sábado, 13 de agosto de 2016

O discurso histórico de Putin em Sochi


 Vladimir Putin    

Transcrevemos abaixo na íntegra o discurso de Putin:
«Já foi dito que este clube tem novos organizadores. Incluem organizações
não-governamentais russas, grupos de especialistas e universidades. Pensou-se
também em alargar as discussões para incluir não apenas assuntos relativos à
Rússia mas também à economia e políticas globais.
A organização e o conteúdo apoiam a influência do clube como um fórum de
discussões e especializações. Ao mesmo tempo, espero que o «espírito Valdai»
permaneça — esta atmosfera livre e aberta e a oportunidade de expressão de
opiniões francas e diversas.
Deixem-se afirmar que também não vou desapontar-vos e falo de uma maneira franca
e direta. Por vezes parecerei brusco, mas se não falar com franqueza sobre o que
penso, não vale a pena estarmos neste encontro. Seria então melhor continuar as
reuniões diplomáticas, onde ninguém diz algo de interesse e lembrando as
palavras de um famoso diplomata, sabem que os diplomatas têm língua para não
falar a verdade.
Juntamo-nos por outras razões. Juntamo-nos para falar francamente uns com os
outros. Precisamos de ser hoje francos e diretos não para fazer negócios mas
para ir ao fundo do que realmente está a acontecer no mundo, tentar entender
porque está o mundo a ficar menos seguro e mais imprevisível, e porque são cada
vez maiores os riscos à nossa volta.
A discussão de hoje submete-se ao tema: Novas regras ou um Jogo sem Regras. Acho
que essa fórmula descreve bem o ponto de viragem histórica a que chegamos hoje e
a escolha que todos enfrentamos. Nada há de novo na ideia de que o mundo está a
mudar muito depressa. Sei que já falamos hoje sobre isto na reunião. Não é
difícil ver a transformação dramática na política global, na economia, na vida
pública e na indústria, na informação e nas tecnologias sociais.
Peço-lhes que me desculpem se repetir o que alguns de vocês já disseram. É
praticamente impossível evitá-lo. Já tiveram discussões pormenorizadas, mas vou
dizer o que penso. Vou estar de acordo com alguns e divergir de outros.
Ao analisar a situação de hoje, não vamos esquecer as lições da História.
Primeiro, as mudanças na ordem mundial — o que vemos hoje são acontecimentos a
esta escala — têm sido acompanhadas se não pela guerra global e conflitos, pelo
menos por cadeias de intensos conflitos locais. Segundo, a política global é
sobretudo sobre liderança económica, assuntos de guerra e paz, e dimensão
humanitária, incluindo direitos humanos.
O mundo está hoje cheio de contradições. Temos de ser francos ao perguntar a
cada um de nós se temos uma segurança fiável. Infelizmente, não há garantia nem
certeza de que o catual sistema de segurança global e regional seja capaz de nos
proteger de acidentes. Este sistema tornou-se seriamente enfraquecido,
fragmentado e deformado. As organizações de cooperação internacionais e
regionais de economia, e cultura atravessam também tempos difíceis.
Sim, muitos dos mecanismos que temos para garantir a ordem mundial já foram
criados há muito tempo, incluindo e acima de tudo no período imediatamente a
seguir à II Guerra Mundial. Deixem-me dizer que a solidez do sistema criado
nessa altura assentava não só no equilíbrio do poder e nos direitos dos países
vencedores, mas no facto de que este sistema dos «pais fundadores» se baseava no
respeito mútuo, não tentava ultrapassar os outros, mas tentava alcançar acordos.
O principal é que este sistema precisa de se desenvolver e apesar dos vários
curto-circuitos, tem de ser capaz de manter os problemas catuais dentro de
certos limites, e de regular a intensidade da competitividade natural entre
países.
Estou convencido de que não podemos agarrar neste mecanismo de verificação e
equilíbrio, que construímos há décadas, por vezes com esforço e dificuldade e
simplesmente desmanchá-lo sem erguer algo em seu lugar. A ser assim ficaríamos
sem outro instrumento que não fosse a força bruta.
O que precisávamos era fazer uma reconstrução racional e adaptá-la às novas
realidades no sistema de relações internacionais.
