segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Bolívia: “Frente à vitória do MAS, direita tenta se somar para fraude ou golpe”

 


    Leonardo Wexell Severo, de La Paz para o Correio da Cidadania
  

CORREIO DA CIDADANIA
https://correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/14394-bolivia-frente-a-vitoria-do-mas-direita-tenta-se-somar-para-fraude-ou-golpe-alerta-sociologo
19/10/2020



Juan Carlos Pinto Quin­ta­nilla de­nuncia pre­sença de de­zenas de
as­ses­sores da OEA e da USAID para in­ter­ferir no pleito (Foto: LWS)

Para o so­ció­logo Juan Carlos Pinto Quin­ta­nilla, frente à vi­tória do
can­di­dato Luis Arce, do Mo­vi­mento Ao So­ci­a­lismo (MAS), nas
elei­ções re­a­li­zadas neste do­mingo (18), “a di­reita bo­li­viana tem
dois planos, que não sei se vão se en­con­trar em algum ponto: tentar
uma fraude elei­toral ou aplicar um golpe”.

Na boca de urna, a van­tagem pa­rece in­con­tor­nável e Arce conta com
van­tagem muito con­si­de­rável. Uma vi­tória no pri­meiro turno pa­rece
prestes a ser con­fir­mada, uma vez que pela lei bo­li­viana o
can­di­dato que fizer mais de 40% dos votos e abrir 10% de van­tagem
está eleito.

Leia a en­tre­vista a se­guir.

*A boca de urna elei­toral deste do­mingo, 18, aponta para uma vi­tória
do MAS no pri­meiro turno. Em função disso, Tuto Qui­roga, que tinha
menos de 2% já tinha saído da dis­puta para for­ta­lecer a
can­di­da­tura de Carlos Mesa. Exa­ta­mente da mesma forma que a
au­to­pro­cla­mada pre­si­dente Je­a­nine Áñez. Como ava­lias esta
ten­ta­tiva da di­reita de manter-se no poder?*

Estas pes­quisas não são nada de novo. Es­tamos fa­lando de todas as que
têm mais ou menos al­guma con­fi­a­bi­li­dade ha­viam mos­trado que o
Mo­vi­mento Ao So­ci­a­lismo (MAS) es­tava em as­censão e que havia a
pers­pec­tiva real de al­cançar pelo menos os 40% dos votos, com os 10%
de di­fe­rença. [Na Bo­lívia para o can­di­dato vencer no pri­meiro
turno esta é uma das op­ções, a outra é fazer mais de 50% dos votos].
Porém con­tras­tavam com pes­quisas como a do jornal Pá­gina Siete ou da
Fun­da­ción Ju­bileo que ten­tavam mos­trar a Carlos Mesa como o
pos­sível opo­sitor, di­zendo que ha­ve­riam apenas três ou quatro
pontos de di­fe­rença. Ou até mesmo em­pate téc­nico.

*Pes­quisas que não le­vavam em conta em geral nem o voto rural nem do
ex­te­rior, em que o MAS tem ga­nhado his­to­ri­ca­mente com ainda maior
di­fe­rença...*

Exato. O que bus­cavam era aglu­tinar o voto da di­reita, tentar
im­pedir que se dis­persem. A queda de Je­a­nine Áñez es­teve dentro
deste quadro, pois as di­fe­renças eram ainda mai­ores. Estas úl­timas
pes­quisas co­locam Tuto Qui­roga bem para trás. Lo­gi­ca­mente que os
co­men­ta­ristas mais pe­sados da pró­pria opo­sição estão
as­si­na­lando que o MAS já tinha pra­ti­ca­mente todas as con­di­ções
de vencer no pri­meiro turno.

Nestas cir­cuns­tân­cias es­tamos fa­lando que eles estão ace­le­rando e
aper­tando cada vez mais na busca de juntar os votos em torno ao
se­gundo co­lo­cado, ainda que o que querem é dar a im­pressão de que
evi­den­te­mente existe com­pe­ti­ti­vi­dade. Acre­dito que o que pode
ocorrer é que possam forçar um se­gundo turno. E que ele seja feito sob
as cir­cuns­tân­cias em que se move o pro­cesso elei­toral, com os 30
as­ses­sores da Or­ga­ni­zação dos Es­tados Ame­ri­canos (OEA) – que
atuou para fraudar as elei­ções do ano pas­sado. Com os agentes da USAID
(Agência dos Es­tados Unidos para o De­sen­vol­vi­mento
In­ter­na­ci­onal) – sur­rado es­quema de in­tro­missão
es­ta­du­ni­dense na Amé­rica La­tina – no Tri­bunal Elei­toral

Es­tamos dando por certo que há algum plano com algum tipo de “ajuda
téc­nica e hu­ma­ni­tária” para tentar con­tornar esta si­tu­ação.
Con­viria a este setor, pela cha­mada “go­ver­na­bi­li­dade”, passar a
imagem de trans­fe­rência pa­cí­fica de go­verno pa­cí­fica e não a de
um gol­pismo per­ma­nente, para o que estão se pre­pa­rando.

*Como vês a de­núncia da Rede de Co­mu­ni­ca­dores Po­pu­lares de que há
um en­vol­vi­mento de se­tores mi­li­tares em uma onda de aten­tados
vi­o­lentos com ex­plo­sivos contra ho­téis de ob­ser­va­dores
in­ter­na­ci­o­nais e tudo mais, no sen­tido de en­volver o MAS?*

Não há nada des­car­tado porque é um plano es­tra­té­gico da
ul­tra­di­reita li­gada ao im­pério. Sua jo­gada prin­cipal é não
per­mitir que o MAS vença. E a pri­meira coisa para isso é tentar,
através de Mesa, que passa a fi­gura do mo­de­rado, entre aspas, e de um
certo equi­lí­brio da di­reita, forjar um centro de con­ci­li­ação.

Na re­a­li­dade, os di­rei­tistas não vão com­petir para ver quem ganha,
mas vão forçar esta vi­tória por meio dos me­ca­nismos que es­tamos
as­si­na­lando. Porém, se a vo­tação no MAS for de­ma­siado
con­tun­dente, não está des­car­tada a pos­si­bi­li­dade do gol­pismo
con­ti­nuado. Para isso as de­cla­ra­ções de al­guns mi­li­tares nas
redes so­ciais que não vão per­mitir que o co­mu­nismo re­torne. Em
vir­tude do ani­ver­sário do Che vol­taram com os mesmos dis­cursos de
que os in­va­sores es­tran­geiros ve­nham etc., ob­vi­a­mente os
cu­banos e ve­ne­zu­e­lanos, a mesma can­ti­lena de sempre, com o mesmo
dis­curso.

Na se­mana da eleição também houve a con­fe­rência de grupos que são
eco­lo­gistas pa­ra­mi­li­tares, os Ár­vores de Pé e ou­tros de Santa
Cruz, acu­sando o MAS de vi­o­lência ar­mada e de pre­pa­ra­tivos de
agres­sões para o dia das elei­ções. Estão pro­je­tando sobre nós o que
eles fazem, para jogar a culpa.

Evi­den­te­mente, há dois planos, que não sei se vão se en­con­trar em
algum ponto: tentar uma fraude elei­toral e fazer um golpe. A di­reita
tem os seus pró­prios planos di­versos e os dois podem estar a ca­minho.

*Houve a de­núncia in­clu­sive da cam­panha de Arce à mídia e à
co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal da prisão po­lí­tica de uma de­pu­tada
do MAS em Santa Cruz. Como vês o papel da po­lícia e das tropas
mi­li­tares, so­mada ao dos meios de co­mu­ni­cação?*

As ima­gens que foram di­vul­gadas pelas redes so­ciais mos­tram
cla­ra­mente o ataque que havia so­frido um de co­mitê de cam­panha do
MAS por mi­lí­cias do Cre­emos [de Ca­macho, um dos can­di­datos
pre­si­den­ciais da ex­trema-di­reita]. A de­pu­tada ma­sista que está
fo­to­gra­fando pro­cura po­li­ciais para de­nun­ciar a agressão que
es­tava so­frendo. Mas em vez da po­lícia pro­tegê-la, a prendem. Ao
abrirem suas coisas vêm que há um frasco de gás pi­menta, que é normal
para a de­fesa das mu­lheres, e a acusam de portar ex­plo­sivos. É o
mundo to­tal­mente ao con­trário.

*Trans­for­maram a ví­tima em agres­sora.*

To­tal­mente. Le­varam-na e en­car­ce­raram. Esta é a si­tu­ação. Esta é
a po­sição da po­lícia e dos mi­li­tares em re­lação ao MAS. Estas são
as or­dens que re­ce­beram. Há des­con­ten­ta­mento in­terno,
ob­vi­a­mente, e acre­di­tamos por tudo o que já viram que a
hi­e­rar­quia in­ter­me­diária não irá se res­pon­sa­bi­lizar por
ne­nhum outro mas­sacre.

