terça-feira, 8 de novembro de 2022

O discurso de Putin e Napoleão

 



// Carlos Matos Gomes

«A questão do futuro é para todos nós, o dito Ocidente, o ponto sobre o
qual os europeus deviam concentrar as atenções. Qual a nova relação de
forças entre potências no mundo? Como quer a Europa a partir de agora
relacionar-se com os outros espaços políticos e civilizacionais se
decidiu atirar para o campo do inimigo o Estado de maior superfície, com
maiores reservas de recursos energéticos, com quem partilha a cultura, a
história e a religião, além de fronteiras, de mares e da continuidade
territorial, e submeter-se à direção da superpotência do outro lado do
Atlântico e prioritariamente interessada no Pacífico, responsável pela
ordem (desordem) mundial desde o final da II Guerra?»

Através de dois camaradas que muito prezo recebi entre ontem e hoje dois
textos importantes, “Napoleão Bonaparte, Sobre a Guerra — A arte da
batalha e da estratégia” Apontamentos e notas de Bruno Colson, enviado
pelo major-general Carlos Chaves Gonçalves e do major-general Raúl Cunha
a tradução de elementos significativos do discurso de Vladimir Putin, no
dia 27 de Outubro, no Clube Vaidal, um think tank russo que se reúne nos
arredores de Moscovo.

Os dois textos têm um elemento comum: a guerra. As causas da guerra, os
objetivos da guerra e as consequências da guerra. A mim interessa-me,
sempre me interessou, saber como terminam as guerras. Saber como se faz
a guerra levou-me à Academia Militar e saber como se faz uma dada
guerra, a guerra de guerrilha levou-me aos «comandos». Saber como
terminam as guerras levou-me ao 25 de Abril de 1974, ao estudo, à
investigação, à literatura.

Não sou um admirador de Napoleão, que perdeu a sua guerra, não atingindo
o objetivo que se propôs e pelo qual combateu por toda a Europa, de
Lisboa a Moscovo. (No tempo de Napoleão Moscovo era Europa. Agora,
segundo a doutrina do secretário-geral da NATO, de que poucos saberão o
nome e das afirmações da senhora Ursula Van Der Leyen, que surgiu do
anonimato submisso de onde vêm geralmente os presidentes da Comissão
Europeia já não é, transformou-se numa jangada, uma jangada de pedra,
como a que Saramago ficcionou para a Península Ibérica.) O pensamento
único Ocidental impôs que a Rússia deixasse de ser Europa, que se
cindisse pelos montes Urais! Este corte ideológico e ditado por
interesses alheios à Europa terá consequências. O discurso de Putin
anuncia-as. É prudente conhecê-las.

Não sou admirador do francês que quis ser imperador da Europa, que
venceu as potências continentais, exceto a Rússia, mas não conseguiu o
império planetário que o seu ego imaginou, perdendo para a Inglaterra, a
potência marítima, e logo numa batalha em terra, em Waterloo e para um
general do Exército, Wellington, mas apoio a afirmação do autor do
livro: “De certa maneira, todos os oficiais do mundo se identificam com
ele (Napoleão), pois conferiu à profissão militar uma envergadura
intelectual e um profissionalismo ainda hoje reivindicados.”

Napoleão Bonaparte não deixou umas «Memórias» estruturadas como tal, mas
frases, depoimentos e pensamentos que foram reunidos no livro que
recebi. Servem-me para comparar alguns elementos do pensamento do
“pequeno Corso”, com o de Vladimir Putin (também ele de baixa estatura)
no discurso de fundo que proferiu no Club Valdai para todos os Estados
do mundo e não apenas para o Ocidente.

O discurso é muito mais dirigido aos outros Estados do que ao Ocidente e
é significativo que Putin não o tenha querido pronunciar na Assembleia
Geral das Nações Unidas e que esta não tenha ambiente, nem se atribua a
importância de ouvir o líder da Rússia que decidiu desarrumar o
tabuleiro do xadrez mundial. Um sinal de fraqueza da organização e do
estado do mundo. O discurso parece ser tão importante e desconcertante
da verdade oficial que, prudentemente, a propaganda ocidental decidiu
cobri-lo com um manto de silêncio. Palavras do diabo.