Mas os Estados Unidos, tendo-se declarado vencedores da Guerra-Fria, não viram a
necessidade disso. Em vez de estabelecer um novo equilíbrio de poder, essencial
para manter a ordem e a estabilidade, deram passos que levaram o sistema a um
desequilíbrio profundo.
A Guerra-Fria acabou, mas não terminou com a assinatura de um tratado de paz de
linhas transparentes e claras, sob o respeito das regras existentes ou a criação
de novas regras e padrões. Isso deu a impressão que os chamados «vencedores» da
Guerra-Fria decidiram pressionar os acontecimentos e redesenhar o mundo segundo
os seus interesses e necessidades. Se o sistema existente de relações
internacionais, lei internacional e os equilíbrios e desequilíbrios presentes
não correspondiam a certos interesses, o sistema foi declarado sem valor, fora
de moda e precisando de remodelação imediata.
 Desculpem-me a analogia, mas esse é o comportamento dos novos-ricos quando se
deparam com uma grande fortuna, neste caso, na forma da liderança mundial e da
dominação. Em vez de utilizar essa riqueza sabiamente, também para seu próprio
benefício, acho que cometeram muitas loucuras.
Entramos num período de interpretações diferenciadas e silêncios deliberados na
política mundial. A lei internacional foi ultrapassada muitas vezes pelo
niilismo legal. A objetividade e a justiça foram sacrificadas no altar da
conveniência politica. Interpretações arbitrárias e acordos falsos substituíram
normas legais. Ao mesmo tempo, o controle total da grande imprensa internacional
tornou possível quando necessário tornar o preto branco e vice-versa.
Numa situação em que há a dominação de um país e seu aliados, ou melhor
satélites, a procura de soluções globais transformou-se numa tentativa de impor
as suas receitas universais. As ambições deste grupo cresceram tanto que
começaram a pressionar as políticas que usam no seu corredor do poder como a
visão de toda a comunidade internacional. Mas não é este o caso.
A própria noção de «soberania nacional» tornou-se um valor relativo para a
maioria dos países. Essencialmente, o que se propunha era a fórmula: quanto
maior a lealdade ao centro do poder mundial, maior a legitimidade deste ou
daquele regime no poder.
Vamos depois ter uma discussão franca e responderei com prazer às perguntas, e
quero ter também algumas respostas.
As medidas tomadas contra os que recusam submeter-se são bem conhecidas e foram
testadas e tentadas muitas vezes. Incluem o uso da força, pressão económica e
propaganda, ingerência em assuntos internos, e apelo a uma legitimidade
«supralegal» quando têm de justificar uma intervenção ilegal neste ou naquele
conflito ou deposição de regimes inconvenientes. E sabemos até que foi utilizada
chantagem sobre vários líderes. Por alguma razão o «grande irmão» gasta milhões
de dólares em manter sob vigilância o mundo inteiro, incluindo os seus maiores
aliados.
E como nos sentimos nós, seguros, felizes neste mundo, qual é o sentido disto?
Talvez não tenhamos razões para preocupações, para discutir, e para fazer
perguntas? Talvez a posição excecional dos Estados Unidos e a maneira como
executam a sua liderança seja realmente uma bênção, e a sua ingerência nos
assuntos do mundo traga paz, prosperidade, progresso, crescimento e democracia,
e devamos aproveitar e confiar.
Digamos que não é este o caso.
Uma ditadura unilateral e a imposição dos seus modelos produzem o resultado
oposto. Em vez de serenar os conflitos dos países, exacerba-os, em vez de
soberania e países estáveis vemos o alastramento do caos, e em vez de
democracia, há o apoio de um público muito dúbio que vai de neofascistas a
radicais islâmicos.
Porque apoiam essas pessoas? Fazem-no porque decidem usá-los como instrumentos
para alcançar os seus fins mas queimam os dedos e recuam. Fico sempre admirado
como os nossos parceiros, pisam sempre na mesma tecla, como dizemos na Rússia,
ou seja, cometem os mesmos erros repetidamente.
