sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A lenta construção de um ‘Estado Vassalo’ e o papel dos militares brasileiros

 

 por José Luís Fiori

A nova intervenção externa do Brasil ao lado dos EUA, contra a
Venezuela, apenas repete e prolonga uma decisão de longo prazo dos
militares brasileiros pela transformação do Brasil num “Estado vassalo”
do império militar norte-americano


        *por José Luís Fiori*

/Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes, e os fracos, dia a
dia, mais fracos; as pequenas nações se veem, da noite para o dia,
reduzidas à condição humilde de estados pigmeus […] e a equação de poder
do mundo simplifica-se a um reduzido número de termos, e nela se chega a
perceber desde já apenas raras constelações feudais de estados-barões
rodeados de satélites e vassalos./

Gal Golbery do Couto e Silva, 1952, “Geopolítica e estratégia”, in
“Geopolítica e Poder”, Editora UniverCidade, Rio de Janeiro, 2003, p. 17

—————————————–

Segundo Joffrey Sachs, Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado
norte-americano, é um ardoroso evangélico que considera que é chegada a
hora do Apocalipse, da volta de Cristo e da batalha final do “bem”
contra o “mal”, que será liderada pelos Estados Unidos, o maior de todos
os povos judaico-cristãos.[1] <#_ftn1> Além disso, Mike Pompeo é um
empresário “rude e simplista”, e um homem da comunidade de inteligência
americana, ex-diretor da CIA, sem nenhuma formação diplomática, que
opera como uma espécie de ventríloquo de Donald Trump e de sua
diplomacia agressiva de desacato às pessoas e de ameaças aos países que
discordam ou competem com os Estados Unidos. De qualquer maneira, é um
homem que não usa “meias palavras” nem esconde intenções, e foi
absolutamente explícito com relação aos objetivos de sua
visita-relâmpago à Base Aérea de Boa Vista, no estado de Roraima, junto
à fronteira da Venezuela, no dia 18 de setembro de 2020. Todos
entenderam sua encenação eleitoral, mas ele também foi claro na sua
demonstração ostensiva de poder frente aos governos, e frente às “tropas
satélites”, que estão participando do cerco militar ao território
venezuelano que está em pleno curso.

O cerco militar à Venezuela começou no mês de abril, com uma grande
demonstração do poder naval dos Estados Unidos no Mar do Caribe, mas
depois disto, nos meses de junho e julho, a Marinha americana realizou
novas simulações de guerra e uma grande “Operação Liberdade de
Navegação”, comandada pelo Alm. Craig Fallen, chefe do Comando Sul das
Forças Armadas do Estados Unidos, “USSOUTHCOM”, com sede na Flórida, e
liderada por uma das mais modernas embarcações da Marinha
norte-americana, o destroier USS Pinckney (DDG91). Imediatamente depois,
foi a vez da “Operação Poseidon”, que já contou com a participação
direta da Colômbia, e foi realizada junto com a visita de Mike Pompeo,
que antes de aterrissar em Roraima visitou a Guiana e o Suriname, e
obteve o consentimento para utilização de seu espaço aéreo, a leste da
Venezuela, pela Força Aérea dos Estados Unidos. Por fim, a visita de
Mike Pompeo coincidiu com a “Operação Amazônia” das FFAA brasileiras,
realizada entre os dias 4 e 23 de setembro, envolvendo três mil
militares trazidos de cinco comandos diferentes, juntamente com uma
bateria completa do Sistema Astros, completando o cerco pelo sul do país
vizinho.

Apesar da data e das dimensões da operação brasileira, ela foi tratada
pelas autoridades militares locais como um exercício regular de suas
FFAA, quando de fato envolve acordos e encobre decisões que dizem
respeito ao futuro de todos os brasileiros. Mesmo quando essas decisões
não sejam novas nem originais e reproduzam a história de longo prazo das
relações militares entre o Brasil e Estados Unidos, que começou na
primeira metade do século XX, são tratadas como se fossem de exclusiva
responsabilidade das Forças Armadas. Uma história longa, mas que pode e
deve ser dividida em dois grandes períodos: antes e depois de 1941.

Nas duas primeiras décadas do século XX, a geração do Barão de Rio
Branco, e do presidente Hermes da Fonseca concebeu e se propôs fazer uma
aliança estratégica do Brasil com os Estados Unidos, que deveria ocorrer
junto com a recentralização do poder do Estado e a reorganização das
Forças Armadas brasileiras. O objetivo era enfrentar a competição
econômica e militar da Argentina, mais rica e poderosa e apoiada pela
Inglaterra na disputa pela hegemonia da Bacia do Prata e da própria
América do Sul. Nesse período, entretanto, os Estados Unidos estavam
absorvidos pela Primeira Guerra Mundial e sua grande crise econômica da
década de 30, e deram pouca atenção aos seus vizinhos da América do Sul.
Mas isso mudou radicalmente com a entrada dos Estados Unidos na II
Guerra Mundial, em 1941, e com sua pressão sobre os países do hemisfério
para que suspendessem suas exportações para a Alemanha e a Itália.