Um primeiro ponto comum entre Napoleão e Putin, o senso de ambos na
análise de vantagens e inconvenientes de prosseguir uma guerra por parte
de forças cercadas. O caso de Mântua, para Napoleão e o caso da Ucrânia
(realmente cercada e sem possibilidade de sair do cerco, mesmo com o
envolvimento massivo do verdadeiro inimigo da Rússia, os EUA e, por
decisão desta, da UE) para Putin.

Sobre o cerco de Mântua, escreve Napoleão ao comandante do Exército
Austríaco: “senhor, o bravo deve enfrentar o perigo, mas não a peste de
um pântano. A sua cavalaria, tão preciosa, está sem forragem; a sua
guarnição, tão numerosa, está mal alimentada; milhares de doentes
precisam de um novo ar, de muitos medicamentos e de alimentos sadios:
eis aí razões de destruição. Creio ser do espírito da guerra, do
interesse dos dois exércitos, chegar a um acerto”.

Esse acordo era para Napoleão, como para Putin, que o chefe cercado lhe
entregasse Mântua: “todos ganharemos com isto, e a humanidade ainda mais
que nós.”
Putin, no discurso: “Sempre acreditei e ainda acredito no poder do bom
senso”. “Estou convencido de que, mais cedo ou mais tarde, os novos
centros da ordem mundial e o Ocidente terão que iniciar um diálogo sobre
um futuro comum.” (o que apenas será possível com a resolução da guerra
na Ucrânia)

Dir-se-á que em ambos os casos se trata de capitulação. É verdade. Mas
em todos os casos de final de guerra se trata de capitulação. A
finalidade da guerra é impor uma vontade pela força. Vencer é obrigar o
inimigo a aceitar outra vontade. Capitular. Napoleão capitulou após
Waterloo e sobre a capitulação, isto é, sobre o reconhecimento de que um
dado exército ou Estado já não tem condições para resistir e alterar a
situação a seu favor, desenvolveu conceitos que bem podiam servir ao
Ocidente para utilizar na Ucrânia: “os generais “sábios e humanos” devem
instruir o comandante de uma praça a não contar inutilmente com a defesa
de uma derradeira posição e oferecer-lhe uma capitulação honrosa e
vantajosa. Se ele se obstinar, sendo enfim forçado a render-se por
completo pode-se usar contra ele e os seus todo o rigor do direito da
guerra.” E acrescenta: “Se o comandante de uma praça decide enfrentar um
ataque, sabe que põe em risco a vida de todas as pessoas que se
encontram na praça, militares e civis, assim como as suas propriedades.”
(Seria útil os mentores de Zelenski lerem esta frase de Napoleão).

A questão do futuro é para todos nós, o dito Ocidente, o ponto sobre o
qual os europeus deviam concentrar as atenções. Qual a nova relação de
forças entre potências no mundo? Como quer a Europa a partir de agora
relacionar-se com os outros espaços políticos e civilizacionais se
decidiu atirar para o campo do inimigo o Estado de maior superfície, com
maiores reservas de recursos energéticos, com quem partilha a cultura, a
história e a religião, além de fronteiras, de mares e da continuidade
territorial, e submeter-se à direção da superpotência do outro lado do
Atlântico e prioritariamente interessada no Pacífico, responsável pela
ordem (desordem) mundial desde o final da II Guerra?

Napoleão qualificou os conflitos entre países europeus como guerras
civis. Durante uma receção ao corpo diplomático e aos membros do
parlamento britânico, numa Europa pacificada pelo tratado de Amiens,
comentou com Charles James Fox, chefe do partido Liberal e partidário de
uma aproximação com a França: “Existem apenas duas nações, o Oriente e o
Ocidente. A França, a Inglaterra e a Espanha têm os mesmos costumes, a
mesma religião, as mesmas ideias, até certo ponto. É apenas uma família.
Aqueles que querem vê-las em guerra querem a guerra civil.”

A guerra na Ucrânia seria mais uma guerra civil europeia, se não fossem
interesses fora da Europa a transformá-la numa guerra de civilizações e
de superpotências. A submissão da União Europeia aos Estados Unidos
também teve o efeito de transformar uma questão europeia numa questão de
divisão do mundo. Foi mais um sucesso desta Comissão, além das sanções,
da inflação, da deslocalização de indústrias, do desvio de recursos
financeiros, das carências energéticas, do abandono das políticas de
ambiente, do desperdício de recursos.