Primeiro apoiaram os movimentos extremistas islâmicos para combater a União
Soviética. Esses grupos adquiriram experiência no Afeganistão e deram depois
origem aos taliban e à Al-Qaeda. O Ocidente se não ajudou, pelo menos fechou os
olhos, e diria, deu informação, apoio político e financeiro à invasão da Rússia
e dos países da Ásia Central por terroristas internacionais (não nos
esquecemos). Só depois dos atentados horríveis cometidos nos Estados Unidos, os
Americanos acordaram para a ameaça comum do terrorismo. Deixem-me lembrar que
fomos o primeiro país a apoiar o povo americano, o primeiro a reagir como amigos
e parceiros à terrível tragédia do 11 de Setembro.
Durante as minhas conversações com líderes americanos e europeus, sublinhei
sempre a necessidade de nos unirmos contra o terrorismo, num desafio à escala
global. Não podemos resignar-nos e aceitar esta ameaça, não podemos separa-la em
pedaços e utilizar padrões duplos. Os nossos parceiros concordaram, mas pouco
tempo depois estávamos de volta ao início. Primeiro foi a operação militar no
Iraque, depois na Líbia, que foi quase desmantelada. Porque é que Líbia chegou a
esta situação? Está hoje quase a desmembrar-se e a tornar-se um campo de treino
para terroristas.
Só a determinação e sabedoria da liderança do Egipto salvou este país-chave
árabe do caos e de ter extremistas à solta. Na Síria, como no passado, os
Estados Unidos e seus aliados diretamente financiaram e armaram rebeldes e
permitiram-lhes encher as suas fileiras de mercenários, de vários países.
Pergunto de onde vem o dinheiro para estes rebeldes, as armas e os especialistas
militares? De onde vem tudo isto? Como é que o ISIS se tornou um grupo tão
poderoso, uma verdadeira força armada?
Quanto às fontes fornecedoras, o dinheiro hoje vem não só da produção das drogas
que aumentou desmedidamente, desde que as forças da coligação internacional
foram para o Afeganistão. Todos sabemos isto. Os terroristas recebem dinheiro
também da venda do petróleo. O petróleo é produzido em território controlado
pelos terroristas, que o vendem a preços imbatíveis, produzem-no e
transportam-no. Mas alguém compra esse petróleo, o revende, e obtém lucro, não
pensando no facto que assim estão a financiar os terroristas que mais cedo ou
mais tarde vem para o seu país e semeiam aí a destruição.
Onde conseguem novos recrutas? No Iraque, depois de Saldam Hussein ser afastado,
as instituições do estado, incluindo o exército, ficaram em ruínas. Nessa altura
dissemos para terem cuidado. Atiram pessoas para a rua, e que o que fazem eles?
Não se esqueçam (certo ou errado) que lideram um grande poder regional, e agora,
vão transformá-los em quê?
Qual foi o resultado? Dezenas de milhares de soldados, oficiais e antigos
ativistas do partido Baath foram atirados para a rua e hoje unem-se aos
rebeldes. Talvez isso explique porque o grupo do estado islâmico se tenha
tornado tão ativo? Em termos militares, atua com grande eficiência e tem muitos
profissionais. A Rússia avisou repetidamente sobre os perigos das ações
militares unilaterais, a intervir em assuntos de soberania de estados, e a
flirtar com extremistas e radicais. Insistimos em incluir os grupos a lutar
contra o governo central da Síria, principalmente o estado islâmico na lista de
organizações terroristas. Vimos algum resultado? Apelamos em vão.
Por vezes temos a impressão de que os nossos colegas e amigos estão
constantemente a lutar contra as consequências das suas próprias políticas,
envidam todos os esforços para combater os riscos que eles próprios criaram e
pagam um preço impossível.
Colegas, este tempo de dominação unipolar já demonstrou que ter um único centro
de poder não torna mais maleáveis os processos globais. Pelo contrário, o estilo
de construção instável demonstrou a sua incapacidade de combater as verdadeiras
ameaças como conflitos regionais, terrorismo, tráfico de droga, fanatismo
religioso, chauvinismo e neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu a estrada larga ao
orgulho nacional extremado, manipulação da opinião pública, a lei do mais forte
sobre o mais fraco.
Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente um meio de justificar a ditadura
sobre pessoas e países. O mundo unipolar tornou-se demasiado desconfortável,
pesado e incontrolável, mesmo para o autoproclamado líder. Foram feitos
comentários sobre isto aqui e concordo plenamente com eles. Por isso vemos
tentativas neste novo palco histórico para recrear uma semelhança de um mundo
quase-bipolar como um modelo conveniente para perpetuar a liderança americana.
