segunda-feira, 24 de abril de 2017

 A guerra afegã forjada por Svetlana Alexievich 


       por Miguel Urbano Rodrigues 



       A editora Elsinor promove o livro  "Rapazes de Zinco, A geração Soviética
      Caída na Guerra do Afeganistão"  afirmando que é um livro que "oferece uma
       visão única e poderosa da realidade da Guerra do Afeganistão". Mas o que
      efectivamente oferece é deturpação histórica e reaccionarismo
       anti-soviético.
       Os livros que conheço de Svetlana Alexievich são todos marcados por um
      anti-sovietismo inocultável.
       O último – Rapazes de zinco, A geração soviética caída na guerra do
      Afeganistão  [1] – é de longe o mais reacionário.
       A editora Elsinor colaborou, convidando José Milhazes, um profissional do
      anticomunismo, para escrever o prefácio da tradução portuguesa.
       DETURPAÇÃO DA HISTÓRIA 
       A extensa narrativa da laureada escritora, Premio Nobel de Literatura,
       configura uma agressão transparente à Historia, montada através de um
      conjunto de documentos por ela selecionados. Um trabalho minucioso que lhe
      exigiu centenas de horas de trabalho e um esforço enorme.
       A autora informa que os depoimentos que publicou são de homens e mulheres
      da URSS que participaram na guerra do Afeganistão ou de familiares de
      militares que ali morreram.
       Uma peculiaridade: nesses depoimentos não consta o nome dos
       entrevistados, mas o posto e tarefa militar ou a relação familiar com
      mães ou esposas daqueles que morreram na guerra.
       Svetlana esclarece que omitiu a identificação de oficiais, soldados e
      parentela.
       "No livro – revela — não guardei nomes verdadeiros. Uns pediram o segredo
      da confissão, outros querem esquecer tudo. Pode ser que um dia os meus
      heróis queiram ser conhecidos".
       A explicação não é de molde a convencer os leitores; o carater anonimo
      dos depoimentos retira-lhes credibilidade.
       ESTÓRIAS MEDONHAS 
       A grande maioria dos depoimentos que Svetlana afirma ter escutado e
      gravado nas suas entrevistas é medonha, assustadora. A serem autênticos,
      os oficiais e soldados que falaram com a escritora seriam responsáveis por
       crimes monstruosos e as forças do Exercito Soviético que participaram na
      guerra do Afeganistão uma horda de assassinos, drogados, sádicos,
      violadores, ladrões, comparável às SS de Hitler.
       Para que os leitores possam ter uma ideia das declarações supostamente
      gravadas por Svetlana transcrevo breves excertos do livro:
       - "Ouvi vários homens dizerem: matar pode dar gosto; matar é um prazer
      (…) Eram alimentados a carne com vermes, peixe que sabia a ferrugem.
      Tenhamos todos escorbuto."
       - Enfermeira 
       - "Trouxeram do "verde malaquita" um tenente sem braços nem pernas. E sem
      nada masculino."
       - Conselheiro militar 
       - "As seringas deixavam de ser esterilizadas. Metade delas não aspirava a
      solução, tinham defeito."
       - Sargento-ajudante sanitário 
       - "…vi como se compram aos médicos com cheques dois copos de urina de um
      doente com icterícia. Para a beber. Para adoecer."
       - praça, operador de comunicações 
       - "Depois do combate pende de uma árvore uma orelha humana …um olho
      humano vai deslizando por um rosto humano."
       - Comandante de pelotão de infantaria.  
       - "Trouxeram dois prisioneiros. Era necessário matar um deles porque no
      helicóptero não havia lugar para dois, mas precisávamos de um deles para
      conseguir informações."
       - praça, atirador de lança granadas 
       - "Por que é que os jovens de dezoito ou dezanove anos matam com mais
      facilidade do que, digamos, os de trinta."
       - major de um regimento de artilharia 
       - "Eu não era capaz de entrar na morgue. Levavam para lá carne humana
      misturada com terra. E debaixo da cama das raparigas também havia carne"
       - médica bacteriologista 
       - "Quem lhe vai mostrar um fio com orelhas humanas secas? … Troféus de
      guerra."
       - Primeiro-tenente de artilharia. 
       - "Traziam feridos para a União e descarregavam-nos nas traseiras do
      aeroporto para que povo não visse, não soubesse."
       - Major comandante de fuzileiros de montanha 
       - "Não contei o entusiasmo dos tripulantes de helicóptero quando lançam
      bombas. Vangloriavam-se: como é belo o espetáculo do kichtak (aldeia
      afegã) em chamas."
       - Sargento batedor 
       - "Tinha comigo um canivete que servia para abrir latas de conserva. Um
       canivete vulgar. Ele já estava no chão… Puxei-lhe a barba e cortei-lhe a
      garganta."
       - Praça, batedor  
       Eis uma amostra do género de depoimentos reunidos por Svetlana Alexievich
      em mais de duzentas páginas do seu livro.
       O OUTRO AFEGANISTÃO 
       A vida permitiu-me como jornalista visitar repetidamente o Afeganistão,
       de 1980 a 1989, durante a guerra.
       Além de Kabul, estive no norte em Mazar-i-Charif e Balkh, em Jalalabad no
      Sul, percorri a planície que finda nas montanhas em que se abre o famoso
      desfiladeiro de Kyber, atravessei numa coluna militar o túnel de Salang na
      chamada estrada da vida que liga a capital à fronteira do Uzbequistão.
      Corri pelo país de avião, de carro e em veículos militares soviéticos e
      afegãos.
       Falei com centenas de afegãos, militares, intelectuais, operários. No
      exército havia muitas mulheres combatentes, na universidade as mulheres
      não escondiam o rosto.
       Desse Afeganistão revolucionário não fala Svetlana. Mas ele existiu, foi
      real e durante uma década o seu exército resistiu vitoriosamente aos
      bandos armados das Sete Organizações de Peshawar, armadas e financiadas
      pelos Estados Unidos e treinadas pela CIA. Os mujahedines, qualificados de
      "combatentes da liberdade", não tomaram uma só capital de província nesse
       período. A Revolução não foi vencida pelas armas. Acabou quando
      Gorbatchov, de acordo com Washington, pôs fim à entrega de trigo e
      petróleo ao governo de Kabul. Sem pão e combustível, a luta tornou-se
      impossível.
       Visitei quarteis soviéticos nas montanhas. Conversei com oficiais e
       soldados nos fortins da estrada de Salang. Nessas instalações militares
      não identifiquei indícios de indisciplina, violência, sujeira. Escrevi
      muito sobre esse Afeganistão, o real, um pais e uma sociedade nas
      antípodas do Afeganistão imaginário de Svetlana Alexievich.
       Pelo Afeganistão passaram, aproximadamente 500 mil militares soviéticos.
      O total de mortos rondou os 15 mil. A URSS tinha na época 290 milhões de
      habitantes. A percentagem de mortos (0,005%) foi portanto muitíssimo
      inferior à dos portugueses (0,08%) que morreram nas três guerras coloniais
      (8300). Registo isso porque ajuda a compreender o panorama esboçado por
      Svetlana numa obra de falsificação da História.


      As últimas 70 páginas dos Rapazes de Zinco – referência aos caixões
      metálicos em que chegavam os mortos na guerra afegã – são ocupadas por
       documentação relacionada com as acções judiciais por calúnia e difamação
      instauradas contra Svetlana Alexievich por militares russos e familiares
      dos mortos soviéticos no Afeganistão.
       Ignoro se esses textos foram introduzidos a pedido da escritora ou por
       iniciativa da editora.
       Incluem parte do acórdão do Tribunal de Minsk, o extenso discurso que
      Svetlana ali pronunciou, depoimentos na audiência que acusam a escritora
      ou a defendem e cartas de personalidades e organizações, a maioria
      semeadas de elogios à autora de  Os Rapazes de Zinco. 
       A sentença absolve Svetlana num dos processos, condena-a parcialmente
       noutro. Não há referências a mais duas acções judiciais também
      instauradas contra Svetlana.

      21/Abril/2017
       [1] Svetlana Alexievich, Rapazes de Zinco - A geração soviética caída na
      guerra do Afeganistão, Editora Elsinore, 343 p., Amadora, Março de 2017 
       Este artigo encontra-se em  http://resistir.info/ .  
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/mur/mur_21abr17.html
21/4/2017

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