quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Guido Poianas: lutador da classe trabalhadora e artista do povo


O homem e seu tempo*

Candido G. Vieitez

Quando a Revolução Russa eclodiu, em outubro de 1917, a
história das classes laboriosas já podia ser significativamente compreendida
como sendo a história de suas lutas com o capital e o
Estado que o representa. Contudo, excetuando-se episódios de
alcance restrito e duração fugaz, os trabalhadores não haviam tido
ainda a oportunidade de tentar reconstruir a sociedade segundo
os seus próprios desígnios.
A formação da União Soviética propiciou essa oportunidade.
Com ela se abriu um novo tempo para o movimento operário e
popular.
Não tardou para que os imensos problemas relativos à construção
do socialismo aparecessem na URSS. Porém, isso não
desarticulou o sistema de referência erigido em torno da mesma.
A Revolução tornara-se um paradigma para a ação política. O
partido elevou-se, dentre todas as demais organizações populares,
à condição de organização guia. A URSS tornou-se um concorrente
temível para os países capitalistas, materializando a
epígrafe de que o espectro do comunismo rondava a Europa.
Contingentes de organizações populares e milhões de trabalhadores
alimentavam a expectativa de que o socialismo terminaria
por chegar a bom termo quaisquer que fossem as dificuldades
existentes.
O Partido Comunista do Brasil formou-se no começo dos anos
20. Aos poucos ganhou visibilidade a ideia de Revolução Brasileira,
que colocava o propósito de transformar a sociedade.
Guido Poianas encontrava-se imbricado em seu tempo. E o
tempo a que cada ser pertence não lhe dá escolhas ilimitadas. Na
situação de homem originário de família de trabalhadores, e sendo
ele mesmo um trabalhador, identificou-se com sua classe. No
momento em que se viu na contingência de atuar como homem
público, na condição de artista pictórico e ativista político, não vacilou
em trilhar o caminho assinalado pela Revolução Brasileira,
na esteira da Revolução de Outubro.
I
Poianas chegou ao Brasil em 1924 com a família, que imigrara
atraída pela expectativa de encontrar melhores condições de
vida. Deixava para trás a Primeira Guerra Mundial, a Revolução
de Outubro e o embrião do fascismo. Mas não as sensações,
percepções e lembranças que já tinham tangido sua formação.
"Eu tive muita influência de meu pai", relembrava Guido. "Na
Vila Assunção fizemos reuniões do Partido com 40 ou 50 pessoas.
Ele era simpatizante. A gente conversava, falava da URSS.
Ele viu a revolução. Em Mazano, Itália, quando os comunistas
ficaram seis meses no poder, foi vereador. Quando veio o fascismo,
quase o mataram." ^
Depois de viver um certo tempo em São Paulo, a família teve
de mudar-se para o interior, uma vez que os imigrantes destinavam-
se a suprir a mão-de-obra necessária à$ plantações de café.
As condições de trabalho nas fazendas, nas quais os imi-
grantes inscreviam-se na condição de colonos, suscitaram a experiência
de um primeiro conflito trabalhista. "Em Avaré, meu pai
com mais um [companheiro] dirigiram uma greve económica numa
fazenda. Inclusive com esquema armado, revólver, espingarda e
tudo. Eu era criança e vi tudo o que se passou."
Seguindo um percurso bastante comum aos imigrantes, em
1927 os Poianas mudaram-se para Santo André. Guido começou a
estudar' pintura ao mesmo tempo em que ganhava a vida como
pintor de paredes na construção civil. Foi por causa desta atividade
que se aproximou da política e do movimento operário e popular.
"Quando vim para Santo André tive a sorte de trabalhar com
dois homens que participavam da vida política, que tinham influência
anarquista."
II

