terça-feira, 11 de abril de 2017

Atualidade de Mariategui


 Miguel Urbano Rodrigues  



José Carlos Mariategui, fundador do Partido Comunista Peruano, é saudado como o
introdutor do marxismo na América Latina. Não pode afirmar-se, com justeza, que
o seu marxismo fosse inteiramente fiel à base filosófica do materialismo
histórico. Mas essa limitação não afecta minimamente a grandeza e o significado
da sua obra


Em Lima tinham-me falado da importância de Mariategui.
Dias depois, no Cuzco, entrei numa livraria e vi numa estante os Siete Ensayos
de Interpretacion de la Realidad Peruana.
Foi no início de Novembro de 1970. Comprei o livro e comecei a lê -lo no hotel;
quase não dormi nessa noite. Senti algo próximo de deslumbramento.
Recordo que ao longo da vida adquiri outros exemplares; ofereci uns e perdi
outros.
Antes de regressar a Portugal em 1974, consegui que uma editora de São Paulo, a
Alfa Omega, publicasse no Brasil os Siete Ensayos, com um prefácio de Florestan
Fernandes.
O PERCURSO NA «IDADE DA PEDRA»
Li há semanas um interessante livro da professora brasileira Leila Escorsim
Netto : Mariategui-Vida e Obra*. Numa nota prévia a autora esclarece que o seu
ensaio é a síntese de uma tese de doutoramento sobre o grande revolucionário
peruano; e informa que o seu objetivo foi contribuir para a divulgação no Brasil
do «maior pensador marxista latino-americano do seculo 20».
Mas Leila não desconhece que o marxismo de Mariategui tem sido tema de muitas
polémicas. Não é portanto surpreendente que sejam também polémicas muitas das
opiniões que ela emite sobre o pensamento e a personalidade do biografado.
José Carlos Mariategui (1894/1930) nasceu em Moquegua, no Sul do país numa
família modesta. O pai era funcionário de um Tribunal, a mãe uma mestiça.
Ainda na adolescência, para ajudar a mãe, abandonada pelo marido, começou a
trabalhar como ajudante de tipógrafo no diário conservador La Prensa, de Lima.
Tendo apenas concluído o ensino primário, cedo revelou paixão pela leitura e
pela escrita e textos seus, assinados com pseudónimo, foram publicados pelo
jornal.
As crónicas de Juan Croniqueur sobre os mais diferentes temas chamaram a
atenção.
O Peru era então governado por uma oligarquia agraria. A pequena elite de
crioulos descendentes de espanhóis, concentrada nas costas, detinha o poder
económico e politico. A esmagadora maioria da população, índios e mestiços, era
vítima de uma exploração comparável à do período colonial. Mas nas altas
planuras andinas e nos vales da Sierra, subsistia a propriedade comunitária da
terra, herança do Incário.
O jovem Mariategui nas suas cronicas denunciava o regime oligárquico, a
corrupção, a semi - escravidão dos índios pelos latifundiários feudais.
Ganhou prestígio nos meios intelectuais de esquerda. Mas as suas críticas ao
sistema, então publicadas em El Tiempo, refletiam uma atitude humanista, a
ausência de uma opção ideológica.
A sua saúde, frágil desde a infância, piorou a partir dos oito anos quando
fraturou um joelho e ficou coxo.
Anos depois, ele próprio qualificou o seu combate político na juventude como a
fase da sua «idade da pedra».
Mas incomodava o governo. O presidente Augusto Leguia, que em breve assumiria
poderes ditatoriais, para não o prender mas afastá-lo do país, enviou-o para a
Europa; confiou-lhe a missão de explicar o Peru aos italianos.
UM MARXISTA HERÉTICO
Em Itália Mariategui leu muito: Marx, Lenin,Trotsky, Gramsci, Rosa Luxemburgo,
Kautsky, clássicos gregos, mas também ensaios, teatro e ficção: Freud,
Nietzsche, Shakespeare, Proust, Anatole France, Zola, Barbusse, Romain Rolland,
Gide, Joyce, Thomas Mann, Tolstoi, Dostoiewski, Gorki, Malaparte, Papini,
Marinetti, Pirandello, d’Annunzio, etc.
Uma dose excessiva para poder assimilar em apenas três anos uma transmissão de
saber e cultura tao ampla, densa e variada.
 Assumiu-se como marxista ao ultrapassar a fronteira da «idade da revolução”.
Foi pelos caminhos da Europa, afirmou, que encontrou o seu país e começou a
compreendê-lo. Visitou a Franca, a Suiça, a Alemanha, a Áustria, a Hungria, a
Checoslováquia. A Europa revelou-lhe «até que ponto pertencia a um mundo
primitivo e caótico».
A vitória da Revolução de Outubro reforçou a sua convicção de que o mundo estava
no limiar de uma época de grandes revoluções.
 Mas a influência de Benedetto Croce e de Freud está na origem de tendências que
colidem com o materialismo histórico .
 A sua conceção de vanguarda era tão ampla que foi seduzido pelo futurismo e se
entusiasmou com o surrealismo, que definiu como antecipação do «verdadeiro
realismo», atribuindo-lhe um conteúdo positivo .
Não via o marxismo, tal como o próprio Marx, como um sistema estático e sim
dinâmico, num processo enriquecido por contribuições nascidas da evolução da
história. Mas para exemplificar essa atitude recorreu a uma linguagem reveladora
das contradições da sua formação politica. Utilizou com frequência a expressão
«revisionismo de Lenin» para elogiar a atitude criadora do revolucionário russo
ao ir «mais além do Capital» na aplicação do pensamento de Marx a sociedades em