Não interessa quem toma o lugar do centro do mal na propaganda americana, o
lugar da velha URSS, como principal adversário. Poderia ser o Irão, como um país
que procura adquirir tecnologia nuclear, a China, como a maior economia global,
ou a Rússia, como uma superpotência nuclear.
Hoje, vemos novos esforços para fragmentar o mundo, fazer novas linhas
divisórias, criar coligações não para construir mas para destruir alguém, criar
a imagem de um inimigo como foi o caso da Guerra Fria. Todos compreendemos isto
e sabemos isto. Os Estados Unidos disseram sempre aos seus aliados: «Temos um
inimigo comum, um inimigo terrível, o centro do mal, e estamos a defende-los,
aos nossos aliados, deste inimigo. Portanto temos o direito de lhes dar ordens,
força-lo a sacrificar os seus interesses económicos e políticos e faze-lo pagar
a sua parte dos custos desta defesa coletiva, mas claro que somos nós que
mandamos. Em resumo, vemos hoje tentativas de um novo mundo em mudança para
reproduzir os modelos familiares da direção global, e tudo isso para garantir a
sua (EUA) posição excecional e alcançar dividendos políticos e económicos.
Mas estas tentativas estão incrivelmente divorciadas da realidade e estão em
contradição com a diversidade do mundo. Passos deste género criam
inevitavelmente confronto e contra medidas e tem o efeito contrário do que se
espera. Vemos o que acontece quando os políticos se metem na economia e a lógica
das decisões racionais dá lugar à lógica de confronto que só fere as posições e
interesses económicos, incluindo os interesses comerciais nacionais.
Projetos económicos em conjunto e investimento mútuo unem mais os países e ajuda
a resolver problemas normais em relações entre estados. Mas hoje, a comunidade
global enfrenta uma pressão desconhecida dos países ocidentais. De que negócios,
economia e pragmatismo podemos nós falar quando escutamos slogans como «a pátria
está em perigo», o «mundo livre sob ameaça», e a «democracia está em perigo».
Portanto todos precisam de se mobilizar. É o que parece ser uma verdadeira
política de mobilização.
Sanções já estão a minar as fundações do comércio mundial, as regras WTO e o
princípio da inviolabilidade da propriedade privada. Estão a atacar o modelo
liberal de globalização assente em mercados, liberdade e competividade, que, em
minha opinião, é um modelo que beneficia em primeiro lugar precisamente os
países ocidentais. E agora arriscam-se a perder a credibilidade como líderes da
globalização. Perguntamo-nos, para que serve isto? Afinal, a prosperidade dos
Estados Unidos assenta em grande parte na confiança de investidores e detentores
estrangeiros de dólares e securities americanas. Esta confiança está claramente
a ser minada e surgem sinais de desapontamento nos frutos da globalização em
muitos países. O conhecido precedente de Chipre e as sanções politicamente
motivadas só favorecem a tendência para apoiar a soberania económica e
financeira de países ou o desejo dos seus grupos regionais para descobrir
maneiras de se protegerem dos riscos da pressão externa. Vemos que cada vez mais
países procuram maneiras de se tornarem menos dependentes do dólar e preparam
alternativas financeiras e sistemas de pagamento e moedas de reserva. Penso que
os nossos amigos americanos estão simplesmente a serrar o ramo em que se sentam.
Não se pode misturar política com economia, mas é o que acontece hoje. Achei
sempre e continuo a achar que as sanções politicamente motivadas são um erro que
vai prejudicar toda a gente, mas tenho a certeza que ainda voltaremos ao
assunto.
Sabemos como estas sanções foram aplicadas e quem aplicou a pressão. Mas
garanto-lhes que a Rússia não vai ficar alvoroçada, ofendida ou andar a pedir às
portas. A Rússia é um país autossuficiente. Vamos trabalhar no ambiente
económico externo que se formou, desenvolver a produção doméstica e tecnologia e
conseguir uma transformação mais rápida. A pressão do exterior, como tem
acontecido noutras ocasiões, só vai consolidar a nossa sociedade, manter-nos
alerta e fazer-nos concentrar nos nossos alvos de desenvolvimento.
Claro que as sanções são um problema. Estão a tentar ferir-nos com estas
sanções, bloquear o nosso desenvolvimento e empurrar-nos para um isolamento
cultural, político e económico, forçar-nos a retroceder. Mas afirmo que o mundo
é hoje um lugar muito diferente. Não temos intenção de fechar-nos e escolher uma
espécie de estrada interior, procurando viver numa autarquia. Estamos sempre
abertos ao diálogo, incluindo a normalização das nossas relações políticas e
económicas. Contamos aqui com a aproximação pragmática e posição de comunidades
comerciais nos países líderes.
Alguns afirmam hoje que a Rússia está a voltar as costas à Europa —
provavelmente também já o disseram aqui — e procura novos parceiros comerciais,
principalmente na Ásia. Não é verdade. A nossa política na região Ásia-Pacífico
já não é de ontem nem é devida às sanções, mas é uma política que temos vindo a
seguir há muitos anos. Como muitos outros países, incluindo os países
ocidentais, vemos que a Ásia tem um papel cada vez mais importante no mundo, na
economia e na política, e simplesmente não é possível ignorar esse progresso.
Digamos que todos o fazem, e nós também, tanto mais que, uma grande parte do
nosso país está geograficamente na Ásia. Porque não aproveitar as vantagens
competitivas nessa área? Seria absurdo não o fazer.
Desenvolver laços económicos com esses países e projetos de integração conjunta
cria também, grandes incentivos para o nosso desenvolvimento interno. Todas as
tendências atuais demográficas, económicas e culturais sugerem que a dependência
de uma única superpotência vai diminuir objetivamente. É uma coisa sobre a qual
os especialistas europeus e americanos tem vindo a falar e a comentar.
Talvez os desenvolvimentos na política global espelhem os desenvolvimentos que
vemos na economia global, nomeadamente, competição intensiva para nichos
específicos e mudança frequente de líderes em áreas específicas. É inteiramente
possível.
Não há dúvida que fatores humanitários como educação, ciência, saúde e cultura
têm um grande papel na competição global. E tem um grande impacto nas relações
internacionais, até porque este «poder suave» dependerá muito mais do que se
conseguir no desenvolvimento do capital humano do que truques de propaganda
sofisticada.
Ao mesmo tempo, a formação do chamado mundo policêntrico (gostaria também de
chamar a atenção para isso, colegas) não aumenta a estabilidade; na verdade,
antes pelo contrário. Conseguir-se o equilíbrio global está a tornar-se um
puzzle difícil, uma equação com muitos desconhecidos.
 Assim, o que nos resta se escolhermos não obedecer às regras — mesmo que sejam
estritas e inconvenientes — ou viver sem elas? E esse cenário é inteiramente
possível; não podemos afastá-lo, dadas as tensões na situação global. Muitas
predições podem ser feitas, levando em conta as tendências atuais, e
infelizmente, não são otimistas. Se não criarmos um sistema comum de
compromissos mútuos e acordos, se não criarmos os mecanismos para resolver e
contornar situações de crise, os sintomas da anarquia global vão crescer
inevitavelmente.
Hoje, vemos já um interesse crescente na semelhança de um total de conflitos
violentos tanto com participação direta ou indireta pelos maiores poderes do
mundo. E os fatores de risco incluem não só conflitos multinacionais
tradicionais mas também a instabilidade em estados separados, especialmente
quando falamos de nações localizadas nas intersecções de interesses geopolíticos
de estados-maiores, ou nas fronteiras de continentes civilizacionais culturais,
históricos e económicos.
A Ucrânia, que estou certo que foi discutida longamente e que vamos discutir
ainda mais, é um dos exemplos dessa espécie de conflitos que afetam o equilíbrio
do poder internacional, e acho que não será o último. Daí emana a próxima futura
ameaça de destruição do sistema atual do controle de armas. E este processo
perigoso foi lançado pelos Estados Unidos da América quando se afastou
unilateralmente do Tratado de Mísseis antibalísticos em 2002, e depois
estabelecido e continua hoje a ativar incansavelmente a criação do seu sistema
de mísseis de defesa global.
Colegas, amigos, quero lembrar que não começámos isto. Mais uma vez,
encaminhamo-nos para tempos, em que, em vez do equilíbrio de interesses e
garantias mútuas é o medo e o equilíbrio de destruição mútua que impede as
nações de se meterem num conflito direto. Na ausência de instrumentos legais e
políticos, as armas estão mais uma vez a tornar-se o ponto fulcral da agenda
global; são utilizadas por todo o lado, e por todos sem qualquer sanção do
Conselho de Segurança das Nações Unidas. E se o Conselho de Segurança recusar
essas decisões, será imediatamente declarado instrumento sem efeito e
ultrapassado.
Muitos estados não veem outro modo de garantir a sua soberania a não ser pelas
suas próprias bombas. É extremamente perigoso. Insistimos em prosseguir
conversações; somos não só a favor de conversações, mas insistimos em
continuarmos conversações para reduzir os arsenais nucleares. Quanto menos
arsenais nucleares existirem no mundo, melhor. E estamos prontos, a discussões
serias e concretas sobre o desarmamento nuclear — mas só conversações serias sem
segundo sentido.
E quero dizer o quê? Hoje, muitos tipos de armas de alta precisão estão muito
perto do armamento de destruição massiva em termos de capacidade, e no caso de
uma renuncia total de armas nucleares ou redução radical do potencial nuclear,
as nações lideres na criação e produção de sistemas de alta precisão tem uma
clara vantagem militar. A paridade estratégica está desequilibrada e claro que
isso traz desestabilização. A utilização do um ataque de prevenção global pode
ser tentadora. Em resumo, os riscos não diminuíram, aumentaram.
A ameaça óbvia seguinte é o aumento de conflitos étnicos, religioso e sociais.
Esses conflitos são perigosos não apenas como tais, mas também porque criam
zonas de anarquia, sem lei, e caos à sua volta, lugares confortáveis para
terroristas, e criminosos, onde a pirataria, tráfico humano e de drogas
florescem.
Incidentalmente, quando os nossos colegas tentaram controlar estes problemas,
utilizaram conflitos regionais, e «revoluções coloridas» para enquadrar os seus
interesses, mas o génio escapou da garrafa. Parece que esses países não
conseguem executar a teoria do caos controlado, há uma grande confusão nas suas
fileiras.
Seguimos atentamente as discussões tanto com a elite governativa como com a
comunidade de especialistas. Basta ver aos títulos da media ocidental no último
ano. As mesmas pessoas são designadas combatentes da democracia, e islamistas.
Primeiro escrevem sobre revoluções e depois chamam-lhes levantamentos e
distúrbios. O resultado é óbvio: uma expansão crescente do caos global.
Colegas, dada a situação global, é tempo de começar a acordar nas coisas
fundamentais. É muito importante e fundamental, é muito melhor, do que cada um
voltar ao seu canto. Quanto mais enfrentamos problemas comuns, melhor estamos no
mesmo barco, por assim dizer. E a lógica é a cooperação entre: nações,
sociedades, respostas coletivas a desafios crescentes, e na cooperação conjunta
de risco. Claro, que alguns dos nossos parceiros só se lembram disso quando lhes
interessa.
A experiência prática mostra que as respostas conjuntas não são sempre uma
panaceia; temos de entender isso. Além disso, na maioria dos casos é difícil de
entender, não é fácil vencer as diferenças nos interesses nacionais, a
subjetividade de diversas aproximações, principalmente quando se trata de nações
com tradições culturais e históricas diferentes. Mas, temos exemplos quando, com
fins comuns e agindo dentro dos mesmos critérios, juntos conseguimos o
verdadeiro êxito.
Deixem-me lembrar-lhes a solução do problema das armas químicas na Síria e o
diálogo substantivo do programa nuclear iraniano, assim como o nosso trabalho
nos assuntos da Coreia do Norte que teve também alguns resultados positivos.
Porque não utilizar esta experiência no futuro para resolver desafios locais e
globais?
 O que poderia ser a base legal, económica e politica para uma nova ordem
mundial que permitirá estabilidade e segurança, enquanto encorajará competição
saudável, não permitindo a formação de novos monopólios que impedem o
desenvolvimento? É impossível que alguém possa apresentar soluções absolutamente
exaustivas e prontas agora. Vamos precisar de um imenso trabalho participativo,
com muitos governos, comércio global, sociedade civil e plataformas de
especialistas como as nossas.
