente.

Alexandra tinha uma sensualidade explosiva e era uma das mulheres mais belas da
Rússia.

Durou também pouco tempo a paixão por Satkevich.

Entrou em depressão. O amante, a quem chamava carinhosamente o Bonhome, não
aprovou a sua ida para o estrangeiro – financiada pela família – para se tratar,
mas disse -lhe que a amaria pela vida adiante. Cumpriu.

Ela cultivava o sentimento da amizade e permaneceu sempre amiga de todos o
amantes, o último quando já ultrapassara os cinquenta anos, idade em que foi
forçada a um aborto clandestino quando era embaixadora da URSS na Suécia.

A OPÇÃO PELO MARXISMO

A Itália foi o país da Europa Ocidental que escolheu para tratar a depressão. De
Génova passou a Berlim. Mas a sua doença neurológica era mais imaginária do que
real. Regressou a Petersburgo onde o marido e Saskevitch a receberam sem uma
palavrar de censura.

A demora na Rússia foi breve. Iniciou quase logo uma maratona que a levou à
Suíça, Inglaterra, Alemanha, França Bélgica, Itália, e outros países. Conheceu
Plekhanov, Kautsky, Sidney e Beatriz Web, Paul Lafargue e Laura, a filha de
Marx, Rosa Luxemburgo, e Jaurès e Victor Adler. Tornou-se amiga de Rosa, dos
Lafarge, de Clara Zetkin, e de Plekhanov. Principiou a estudar Marx. O
materialismo dialéctico entusiasmou-a.

Voltou à Rússia frequentes vezes, mas já então os seus artigos sobre temas
feministas tinham chamado a atenção da Okrana, a polícia secreta czarista.

Alexandra não via incompatibilidade entre o marxismo e as suas teses. Não se
limitava a fazer a apologia do amor livre. Pronunciava-se contra o casamento e
contra a instituição da família. Era ao futuro estado socialista que segundo ela
devia caber a tarefa de educar as crianças e não aos pais.

Viveu em Petersburgo os dias escaldantes da Revolução de 1905. Chamou a atenção
como oradora que inflamava as massas.

Grande comunicadora, conquistava os auditórios, mas o discurso era frágil, as
conclusões superficiais.

Foi nessa época que conheceu Piotr Maslov, um académico que a impressionou
profundamente e com o qual estabeleceu uma relação amorosa que iria durar anos.

Maslov era um menchevique destacado e ela, fascinada pelo seu talento, aderiu à
fação menchevique do Partido Social Democrata Russo ao qual pertencia também o
bolchevique.

Lenin criticava publicamente Maslov, acusando-o de revisionista do marxismo.

Alexandra, já então considerada uma perigosa agitadora pela OKrana, começou a
ser convidada para Congressos e reuniões internacionais e os seus artigos sobre
a libertação da mulher, publicados em muitos países, contribuíram para a
transformar numa personalidade de prestígio mundial.

Continuava apaixonada por Maslov (que era casado e não abandonara a mulher) mas
isso não a impedia, como adepta do amor livre, de manter relações sexuais com
outros homens. Durante uma reunião internacional em Copenhaga ela e Karl
Liebknecht desapareceram juntos durante dois dias. Essa breve aventura não teve
porém continuidade.

Muito mais séria foi a relação que iniciou em França com Chliapnikov, um
operário russo, bolchevique, revolucionário profissional, um quadro da inteira
confiança de Lenin. Conheceram-se durante uma conferência de Lunacharski. Ele
abordou-a à saída, convidou-a para jantar e foram para a cama nessa noite. Ela
tinha 39 anos, ele apenas 26.

Chliapovnik informou Lenin, na época residente em Paris, de que estavam
apaixonadíssimos e ele aprovou a relação, sugerindo que a atraísse para o
Partido Bolchevique.

Não foi difícil convencer Alexandra. Em carta a Zoia Chadurskaia, a sua melhor
amiga, escreveu: «Ele abriu-me os olhos para muitas coisas; transformou-me».
Rompeu com os mencheviques e pôs termo à relação amorosa que mantinha com
Maslov.