permanente mudança.
Não captou, creio, a diferença entre a aplicação do marxismo a um mundo
transformado e a revisão do marxismo por social-democratas como Bernstein e
Kautsky que, dizendo-se marxistas, se incompatibilizaram com a sua visão da
Historia, admitindo que se podia chegar ao socialismo através de reformas
institucionais, sem revolução. Essa contradição é aliás assinalável na sua obra
de crítica literária, reunida em livros editados postumamente pelos filhos.
Muitos dos textos de El Alma Matinal deixam transparecer sequelas do anti
capitalismo romântico. Distanciou-se do seu esteticismo juvenil, mas é absurdo o
elogio simultâneo a Breton, Nietzsche e Lenin.
Em artigos dedicados à crítica do fascismo italiano subestima e deturpa o papel
dos intelectuais na História.
«A inteligência - escreveu, comentando a adesão ao fascismo de intelectuais
europeus - é essencialmente oportunista. O papel dos intelectuais na história
resulta na realidade muito modesto (…). Os intelectuais constituem a clientela
da ordem, da tradição, do poder, da força, etc, e, em caso de necessidade, do
porrete e do óleo de rícino».
A generalização é inaceitável, carece de fundamento científico.
Manifestou repetidamente admiração por Benedetto Croce. Tinha por merecida a
«enorme fama» do filósofo liberal italiano.
 Ouso afirmar que, tal como em Fidel Castro, um voluntarismo não
consciencializado contribuiu para uma formação ideológica onde se fundem o
idealismo e o materialismo.
A especificidade do chamado marxismo mariateguiano valeu-lhe críticas de
académicos que atribuem contradições do seu pensamento a um estudo insuficiente
de Marx. A professora Leila Escorsim, sua grande admiradora, regista no marxismo
de Mariategui contradições inseparáveis de uma formação filosófica pobre.
Mas essas limitações não afetam minimamente a grandeza e o significado da sua
obra. Aliás não se deve esquecer a época e o país em que viveu e a doença que
lhe abreviou a vida (nos últimos anos amputaram-lhe a perna atrofiada).
O AMAUTA
Foi no regresso ao Peru, em 1923, que Mariategui escreveu os Siete Ensayos.
Fundou o Partido Comunista do Peru (inicialmente intitulado socialista) e a
Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru-CGTP.
Nos últimos sete anos da sua vida, enfrentando sempre dificuldades financeiras
para sustentar a família, desenvolveu uma atividade frenética, apesar do
agravamento da saúde sempre precária.
A revista que criou, Amalta, é ainda recordada como um instrumento cultural
impar e, indiretamente, guia para a acção revolucionaria. Nela colaboraram entre
outros Haya de la Torre (com o qual posteriormente rompeu), Jorge Luis Borges,
Ruben Dario, Jorge Guillen, Pablo Neruda, José Antonio Mella, Diego Ribera, José
Vasconcelos, Gabriela Mistral, Jesus Herzog.
 Amautas, recorde-se, eram no Peru pré-colombiano os detentores do saber que
educavam a família do Inca e a nobreza. A escolha do nome é significativa da
ambição de uma iniciativa que sendo cultural foi também política, divulgando
textos de Marx, Rosa Luxemburg, Trotsky, Stalin, Bukharine, Gorki, Ortega y
Gasset. etc.
Nos Siete Ensayos reuniu trabalhos diferentes. Neles estão ausentes as
contradições do seu marxismo.
O primeiro é sobre a evolução económica do Peru desde o período colonial ; o
segundo sobre o problema do índio; o terceiro sobre a terra; o quarto sobre a
instrução pública; o quinto sobre a questão religiosa; o sexto sobre
regionalismo e centralismo; o sétimo sobre a literatura.
INTERROGAÇOES SEM RESPOSTA
Até onde teria ido Mariategui se a morte não o atingisse em plena juventude?
Seria especulativa qualquer resposta à pergunta. Mas o seu pensamento, obra e
trajetória conduzem a uma certeza: Mariategui aceitou a expulsão e a deportação
de Trotsky, que admirava, vendo nele o porta-voz da «ortodoxia comunista», mas
teria reagido com indignação aos processos de Moscovo em 1937 e 1938.
A sua atitude perante a evolução da III Internacional anunciou tensões
inevitáveis. Aderiu com entusiasmo à defesa da frente única anti-imperialista,
mas desaprovou a mudança de estratégia da organização após o VI Congresso. As
comunicações que enviou à I Conferencia Comunista Latino americana de Buenos
Aires, dirigida pelo argentino Victório Codovilla (ele não compareceu por
doença) foram ali criticadas não merecendo aprovação.
Se tivesse vivido mais alguns anos, as suas posições teriam sido denunciadas
pelo PCUS como contra revolucionárias e ele como instrumento da burguesia.
Era então imprevisível o rumo que a Historia tomaria e inimaginável que a União
Soviética desapareceria e a Rússia se transformaria num país capitalista.
Mas o pensamento e a obra de Mariategui ficaram.
No limiar do Seculo XXI a própria direita peruana reconhece a dimensão de
grandeza do autor dos Siete Ensayos. E os comunistas da América Latina vêem nele
o introdutor do marxismo no Continente.
 __
*Mariategui,Vida e Obra, Leila Escorsim, Ed. Expressão Popular,316 páginas, São
Paulo 2OO6
In
RESISTIR.INFO
http://www.odiario.info/atualidade-de-mariategui/
11/4/2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário