sábado, 17 de fevereiro de 2018

Para coronel da reserva, intervenção tem tudo para dar errado



Para Fernando Montenegro, há muitos policiais no RJ que poderiam
estar nas ruas, mas exercem funções administrativas 
A intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro tem todas as condições para
dar errado. A corrupção política e policial, o corporativismo e as sólidas bases
criadas pelas facções criminosas no estado serão apenas alguns dos muitos
obstáculos que o comandante militar do Leste, general Walter Braga Netto, terá
que enfrentar.
Quem alerta tem conhecimento de causa: o coronel Fernando Montenegro, da reserva
do Exército Brasileiro e professor da Universidade Autônoma de Lisboa. Como
comandante do Regimento Sampaio, uma das mais tradicionais unidades militares do
país, participou da ocupação do Complexo Penha-Alemão, em 2010, e encarou os
desafios impostos contra o Estado pelo governo paralelo montado pelo
narcotráfico.
“Mesmo nos estados falhados, como a Somália, não existe território que não
esteja ocupado por uma forma de governo”, alerta. “Aonde a autoridade oficial
não chega, um poder paralelo se instala. É o que o professor Bartosz Stanislaws
definiu como ‘buracos negros’. Foi o que ocorreu no Rio de Janeiro, onde existem
840 locais onde o Estado não tem qualquer ingerência.”
Nestas áreas funcionam mini países informais que dominam território e população
e, de certa forma, exercem soberania. Este fenômeno não se restringe às favelas
e pode ser observado em quase todo o Brasil em áreas historicamente abandonadas
pela União, como acampamentos de agricultores sem-terra e garimpos. Aliadas a
políticos corruptos, estas “mini nações” interferem diretamente na administração
pública e drenam recursos do combate à violência.
Longe das ruas
Um bom exemplo deste fenômeno, de acordo com o coronel, seria a Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, três mil integrantes da corporação exercem
função administrativa na Assembleia Legislativa, dez deles lotados no gabinete
de um parlamentar, o deputado estadual Paulo Melo (PMDB), que preso na Cadeia
Pública de Benfica por corrupção. O candidato derrotado à Prefeitura do Rio de
Janeiro, Marcelo Freixo (PSOL), também mantém dez PMs sob sua tutela.
“Há um total descaminho de policiais que podiam atuar nas ruas e se encontram em
situação administrativa”, afirma Montenegro. “A Secretaria de Segurança Pública
é outro excelente exemplo. Lá, 500 policiais militares exercem função
burocrática na maior estrutura do gênero do país. Claro, todos preferem ficar
longe das ruas, ganhando boas gratificações e a salvo”, ressalta.
“Com o resgate desses efetivos e o fim das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP) a vigilância ostensiva poderia ser reforçada em cerca de 4 mil agentes.”
Para o especialista, as UPPs falharam porque não receberam o devido apoio
financeiro federal e não foram complementadas por ações nas áreas de saúde e
educação e hoje estão completamente isoladas e afetadas pela corrupção.
Um grande obstáculo para o sucesso da intervenção está nos limites impostos pela
legislação às ações de garantia da lei e da ordem. “O Exército não tem
ingerência direta sobre a polícia que, por corporativismo, se recusava a
integrar esforços conosco”, conta o coronel. “No decreto está previsto que a não
obediência a uma ordem será vista como crime militar, e a Justiça Militar é bem
mais rápida que a civil, mas, na prática isto será de difícil implantação.”
Para ele, os desafios geográficos enfrentados pelas Forças Armadas e pelas
polícias federais também dificultam o sucesso da missão do general Braga Netto.
“Temos 17 mil quilômetros de fronteiras, muitos deles compartilhados com países
produtores de drogas, como a Bolívia, a Colômbia, o Peru e a Venezuela”, lembra.
“Os Estados Unidos possuem apenas dois mil em seus limites com o México e não
consegue impedir o tráfico de pessoas e entorpecentes. Seria necessária uma ação
integrada do Ministério das Relações Exteriores com os governos vizinhos nos
planos estratégicos e operacionais.”
Segundo Montenegro, os chamados donos de morro montam uma estrutura bastante
sofisticada que se entranha pelas comunidades, determina a vida econômica local
e serve para eleger políticos que defendem os interesses do crime organizado.

Facções organizadas

“Há um departamento de informação e propaganda, que trabalha com o que nós
militares chamamos de operações psicológicas. Organiza bailes funks e promove a
organização criminosa por meio de contratação de artistas, músicas de apoio e de
promoção do sexo e de vídeos distribuídos pelo YouTube e pelo WhatsApp. Cabe a
eles marcar território com a sigla da facção e o nome do líder nos limites de
atuação na comunidade. Com estas atividades, a distribuição de panfletos e a
colocação de faixas conseguem novos recrutas, entre eles jovens que fizeram o
Curso de Formação de Cabos do Exército e que possuem excelente formação
militar.”
As facções também mantêm departamentos jurídicos, que atuam na obtenção de
habeas corpus e negociam os chamados “arregos” (pagamentos de propinas a
policiais e políticos); financeiros e logísticos, que tratam do fluxo de caixa,
de matérias-primas e do suprimento de armas e munições; de produção, com
gerentes diferentes para cada tipo de droga, e de distribuição, com vendedores
no varejo e “vapores”, traficantes que levam o produto para áreas de maior renda
e que atuam em festas e bares. “A coisa vai muito além do traficante armado com
fuzil”, conta o professor.
“O sistema de alerta inclui crianças que usam celulares, rádios e outros
sistemas, como fogos e pipas, para avisar os combatentes da chegada de policiais
ou grupos rivais. A tomada de um morro segue o mesmo esquema de saque da Idade
Média. O grupo se apropria do butim e dos equipamentos da facção derrotada. Há
sempre muito dinheiro vivo, inclusive dólares e euros, porque as quadrilhas não
usam o sistema bancário.”
Ao lado desta ação direta, as quadrilhas multiplicam seus recursos com a
exploração de serviços, alguns deles regularizados, e a cobrança de taxas e
impostos. Tudo o que sobe e desce o morro, do mototáxi aos botijões de água e
gás, reverte para a facção. Centrais ilegais de TV a cabo e de internet também
ampliam a renda dos grupos. “Ao chegarmos no Alemão, conseguimos convencer uma
operadora a oferecer pacotes baratos para substituir a gatonet”, conta
Montenegro, “mas, para nossa surpresa, as empresas de distribuição de gás e água
eram legais, apesar de exploradas por familiares do dono do morro. Na Rocinha, o
serviço é administrado pelo irmão do Marcinho VP.”

In
MSN
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/para-coronel-da-reserva-intervenção-tem-tudo-para-dar-errado/ar-BBJfGoi?li=AAkXvDK&ocid=spartanntp
17/2/2018

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