Foi então que o Brasil tomou uma série de decisões que marcariam sua
história militar posterior. Primeiro, cedeu aos norte-americanos o
monopólio de sua produção de bauxita, berilo, manganês, quartzo,
borracha, titânio e vários outros minerais estratégicos para os Estados
Unidos. E logo em seguida, no mesmo ano de 1941, o governo brasileiro
concedeu à Marinha americana o direito de operar na costa brasileira, e
o direito das tropas americanas de utilizarem suas bases aéreas e
navais. Finalmente foi assinado, em 22 de maio de 1942, um Acordo
Militar que garantiu o alinhamento das Forças Armadas brasileiras ao
lado dos Estados Unidos, em troca de um financiamento de U$ 200 milhões
de dólares para aquisição de equipamentos, armas e munições
norte-americanas, junto com o compromisso de desenvolver planos
conjuntos de defesa e capacitação das FFAA brasileiras.

Em seguida, em agosto de 1942, o Brasil declarou guerra às potências do
Eixo, mas o reequipamento das suas Forças Armadas só começou a ser
feito, de fato, depois que o país garantiu o envolvimento direto de seus
militares no campo de batalha, com a criação da Força Expedicionária
Brasileira, em agosto de 1943, e com o envio de seus soldados para a
Itália, em fevereiro de 1944, onde foram situados junto ao 371^o
Regimento /Afro-Americano/. Um ano depois, a FEB participou da tomada do
Monte Castelo, ao lado da 10^a Divisão de Montanha Estadounidense, e
passou a fazer parte do IV Corpo de Exército Americano, localizado na
zona central da Itália. A FEB teve 12 mil baixas, e a maioria de seus
oficiais ficou estreitamente ligada a seus parceiros americanos depois
do retorno ao Brasil, no segundo semestre de 1945, onde muitos deles
vieram a participar do golpe militar que derrubou o presidente Vargas,
em 3 outubro de 1945, e decretou o fim do Estado Novo, que os próprios
militares haviam instalado em 1937. Por fim, essa mesma geração de
militares teve papel decisivo na negociação e assinatura do grande
“Acordo de Assistência Militar entre a República do Brasil e os Estados
Unidos da América”, em 15 de março de 1952.

O novo acordo, de 1952, serviu para confirmar e consagrar o
relacionamento que havia nascido durante a Segunda Guerra, entre os
militares brasileiros e norte-americanos. A diferença era que o novo
acordo assegurava uma ajuda anual permanente de U$ 50 milhões de dólares
para aquisição de armas e equipamentos americanos, em troca do
fornecimento de urânio e areias monazíticas, além de outros minerais
estratégicos. A negociação deste acordo militar foi conduzida pelo
Embaixador dos EUA e pelo Ministro de Relações Exteriores brasileiro, o
mesmo João Neves da Fontoura que depois traiu seu amigo Vargas ao
denunciar, em abril de 1954, um acordo que foi inventado e atribuído a e
Vargas e Peron visando criar um bloco geopolítico junto com o Chile, que
foi chamado de ABC. Uma ideia que nunca foi tolerada pelos Estados
Unidos e, portanto, uma denúncia que contribuiu decisivamente para a
derrubada de Vargas em agosto de 54. Além da troca de equipamento bélico
por minerais estratégicos, o Acordo Militar de 1952 garantiu, nas
décadas seguintes, o adestramento dos oficiais brasileiros nas escolas
militares nos EUA e da Zona do Canal do Panamá, junto com a presença de
oficiais norte-americanos nos cursos do Estado-Maior das Forças Armadas
brasileiras.



Antes disso, entretanto, a geração militar que voltou da Itália também
teve papel importante na criação da Escola Superior de Guerra (ESG), que
foi criada segundo o modelo das /War Colleges/ dos EUA, e que contou
desde o início com a assessoria direta dos militares americanos que
passaram a ter um Oficial de Ligação permanente dentro das dependências
da própria Escola. Foi na ESG que se formulou, na década de 50, a nova
Doutrina de Segurança Nacional dos militares brasileiros que acabou
sendo transformada em Lei da República, em 1968, pelo Decreto-Lei da
Ditadura Militar, n^o 314/68. E foi no corpo dessa nova “doutrina” que
apareceu pela primeira vez o conceito de “inimigo interno” do Estado
brasileiro, que incluía, desde logo, todos aqueles que se opusessem à
nova subserviência internacional do Brasil. Depois de 1948, passaram
pela ESG quase todos os militares que participaram do “ultimato militar”
a Vargas, em 1954; da frustrada tentativa de impedir a posse de JK, em
1955; e finalmente, do golpe militar de 1964, que derrubou o governo
Goulart e entregou o poder do Estado brasileiro, durante 20 anos, a essa
mesma geração de soldados que se formou a partir da década de 40 e viveu
ao lado dos Estados Unidos sob a égide da Guerra Fria.