Alexandra nas suas conferências feministas na Europa e nos Estados Unidos passou
a fazer a apologia entusiástica das teses revolucionárias de Lenin. Embora sem
intimidade, visitava-o com frequência. Foi então que conheceu Inessa Armand, a
franco-russa que foi o único grande amor de Lenin. Inessa era também uma
feminista famosa, defensora do amor livre.

Algumas divergências com Lenin – Alexandra era desfavorável, como Rosa
Luxemburgo e Bukharine, à autodeterminação das nações, nomeadamente da Polónia –
não foram impeditivas de uma grande convergência no fundamental. Ela foi dos
primeiros exilados a chegar a Petrogrado quando irrompeu a Revolução de
Fevereiro em 1917.

Foi recebida triunfalmente. Grande oradora foi eleita para o comité executivo do
soviete da cidade. Recebeu Lenin na fronteira da Finlândia, depois ter
participado ativamente nas negociações que permitiram a sua passagem pela
Alemanha no comboio autorizado pelo governo do Kaiser.

Aderiu com entusiasmo às teses de Abril de Lenin que implicaram uma rutura com a
estratégia anterior do Partido Bolchevique, abrindo caminho à insurreição
vitoriosa de Outubro.

Alexandra desempenhou um papel decisivo na adesão da Esquadra do Báltico aos
bolcheviques. Os Socialistas Revolucionários exerciam uma influência hegemónica
sobre as tripulações. As tentativas de dirigentes bolcheviques para captar o
apoio os marinheiros tinham fracassado todas.

Lenin decidiu então enviar Alexandra. Nunca antes uma mulher tinha sido recebida
em navios da Armada fundeada em Helsínquia e Cronstadt. Mas no dia 28 de Abril,
Alexandra, recebida por Dybenko, o líder dos marinheiros, dirigiu-se às
tripulações. A sua oratória conquistou a Armada.

Dybenko apaixonou-se quando a viu e ouviu. Ela tinha então 43 anos, mas era
ainda segundo os seus admiradores a mulher mais bela da Rússia. Ele tinha apenas
26, menos 17 que ela. Alexandra achou que «tinha encontrado o homem da sua
vida». Continuou a ver nele um amigo querido após se ter separado. Dybenko, que
acabou fuzilado em julho de 1938 depois de ter sido Comissário do Povo e
comandante de exército, amou-a pelo tempo adiante.

Essa paixão da intelectual por um jovem marinheiro foi então muito comentada,
até por Lenin e Stalin.

Um oficial superior da antiga Marinha Imperial suicidou-se, alegando que não
podia suportar a relação amorosa de Alexandra, ligada à alta nobreza russa, com
um marinheiro semianalfabeto.

Kollontai foi eleita para o Comité Central do Partido e integrou o primeiro
governo soviético como Comissario do Povo para a Assistência Publica.

Não durou muito o seu momento de glória.

Muitas das suas teses sobre a libertação da mulher foram assumidas pelo Partido
e pelo governo soviético. Mas, mais tarde, Stalin revogou a maioria das leis
feministas.

A personalidade explosiva de Alexandra, a imprevisibilidade das posições que
assumia, a apologia irrestrita do amor livre e sobretudo a sua vida amorosa eram
incompatíveis com o poder soviético.

Em l919 ela aderiu com Chliapine (fuzilado nos anos 30) à Oposição Operária.
Exerceu posteriormente funções importantes, mas sempre hostilizada por
dirigentes destacados. Trotsky e Zinoviev detestavam-na e ela retribuía essa
aversão.

Surpreendentemente, Stalin admirava-a, não obstante discordar do seu feminismo
exacerbado.

Alexandra aliás, numa das suas bruscas viragens, passou a defender a linha
imprimida ao Partido, após a morte de Lenin, pelo poderoso secretário-geral.

E foi à confiança que Stalin tinha nas suas qualidades de negociadora e no seu
charme que Alexandra deve o êxito que a acompanhou na sua longa carreira
diplomática.

Stalin nomeou-a primeiro em 1923 para a Noruega, onde foi embaixadora, a
primeira mulher no mundo nessa função. Em Oslo viveu um novo amor, clandestino,
com um franco-russo.