Mas, é óbvio que só serão possíveis resultados e sucesso se os participantes em
assuntos internacionais concordarem em harmonizar interesses básicos, com
contenção razoável, e dando o exemplo de liderança positiva e razoável. Temos de
identificar claramente onde acabam as ações unilaterais e temos de aplicar
mecanismos multilaterais, e como parte de melhorar a efetividade da lei
internacional, temos de resolver o dilema entre as ações da comunidade
internacional para garantir a segurança e os direitos humanos e o princípio da
soberania internacional e a não interferência dos assuntos internos de cada
estado.
Essas coligações levam cada vez mais à interferência externa arbitrária em
processos internos complexos e de vez em quando provocam conflitos perigosos
entre os principais jogadores globais. O problema de manter a soberania torna-se
quase equivalente a manter e fortalecer a estabilidade global.
Claro, que discutir critérios para o uso da força externa é extremamente
difícil: é praticamente impossível separa-la dos interesses de nações
particulares. Mas, é muito mais perigoso quando não há acordos claros para
todos, quando não há condições claras para todos, quando não há condições claras
para uma interferência legal e necessária.
Devo acrescentar que as relações internacionais devem ser baseadas na lei
internacional, que deve assentar em princípios morais como a justiça, igualdade
e verdade, Talvez o mais importante seja respeitar os parceiros e os seus
interesses. É uma fórmula óbvia, mas se fosse simplesmente seguida podia mudar
radicalmente a situação global.
Tenho a certeza de que há uma vontade, que podemos restaurar a efetividade, do
sistema das instituições internacionais e regionais. Nem sequer precisamos de
fazer nada de novo, não é um campo verde, principalmente desde que as
instituições criadas após a Segunda Guerra Mundial são universais e tem
substância moderna, adequada a coordenar a situação atual.
Isso melhorará o trabalho da Nações Unidas, cujo papel central é insubstituível,
assim como ao da OSCE, que no decorrer dos últimos 40 anos, tem provado ser um
mecanismo necessário para garantir a segurança e cooperação na região
euro-atlântica. Devo dizer que mesmo agora, ao tentar resolver esta crise no
sueste da Ucrânia, a OSCE tem um papel muito positivo.
À luz de mudanças fundamentais no ambiente internacional o aumento da
incontrolabilidade e várias ameaças precisamos de um novo consenso global de
forças responsáveis. Não se trata de assuntos locais, ou divisão de esferas de
influência no espírito da diplomacia clássica, ou do domínio global completo de
alguém. Não devemos recear isso. Pelo contrário, é um bom instrumento para
harmonizar posições.
É particularmente relevante dado o alargamento e crescimento de algumas regiões
no planeta, cujo processo objetivamente requer a institucionalização de novos
pólos, criando organizações regionais poderosas e desenvolvendo regras para a
sua interação. A cooperação entre esses centros auxiliaria muito à estabilidade
da segurança, politica e economia globais. Mas para estabelecer este diálogo,
precisamos de assumir que todos os centros regionais e projetos de integração
formados à sua volta têm de ter direitos iguais ao desenvolvimento, para se
complementarem e ninguém poder forçá-los ao conflito ou a uma oposição
artificial. Ações assim destrutivas quebram os laços entre estados, e os
próprios estados seriam submetidos a condições duras e até à própria destruição.
Gostaria de lembrar os acontecimentos do último ano. Declaramos aos nossos
parceiros europeus e americanos que as decisões rápidas por exemplo, sobre a
associação da Ucrânia com a União europeia originariam sérios riscos na
economia. Nem sequer falamos de política, falamos só da economia, afirmando que
esses passos, tomados sem conversações, tocam os interesses de muitas outras
nações e que uma discussão alargada sobre os assuntos é necessária.
Incidentalmente, sobre este assunto, devo lembrar, por exemplo, as conversações
sobre o acesso da Rússia a WTO há 19 anos. Foi um trabalho muito difícil e
alcançou-se um certo consenso.