Logo depois do golpe militar de 64, as Forças Armadas brasileiras
aceitaram participar da invasão norte-americana de Santo Domingo,
enviando 1.130 soldados que se juntaram, em abril de 1965, aos 42 mil
soldados utilizados pelos EUA para derrubar o governo eleito de Juan
Bosh e instalar no seu lugar o governo de Joaquin Balaguer, que dominou
a política dominicana nos 22 anos seguintes. Além disso, e no mesmo
espírito, os militares brasileiros participaram da Operação Condor,
montada em 1968 para perseguir e matar “inimigos internos” no Cone Sul
da América Latina. Esta intervenção foi a tal ponto que o embaixador
brasileiro no Chile chegou a ser chamado informalmente de “quinto
membro” da Junta Militar que comandou o sangrento golpe de estado do
General Pinochet, em setembro de 1973.

O Acordo Militar de 1952 foi denunciado pelo General Ernesto Geisel, em
11 de março de 1977, e foi extinto no ano seguinte, apesar de os
oficiais brasileiros seguirem sendo treinados nas academias de guerra
norte-americanas nos 30 anos que se seguiram. Entre abril de 2010 e
janeiro de 2014, entretanto, o governo brasileiro voltou a assinar três
novos acordos militares na área da defesa, compra de materiais e
tecnologias bélicas, e troca de informações entre as FFAA dos dois
países. E depois do golpe “cívico-militar” de 2016, assinou um acordo
para o uso norte-americano da Base de Alcântara, e foi declarado “aliado
preferencial extra-OTAN” pelo presidente Donald Trump. E, finalmente, o
atual governo indicou um general das FFAA brasileiras para ocupar
diretamente, o posto de “subcomandante de interoperacionalidade”
diretamente dentro do Comando Sul das FFAA norte-americanas, onde foi
assinado o recente Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e
Avaliação (RDT&E, na sigla em inglês), que agora se encontra em
discussão no Congresso Nacional.



Assim, é no contexto dessa nova “relação carnal” com os Estados Unidos
que deve ser lida, finalmente, a tal da “Operação Amazônia” dos
militares brasileiros, que foi consagrada pela visita de Mike Pompeo
tendo so seu lado o “bufão bíblico” local que comandou a fracassada
“invasão humanitária” da Venezuela, de 2019. Uma leitura das
recorrências “epidemiológica” desta história permite formular pelo menos
quatro hipóteses, uma certeza e uma pergunta final.

A primeira hipótese, é que os militares tiveram papel central em todos
os golpes de Estado da história brasileira do século XX: em 24 de
outubro 1930; em 19 de novembro de 1937; em 29 de outubro de 1945; em 24
de agosto 1954; em 31 março de 1964; e ainda que de forma menos direta,
também no golpe de estado de 31 de agosto de 2016. A segundahipótese, é
que os acordos e relações militares entre Brasil e Estados Unidos
tiveram associação muito estreita com quase todos esses golpes,
sobretudo depois de 1940. A terceira hipóteses, é que esses acordos e
golpes militares vieram associados, quase invariavelmente, com a
participação do Brasil em intervenções externas das FFAA
norte-americanas. E, finalmente, a quarta hipótese, é que todos esses
acordos e golpes militares tiveram muito mais a ver com os interesses
estratégicos dos EUA do que com as disputas políticas internas dos
próprios brasileiros.

De qualquer maneira, para além destas constatações, fica a certeza de
que a nova intervenção externa do Brasil ao lado dos EUA, contra a
Venezuela, apenas repete e prolonga uma decisão de longo prazo dos
militares brasileiros pela transformação do Brasil num “Estado vassalo”
[2] <#_ftn2>  do império militar norte-americano, utilizando uma ideia e
expressão do General Golbery do Couto e Silva.

Por fim, fica uma pergunta: quando foi que os 210 milhões de brasileiros
transferiram para esses senhores o direito de decidir seu futuro como
nação, obrigando seus filhos e netos a viverem para sempre como
“vassalos” de outro povo, sendo obrigados a morrer nas guerras travadas
por um outro Estado nacional?

OUTUBRO DE  2020

/*[1]*/ <#_ftnref1>/Sachs, J. D., “America´s unholy crusade against
Chine”, //https://www.gnt.com/ <https://www.gnt.com/>/, Aug 06, 2020/

[2] <#_ftnref2> Na história dos grandes impérios clássicos, e do Império
Otomano, em particular, os “estados vassalos” foram sempre aqueles que
ofereceram homenagem e cederam seus soldados para as guerras do Sultão,
ou dos imperadores em geral.

In
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/a-lenta-construcao-de-um-estado-vassalo-e-o-papel-dos-militares-brasileiros-por-jose-luis-fiori/
30/9/2020

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