quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Efeitos assimétricos do crescimento e da estagnação

 


*por Prabhat Patnaik [*]

Cartoon de M. Wuerker. O crescimento sob o capitalismo está associado a
um aumento da pobreza absoluta. Marx reconheceu isto e exprimiu-o como
se segue: "Acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo
acumulação de miséria, tormento do trabalho, da escravatura, ignorância,
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da
classe que produz o seu próprio produto como capital" /(Capital / Volume
I); ou ainda, "À medida que o capital produtivo cresce... a floresta de
braços erguidos que exigem trabalho torna-se cada vez mais espessa,
enquanto os próprios braços se tornam cada vez mais finos" /(Trabalho
assalariado e capital). /

A experiência indiana corrobora isto. É geralmente aceite que o período
do neoliberalismo testemunhou uma rápida acumulação de capital e,
consequentemente, um rápido crescimento do PIB. Este período é louvado
por esta razão como o início de uma era completamente nova na história
económica da Índia. E no entanto, esta mesma era assistiu a um aumento
da pobreza absoluta. A disponibilidade de cereais per capita que fora
alcançada em 1991, ao inverter em certa medida (embora de modo algum
totalmente) o declínio desastroso que ocorrera ao longo do último meio
século do domínio colonial, nunca mais foi atingida em qualquer ano
subsequente.

Os dados relativos ao consumo de alimentos são ainda mais reveladores.
Em 1993-94, o primeiro ano após a introdução de políticas neoliberais,
quando o NSS <http://mospi.nic.in/NSSOa> realizou um grande inquérito
por amostragem, a proporção da população rural que não podia aceder a
2200 calorias por pessoa por dia, que é a definição de pobreza nas zonas
rurais, era de 58%. Em 2011-12, o último ano para o qual estão
disponíveis dados de um inquérito análogo do NSS, esta proporção havia
aumentado para 68%. Para as zonas urbanas onde a referência de pobreza é
um consumo de 2100 calorias por pessoa por dia, os números
correspondentes foram 57 e 65 por cento, respectivamente. Em suma,
precisamente durante o período do capitalismo neoliberal houve um
aumento perceptível da extensão da pobreza absoluta definida nos termos
da sua manifestação mais elementar, nomeadamente a fome, a qual era
também a base da definição oficial de pobreza – até se tornar tão
embaraçosa para o governo que todo o tipo de subterfúgios definicionais
começaram a ser adoptados a fim de produzir um quadro mais embelezado.

Esta conclusão acerca do crescimento da pobreza é também corroborada
pela evidência disponível sobre desigualdade. Piketty e Chancel, dois
economistas franceses, os quais estimaram a fatia dos um por cento do
topo da população no rendimento nacional a partir de dados fiscais do
rendimento, mostram que esta fatia foi a mais alta de sempre, 22 por
cento, em 2013 no período posterior à introdução do imposto sobre o
rendimento na Índia (em 1922). Esta fatia, em contraste, foi de apenas
seis por cento em 1982. Não importa que críticas específicas se possa
fazer ao método utilizado pelos autores, seus resultados são demasiado
gritantes para ignorar. O crescimento da desigualdade na Índia sobre o
capitalismo neoliberal tem sido tão agudo que realmente resultou num
aumento da pobreza.

O mecanismo específico para este aumento da pobreza é exactamente o que
havia sublinhado, nomeadamente um processo de pauperização de pequenos
produtores, especialmente camponeses, muitos dos quais migram para
cidades em busca de empregos que são em número insuficiente. Os
migrantes, e mesmo um segmento do aumento natural da força de trabalho,
incapazes de encontrar empregos, incham o exército de reserva do
trabalho (no sentido frequente de partilhar empregos com aqueles já
empregados). Eles reduzem o poder negocial até dos trabalhadores
organizados e, portanto, agrava a desigualdade e a pobreza.

Este é um ponto sobre o qual tenho escrito no passado e não é preciso
laboração adicional. Mas duas conclusões erradas são frequentemente
extraídas disto. Uma, se o crescimento produz uma acentuação da pobreza,
então a cessação do crescimento deveria ter o efeito oposto de aliviar
ou, no mínimo, de congelar a pobreza: se o processo A causa o processo
B, então a cessação do processo A deveria causar uma cessação de B. Esta
inferência é errada porque existe uma assimetria nos efeitos do
crescimento e da estagnação sobre a pobreza: se o crescimento produz uma
acentuação da pobreza, então a cessação do crescimento produz uma
acentuação ainda maior da pobreza.

O crescimento produz uma acentuação da pobreza porque, como vimos, os
pequenos produtores e camponeses são pauperizados. Mesmo quando não
experimentam uma acumulação primitiva de capital em termos de perda de
terra ou de outros activos (ou seja, em termos de "stock"), sofrem um
esmagamento dos seus rendimentos, ou seja, uma acumulação primitiva em
termos de "fluxo". A cessação do crescimento não significa que o
rendimento médio de um camponês ou pequeno produtor aumente; ao
contrário, ele diminui ainda mais por uma razão diferente.