E por que falo disto? Porque ao implementar o projeto de associação da Ucrânia,
os nossos parceiros deviam ter falado connosco, mas os seus serviços e
mercadorias apareceram ao portão, por assim dizer, e não aceitamos isso, ninguém
nos perguntou. Tivemos discussões sobre todos os tópicos relacionados com a
associação da Ucrânia com a União Europeia, discussões persistentes, mas quero
afirmar que tudo foi feito de maneira civilizada, indicando problemas possíveis,
mostrando razões e argumentos. Ninguém nos quis ouvir e ninguém quis conversar.
Disseram-nos apenas: isso não lhes diz respeito, fim de conversa. Em vez de um
diálogo compreensivo e civilizado, fez-se um golpe de estado, mergulharam o país
no caos, num colapso económico e social, numa guerra civil com muitas baixas.
Porquê? Quando perguntei a razão disso aos meus colegas, já não tiveram
resposta, ninguém disse nada. Ninguém sabia, diziam, aconteceu. Essas ações não
deviam ter sido encorajadas, não devia ter acontecido
Afinal (já falei sobre isso) o anterior presidente da Ucrânia Yanukovych assinou
tudo, concordou com tudo. Porquê? Discutir para quê? Afinal o que é isto, uma
maneira civilizada de resolver problemas? Aparentemente, aqueles que passam a
vida a organizar «revoluções coloridas» consideram-se «artistas brilhantes», e
não conseguem parar.
Tenho a certeza que o trabalho de associações integradas, a cooperação de
estruturas regionais deve ser construído numa base clara e transparente; a
formação da União Económica da Eurásia é um bom exemplo dessa transparência. Os
estados que participam neste projeto informaram os seus parceiros dos seus
planos com tempo, especificando os parâmetros da nossa associação, os princípios
do seu trabalho, que obedeceu totalmente as regras da Organização Mundial de
Comercio.
Acrescento que teríamos aceitado o início de um diálogo concreto entre a União
Europeia e a Eurásia. Incidentalmente, quase que nos recusaram a ideia e creio
que a receiam?
E, claro, nesse trabalho e conjunto, pensamos que devíamos estabelecer diálogo
(já falei disto e obtive acordo da parte de muitos parceiros ocidentais, pelo
menos na Europa) da necessidade de criar um espaço comum para a cooperação
económica e humanitária que se estenderá do Atlântico ao Pacifico.
Colegas, a Rússia fez a sua escolha. As nossas prioridades são: melhorar as
nossas instituições políticas e democráticas, acelerar o desenvolvimento
interno, tendo em conta todas as tendências positivas do mundo e consolidar a
sociedade baseada nos valores tradicionais e patriotismo.
Temos uma agenda de integração, positiva, pacifica; trabalhamos ativamente com
os nossos colegas da União Económica da Eurásia, de Xangai, os BRICs e outros
parceiros. Esta agenda procura desenvolver laços entre governos, não
dissociações. Não planeamos juntar uns blocos ou lutarmos uns com os outros.
As alegações e afirmações de que a Rússia tenta estabelecer uma espécie de
império, avançando na soberania dos vizinhos, são infundados. A Rússia não
precisa de qualquer espécie lugar especial e exclusivo no mundo. Se respeitarmos
os interesses dos outros, queremos que respeitem os nossos e a nossa posição.
Sabemos que o mundo entrou numa era de mudança e transformação global, quando
todos precisamos de um grau particular de cuidado, a capacidade de evitar passos
em falso. Nos anos depois da Guerra Fria, participantes da política global
perderam estas qualidades. Agora precisamos de recorda-las. Senão, a esperança
de um desenvolvimento pacífico, estável, será uma ilusão perigosa, enquanto o
vendaval de hoje servira simplesmente de prelúdio ao colapso da ordem mundial.
Como já disse, criar uma nova ordem mundial estável é uma tarefa difícil.
Estamos a falar de um trabalho longo e duro. Pudemos estabelecer regras para
interação depois da Segunda Guerra Mundial e conseguimos um acordo em Helsínquia
nos anos 70. O nosso dever comum é resolver este desafio fundamental nesta nova
era de desenvolvimento».
In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/o-discurso-historico-de-putin-em/http://www.odiario.info/o-discurso-historico-de-putin-em/
13/8/2016

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