Em 1926 foi colocada no México como embaixadora. Mas reagiu mal ao clima e
Stalin, a seu pedido, transferiu-a para a Europa. A sua missão mais importante
foi a de embaixadora na Suécia, onde, durante a guerra, desempenhou com brilho e
talento tarefas delicadas.

Nesses anos Alexandra comportou-se permanentemente como uma epígona de Stalin.
Da antiga Walkiria, expulsa de diferentes países pelas suas ideias
«subversivas», somente restava o gosto pelo luxo. Vestiu se sempre nos melhores
e mais caros costureiros.

No seu diário íntimo e em algumas cartas transparece uma grande frustração
quando se interroga sobre a sua vida, marcada por uma cadeia de contradições
antagónicas.

Não encontra respostas que a satisfaçam. Falado em público, elogiou sempre
Stalin e a linha do Partido, mas no diário intimo, somente publicado muitos anos
após a sua morte, não esconde a angústia que a invadiu quando amigos queridos
foram condenados à morte nos processos dos anos 30.

No seu jornal de embaixadora aprova o pacto germano-soviético de 1939, como
«totalmente correto» e «brilhante operação política”, mas criticou-o em
encontros privados.

Na sua correspondência queixa-se de estar rodeada de espiões em Estocolmo. Mas
no diário da embaixada felicita o procurador Vichinsky quando foi nomeado
ministro dos Negócios Estrangeiros. Numa carta enaltece o seu trabalho nos
processos de Moscovo e diz admirar «a sua sagacidade política» e os «discursos
sempre brilhantes». Mas no diário íntimo escreveu: «Temo muito o dogmatismo de
Vichinsky. Receio o mal que pode fazer pela sua crueldade e intolerância».

Sofreu com o processo de Bukharine: «Tenho medo por muitos amigos., Sinto-me
torturada, com o coração atormentado». Numa carta a Zoia abriu-se: «Vivo como se
estivesse num palco (…) não digo o que penso e, pelo contrário, na maior parte
das vezes digo o que não penso».

Escreveu dezenas de cartas a Stalin, que lhe atribuiu a Ordem de Lenin, mas ele
raras vezes lhe respondeu.

A chuva de elogios é constante nessa correspondência. Após o XVI Congresso do
PCUS felicitou-o «pelo seu magnifico discurso» e pela «sagacidade do Partido,
guiado por um grande chefe».

Em 1934, uma sessão plenária do Comité Central em que participou entusiasmou-a:
«impressionou-me a paixão com que a assistência escutou Stalin e reagiu a cada
um dos seus gestos. Emana dele magnetismo».

Mentia mais uma vez?

*******

Vaksberg no seu livro deturpa a História, calunia Lenin e a Revolução de
Outubro, mas não esconde a sua admiração por Alexandra Kollontai.

O que confere interesse à biografia da revolucionária são as transcrições de
documentos do seu espólio.

Em Moscovo, ao regressar da Suécia atribuíram-lhe uma pensão confortável, mas
foi rapidamente esquecida pelos dirigentes do Partido.

Sentia o peso da solidão. Dizia não temer a morte. Mas a amargura foi permanente
na velhice. Nos últimos anos raramente saía do seu apartamento. Continuou a
escrever. Mas praticamente vivia numa cadeira de rodas.

Permaneceu lúcida até ao fim. Doía-lhe ter sido uma mãe omissa.

Tinha consciência de, a partir do início da carreira diplomática, haver rompido
as pontes com a Alexandra revolucionária? É duvidoso. A embaixadora, que se
identificava publicamente com a política de Stalin, comportava-se no quotidiano
como uma grande burguesa. No México quando lhe chamaram camarada, exigiu o
tratamento de Excelência.

Quando faleceu em 1952, foi sepultada discretamente no cemitério de
Novodevitchi, ao lado de Tchicherine e Litvinov, no talhão dos diplomatas.

Mas tal como pretendia, Alexandra Kollontai atravessou o pórtico da História.

* Arkadi Vaksberg, Alexandra Kollontai, Ed.Fayard, Paris,1996, 517 pgs.

Vila Nova de Gaia e Serpa, Março de 2016


In
O Diário.info
http://www.odiario.info/?p=3967
28/3/2016

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