Tome-se um exemplo simples. Suponha-se que o rendimento monetário de um
camponês tinha sido anteriormente 100 rupias porque o valor da sua
produção (quantidade multiplicada pelo preço unitário) havia sido de Rs
200 e os custos do insumo (a deduzir) de Rs 100. Mas o seu rendimento
real fora esmagado porque a privatização dos cuidados de saúde havia
aumentado muito as suas despesas médicas. Agora, com a cessação do
crescimento, as despesas médicas não descem; mas ele já não pode obter o
mesmo preço pelos seus produtos, enquanto os custos dos insumos
permanecem os mesmos, de modo que o seu rendimento monetário diminui. Se
o esmagamento dele anteriormente fora através de um mecanismo, agora
ocorre através de outro mecanismo sem que o primeiro deixe de ser efectivo.

Do mesmo modo, se o rendimento real de um trabalhador é o produto de
dois termos, o retorno real para trabalhar durante uma jornada diária e
o número de dias para o qual o trabalho está disponível, então a
miseribilização associada ao crescimento ocorre primariamente através de
uma redução do retorno real por dia de trabalho. A cessação do
crescimento não aumenta o retorno real por dia de trabalho, mas reduz o
número de dias de trabalho. Assim, embora o crescimento elevado tenha
sido acompanhado por uma acentuação da pobreza, a cessação do
crescimento torna-se associada a uma ainda maior acentuação da pobreza.

Mais genericamente, pode-se distinguir entre a misebirilização não
causada por uma recessão e a misebirilização causada por recessão. O
crescimento da pobreza durante o crescimento deve-se ao primeiro
processo; o crescimento adicional da pobreza devido à recessão é através
do segundo processo, sem que o primeiro, de qualquer forma, desapareça.
Recessão e estagnação portanto sobrepõem factores adicionais àqueles que
já operam durante a fase de crescimento, para causar uma ainda maior
acentuação da pobreza.

Isto leva-nos à segunda questão. Será que a retomada do crescimento
implicaria então um declínio da pobreza? A tentação seria dizer: sim,
faria isso, mas só se se removerem os factores adicionais causadores de
pobreza que se tenham sobreposto aos factores básicos que operavam
durante a fase de crescimento. E uma vez completo este processo, através
por exemplo da redução do desemprego para o nível anterior à recessão,
então o processo de acentuação secular da pobreza, juntamente com o
crescimento, seria retomado.

Contudo, isto é errado. A crise de hoje enfrentada pelo capitalismo
neoliberal não é uma mera crise cíclica mas sim uma crise estrutural
decorrente do facto de que o sistema chegou a um beco sem saída. A
partir deste nível acentuado de pobreza causado pela recessão, mesmo
antes do início da pandemia, não há renascimento automático. Só pode
haver renascimento se for colocado poder de compra nas mãos do povo, o
que significa que a velha espécie de crescimento simplesmente não pode
ser retomada.

Uma pequena informação resume a extensão desta recessão causada pela
acentuação da pobreza. Citei números de 2011-12 relativos à pobreza
rural e urbana. Depois de 2011-12 houve outro inquérito do NSS com
amostra ampla para 2017-18 o qual mostra que a despesa de consumo rural
per capita em termos reais declinou em 9 por cento entre 2011-12 e
2017-18. Uma vez que a despesa de consumo per capita dos rurais ricos
teriam aumentado ao invés de declinado, aquela da grande massa da
população rural deve ter declinado em ainda maior extensão. Isto
constitui uma descoberta tão notável que o governo decidiu retirar
totalmente do domínio público os resultados do inquérito por amostragem
efectuados pelo NSS para não ter de responder a questões espinhosas.

A segunda informação é relativa ao desemprego crónico, o qual, mesmo
antes do começo da pandemia, atingiu os 6 por cento. Uma vez que grande
parte do desemprego na Índia assume a forma de emprego irregular devido
ao facto de que um dado número de empregos é partilhado entre muitos, o
desemprego crónico é geralmente bastante baixo, cerca de 2 a 2,5 por
cento. O salto para 6% é portanto extremamente significativo e sublinha
a magnitude da acentuação da pobreza provocada pela recessão.

11/Outubro/2020

*Do mesmo autor:
# **The Economic Paradox of High GDP Growth and Low Foodgrain Output
Growth
<https://www.newsclick.in/economic-paradox-high-gdp-growth-and-low-foodgrain-output-growth>


[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
<http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/1011_pd/asymmetric-effects-growth-and-stagnation <https://peoplesdemocracy.in/2020/1011_pd/asymmetric-effects-growth-and-stagnation>
. Tradução de JF. *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_11out20.html
11/10/2020

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