A longa manobra de instalação pelo Ocidente (os EUA e a Inglaterra) de
um regime abertamente hostil à Rússia, disponível para integrar a NATO e
a deixar instalar no seu território armas de primeiro ataque decisivo,
junto à sua fronteira — numa repetição da manobra do Ocidente na Polónia
 — levaram a Rússia e Putin a concluir que o Ocidente não só os excluía,
como os cercava para os destruir e fazer capitular.

O discurso de Putin é muito claro na desfiliação da Rússia do Ocidente e
do seu posicionamento do “outro lado”, assumindo o novo campo, o do
Oriente, num choque que ele apresenta com grande clareza e crueza: “Como
disse Solzhenitsyn, o Ocidente é caracterizado por “uma contínua
cegueira de superioridade”. E: “ A confiança do Ocidente na sua própria
infalibilidade é uma tendência muito perigosa. O liberalismo mudou para
além do entendimento até ao ponto do absurdo, quando os pontos de vista
alternativos são declarados subversivos e ameaças à democracia.”

E, como corolário do seu pensamento: “O Ocidente reivindica para si
todos os recursos da humanidade.” — “A civilização ocidental não é a
única, a maioria da população está concentrada no Leste.” — Por fim: “O
período de indisputado domínio do Ocidente nas questões mundiais está a
terminar”.

Pensar o futuro é equacionar as consequências já visíveis das decisões
da União Europeia e dos atuais líderes europeus de alinharem na
estratégia dos EUA de separar a Rússia da Europa, de evitar que a Rússia
pudesse ser uma parte decisiva do Ocidente em termos civilizacionais,
culturais, políticos, económicos e militares.

Do discurso de Putin, como de há dias do de Xi Jiping, presidente da
China no Congresso do Partido Comunista, conclui-se que para estas duas
grandes entidades políticas o mundo está irremediavelmente dividido
entre Ocidente e Oriente. É nesse cenário de opostos que eles agem a
todos os níveis, o político, o económico, o militar. É nesse cenário que
elaboram as suas estratégias. A Rússia e a China e todo o Oriente vêm o
Ocidente como a continuação de um império colonial, de um domínio que
eles não aceitam desde o final da Segunda Guerra e contra o qual lutam
desde o Movimento Descolonizador.

A União Europeia (em boa parte através da Inglaterra e após o Brexit
através de Úrsula Van Der Leyen) atirou a Rússia para o lado de lá.
Acresce que é do lado de lá que se encontram as reservas de energia e de
matérias-primas que durante meio milénio asseguraram o poder do lado de
cá, do Ocidente. Acontece ainda que o Ocidente colonial não deixou muito
boas referências em África, nem nas Américas do Centro e do Sul, nem na
Ásia, o que quer dizer que muitos Estados desses espaços serão tentados
a concordar com a leitura que Putin faz dele, do Ocidente. Acontece
ainda, embora não seja doutrina do Ocidente, que o Oriente apresenta uma
muito maior diversidade cultural, política e civilizacional que o
Ocidente, maior oferta de visões do homem e do mundo, um maior e mais
profundo número de religiões e essa diversidade ideológica, que vai do
xintoísmo ao budismo, ao hinduísmo, ao islamismo, ao confucionismo, ao
cristianismo ortodoxo, traduz-se em energia e em última análise em
poder, apesar das gritantes desigualdades sociais. Mas, como se sabe da
história, não foi a miséria e a desigualdade que impediram a Inglaterra
de ser o maior poder mundial.

O pensamento único que se impôs no Ocidente, a crença na sus
superioridade, que Putin referiu no discurso são empobrecedores e
enfraquecedores. São sintomas de derrota a prazo. E as derrotas começam
normalmente numa fase de decadência do pensamento.

/Fonte: https://dasculturas.com/2022/10/28/o-discurso-de-putin-e-napoleao//

Em
O DIARO.INFO
https://www.odiario.info/o-discurso-de-putin-e-napoleao/
8/11/2022

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