Em 1935, Poianas considerava-se simpatizante do Partido
Comunista do Brasil (PCB) e colaborava com a Aliança Nacional
Libertadora, distribuindo jornais e "ajudando com as finanças".
Durante a Segunda Guerra Mundial verificou-se no ABC uma
certa mobilização popular. Os trabalhadores da região, ainda muito
ligados a colónias de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses,
portadores de influências republicanas, socialistas, comunistas
e anarquistas, envolveram-se com o desenrolar da guerra.
As pessoas ouviam o rádio em ondas curtas para saber dos
acontecimentos. Elas organizavam reuniões amplas, muitas vezes
incluindo as famílias, que eram um misto de lazer e de encontros
políticos. A maior parte perfilou-se ao lado dos aliados, que
apareciam como os defensores das liberdades e da democracia
contra o nazi-fascismo. Em virtude do papel estratégico desempenhado
na guerra, o prestígio da URSS elevou-se.
A ditadura de Vargas tornou-se anacrónica. As organizações
do MOP foram retomando suas atividades por todo o País. Em
1947, com o fim da ditadura, os "candidatos de Prestes" ganharam
as eleições em Santo André. A Revolução Brasileira parecia
ter futuro. Mas os eleitos não assumiram os cargos, uma vez que
a política da guerra fria já havia sido lançada.
Por essa época, Poianas, com outros colegas do movimento
operário e popular de Santo André, foi "desligado da produção" e
designado para atuar no interior. Os colonos que tinham feito a
fortuna do café e de outras grandes culturas estavam desaparecendo.
Em seu lugar, um exército de trabalhadores maltrapilhos,
mas livres ou assalariados, conhecidos como bóias-frias, indicavam
que as relações de trabalho típicas do capitalismo expandi-
am-se pelo campo na medida em que prosperava a política de
industrialização por substituição de importações. Esses trabalhadores
eram passíveis de organização e Poianas tinha a missão
de ajudar na criação de sindicatos.
Alguns anos depois, de regresso a Santo André, observou
com perplexidade as transformações pelas quais passava a classe
trabalhadora. Indústrias da linhagem fordista instalavamrse na
região. As cadeias de montagem, que demandavam trabalhadores
sem qualificação profissional, atraíam chusmas de migrantes
de todas as partes do País. Os trabalhadores com os quais convivia,
frequentemente egressos dos ofícios industriais e artesanais, deram
lugar a uma massa com potencial reivindicativo mas sem as tradições
políticas já sedimentadas. Estas mudanças na composição da classe
trabalhadora preparariam o terreno para a posterior emergência do Partido dos
Trabalhadores e o chamado  novo sindicalismo.
Ill
O ano de 1956 foi um divisor de águas para os ativistas populares
que imaginavam encontrar-se na senda da Revolução de
Outubro. As denúncias dos crimes de Stalin, feitas por Kruchev,
descerraram uma cortina que encobria a visão. No movimento
operário e popular instaurou-se a crise política, ideológica, moral,
intelectual, que desembocou no seu progressivo estilhaçamento.
O caráter quase sagrado de que se revestia a tradição encetada
pela Revolução de 1917 desvaneceu-se, e a percepção da vida
real pôde aflorar entre os ativistas.
Poianas manteve-se basicamente fiel a seus princípios e trajetória
pessoal. Contudo, a postura reverenciai desapareceu e a
avaliação de sua participação no Partido tornou-se crítica e mesmo
cáustica.
Os eventos de 1956 solaparam a identidade, o conjunto de
certezas, a clareza dos objetivos e a disposição para a luta. O
golpe de estado e o estabelecimento da ditadura em 1964 manietaram
o movimento operário e popular. Os ativistas refluíram a
suas vidas privadas, migraram para fugir da repressão, "caíram
na clandestinidade" ou passaram a levar vida política de
catacumba. Foram necessários mais de dez anos de lutas praticamente
subterrâneas para que o movimento pudesse recompor-
se. Quando isto ocorreu, a cena histórica, o ambiente social e
a maior parte de suas personagens haviam mudado consideravelmente.
A ideia de Revolução Brasileira retraiu-se para uma zona
de penumbra. Quanto à posterior queda da URSS, o tempo e a
doença encarregaram-se de impedir que Poianas a presenciasse.
IV
Guido Poianas foi um homem totalmente identificado com os
trabalhadores e o povo humilde em geral. Abominava um sistema
social que relega milhões de pessoas à indigência cultural e material.
A sua crítica a essa situação foi reflexiva e prática. Expressou-a
na temática de suas telas e na militância política. Esta última,
em várias ocasiões de sua trajetória, impôs-lhe sacrifícios
materiais e espirituais difíceis até de imaginar. No ocaso da vida,
combalido pela doença e martirizado por dificuldades económicas
e financeiras, mantinha-se íntegro em suas convicções e otimista
quanto ao futuro da classe trabalhadora e da humanidade.
Uma tal postura deve ser atribuída à estatura do seu caráter. Mas
cabe supor também que uma parte de sua força tenha vindo da
sua profunda integração intelectual e emocional com o projeto
coletivo da Revolução de Outubro.
A União Soviética desintegrou-se em 1991. O seu desaparecimento
encerrou uma era de reflexão e experimentação histórico-
social das classes trabalhadoras que se iniciara com a Revolução
Russa de 1917. Com o seu desaparecimento, esvaiu-se
também a utopia de milhões de pessoas, que acreditavam que o
socialismo encontrava-se à mão ou mesmo em curso. Tendo
vencido esse confronto, o capital, por intermédio dos antigos e
novos liberais, esforça-se para convencer o mundo de que a história
acabou. Entretanto, os trabalhadores acreditam, tal como
acreditava Guido Poianas, que, enquanto houver capital e trabalho,
a história não acabou.

* As citações decorrem de entrevistas realizadas com Guido Poianas em
outubro de 1982.

In
José Armando Pereira da Silva (org.)
Guido Poianas - retratos da cidade
Santo André: Secretaria da Cultura, Esporte e Lazer, 2002.

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*** A região denominada ABC paulista, integrante da grande São
Paulo, foi nos anos 1970-1980, um dos focos de atuação do movimento
 operário popular (MOP) que, naquela quadra histórica, lutou pelo
Estado de direito e o regime democrático contra a ditadura
militar-burguesa estabelecida em 1964. A irrupção nessa região, de
modo aparentemente intempestivo, de um movimento de massas da
classe trabalhadora teve como motor a classe operária do grande
parque industrial existente na região, em especial São Bernardo do
Campo. No entanto, o caráter intempestivo foi de fato apenas
aparente, uma vez que, na região, havia uma tradição de
organização e lutas operárias que remontava ao fim do século XIX.
Com efeito, nos anos 1950-1960, até o estabelecimento da ditadura
em 1964, a região contou com forte movimento dos trabalhadores
que à época tinha como epicentro a cidade de Santo André.
Além das lutas de sempre por melhores salários e condições de
trabalho e vida o MOP tinha no horizonte de sua atividade as
bandeiras da “revolução brasileira”, o que que incluía a reforma
agrária, a reforma democrática, dentre outras reivindicações. Nesse
ambiente a classe trabalhadora forjou uma plêiade de ativistas,
lideranças sindicais e inclusive artistas. A ditadura militar
reprimiu dos mais diversos modos esses quadros do MOP, neutralizando
em parte sua atividade. Não obstante, muitos sobreviveram
politicamente, e a partir de uma ação subterrânea e molecular
contribuíram para o advento do MOP dos anos 1970. Dentre eles se
encontrava Guido Poianas, lutador da classe trabalhadora e
artista pictórico do povo.

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