*Neste mo­mento, como ati­vista, in­te­lec­tual e mi­li­tante, como
acre­ditas que deva ser co­me­çada a re­cons­trução na­ci­onal no caso
de uma vi­tória de Arce e Cho­quehu­anca?*

Pri­meiro por con­ci­liar-nos in­ter­na­mente, abrindo os es­paços de
de­bate, de crí­tica e au­to­crí­tica, que foi o que não fi­zemos
du­rante muitos anos. É o que digo: há muitos MASes dentro do MAS,
pes­soas com seus in­te­resses muito par­ti­cu­lares. E há gente que
acre­dita no pro­jeto po­lí­tico re­vo­lu­ci­o­nário, que é o que dá
vida a este pro­cesso.

Deve ser aberta a luta ide­o­ló­gica que existe, mas fica em si­lêncio.
Esta luta ide­o­ló­gica deve en­con­trar ao menos um ponto de
in­ter­câmbio que nos per­mita ver para onde ca­mi­nhar. Du­rante
de­ma­siado tempo se in­sistiu na rota da mo­der­ni­dade, antes que na
do so­ci­a­lismo.

É tempo também de que a massa mo­bi­li­zada en­tenda que suas metas
podem ir além do que ter sim­ples­mente acesso ao bá­sico, que é um
di­reito fun­da­mental. Gerar um pro­jeto po­lí­tico também im­plica em
um pro­cesso de re­po­li­ti­zação. Porque se houve gente que ficou pelo
ca­minho ou passou para o outro lado, é jus­ta­mente porque não
en­tendeu o sen­tido do ho­ri­zonte que es­tamos cons­truindo.

E não deve ser apenas um grupo ou co­le­tivo de in­te­lec­tuais
or­gâ­nicos deste mo­vi­mento que deve par­ti­cipar desta ela­bo­ração.

Para mim uma meta po­lí­tica co­e­rente de­veria ser a re­po­li­ti­zação
en­quanto cons­truímos ou re­cons­truímos as con­di­ções bá­sicas para a
res­ti­tuição de di­reitos fun­da­men­tais no país.

*E neste ho­ri­zonte para a re­cons­trução dos ca­mi­nhos bá­sicos, como
vês o papel da in­dus­tri­a­li­zação?*

Em pri­meiro lugar, temos que falar da in­dus­tri­a­li­zação dos
re­cursos na­tu­rais fun­da­men­tais e, neste caso, o lítio. É o butim
prin­cipal pelo qual vem os gringos e os grandes grupos de poder.

É pre­ciso res­ti­tuir o pro­cesso de in­dus­tri­a­li­zação que já tinha
um ca­minho tra­çado. Isso é chave para ter a en­trada de re­cursos que
nos per­mitam também pensar nesta res­ti­tuição de di­reitos.

Porém, sinto que é pre­ciso avançar de forma pa­ra­lela para não
vol­tarmos a in­correr nos erros co­me­tidos nos úl­timos anos.
Acre­ditar que a bo­nança econô­mica gera au­to­ma­ti­ca­mente adesão ao
pro­cesso de trans­for­mação. Ne­ces­si­tamos que as pes­soas en­tendam
que es­tamos cons­truindo a mu­dança rumo ao bem-estar fa­mi­liar e
pes­soal. Como pers­pec­tiva po­lí­tica co­le­tiva. A
in­dus­tri­a­li­zação dos nossos re­cursos na­tu­rais fun­da­men­tais
bá­sicos é um ob­je­tivo cen­tral que de­fendo que deve estar à frente
no com­bate da su­pe­ração de crise que vive não só o país, mas todo o
mundo, e o nosso con­ti­nente em par­ti­cular.

Então é pre­ciso que as pes­soas en­tendam que não po­de­remos sair da
crise sós. Porque o pró­prio povo pode nos der­rubar se não se sentir
en­vol­vido, com todos juntos. E nesse pro­cesso co­le­tivo já co­meça a
re­po­li­ti­zação, que acom­panhe as mu­danças e que as pes­soas sejam
pro­ta­go­nistas.

Como fa­zemos para o povo ser pro­ta­go­nista e não o Es­tado, os
in­te­lec­tuais, os fun­ci­o­ná­rios que têm os ins­tru­mentos e que se
apro­priam fi­nal­mente dos es­paços do poder? Esta é a parte mais
di­fícil e faz parte da dis­cussão sobre o pró­prio so­ci­a­lismo a
nível mun­dial, mas que vale a pena e é im­pres­cin­dível fazê-la.


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