terça-feira, 5 de dezembro de 2023

O destino do país na última batalha de Lula, por Luís Nassif

 

 

Segundo estudos de Thomas Traumann e Felipe Nunes, o país está
irremediavelmente partido ao meio, dividido entre lulistas e bolsonaristas

Luis Nassif <https://jornalggn.com.br/autor/luis-nassif/>
jornalggn@gmail.com <mailto:jornalggn@gmail.com>    
Publicado em 4 de dezembro de 2023, 10:55    


*Peça 1 – a ameaça final à democracia*

O último grande feito de Lula foi ter impedido a reeleição de Jair
Bolsonaro. Tivesse Bolsonaro sido vitorioso, não haveria como segurar a
quartelada das Forças Armadas, a cooptação final do Congresso, a invasão
dos bárbaros não apenas nos palácios de Brasilia, mas por todo o Brasil
civilizado.

A ameaça não acabou. em 2024 haverá eleição para prefeito, fornecendo as
bases para as eleições de 2026. Mais uma rodada de eleição de
parlamentares bolsonaristas, e assumirão definitivamente o controle da
Câmara e do Senado. Independentemente das próximas eleições
presidenciais, o país estará em suas mãos.

*Peça 2 – o retorno de Vargas*

A rigor, a única arma que a democracia dispõe é Lula.

De certo modo, seu retorno lembra o de Getúlio Vargas, eleito em 1950,
como única esperança de interromper o desmonte perpetrado por Dutra.
Segundo Walther Moreira Salles, que conviveu com Vargas, ele voltou algo
desanimado, sem o instinto político dos tempos de ditador e com uma
enorme decepção pelo trabalho de destruição efetuado pelo governo Dutra.

A revelação dos apontamentos de Vargas, nos papéis entregues por sua
neta Celina ao CPDOC, e divulgados por Oscar Pilagallo
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/12/getulio-vargas-narrou-em-caderno-inedito-como-passou-de-ditador-a-lider-democrata.shtml>,
 é uma amostra pungente da repetição reiterada da maldição nacional, da praga do subdesenvolvimento, da perpetuação do coronelato da Primeira República.

Diz Pilagallo:

“Os alvos, às vezes, são coletivos, como os proprietários de jornais, a
seu ver “opulentos gozadores da vida que impõem seu ponto de vista,
[coagindo] a liberdade de pensamento de seus empregados” e envenenando a
opinião dos leitores. Não há nos escritos, no entanto, menção à censura
imposta durante o Estado Novo (1937-1945) ou ao fato de seu governo ter
mantido o jornal O Estado de S.Paulo sob intervenção”.

(…) “Para combater os males reinantes, teria de realizar grandes
reformas de ordem social, política e econômica.” Todavia, ciente do peso
da oposição, conclui: “Já estou velho para fazer outra revolução”

(…) . “Não sou contrário à democracia”, escreve. Na sequência, qualifica
a democracia sob Dutra: “É profundamente reacionária e anárquica”. Para
Getúlio, trata-se de um regime velho, “uma democracia liberal que em
matéria de economia política ainda [reza] pela cartilha de Adam Smith
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/05/genio-de-adam-smith-ainda-espanta-nos-300-anos-de-seu-nascimento.shtml>,
conhecido por descrever os mecanismos que acionam o que o autor escocês chamou de ‘a mão invisível do mercado'”.

(…) “Para as elites, segundo Getúlio, a democracia seria “a liberdade
individual para os poderosos do dia fazerem o que entendem, oprimindo os
pobres e humildes”. Em contraposição a esse conceito, ele defende uma
democracia que produza avanços sociais. “O que sempre afirmei é que a
democracia não podia ser simplesmente política, mas também econômica. De
que serve igualdade política, sem igualdade social?”

“A semente do populismo começa a ser regada com ressalvas à democracia
representativa.
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/05/morte-da-democracia-virou-bordao-para-atrair-imprensa-diz-autor.shtml>
 “Na verdadeira democracia, o homem de governo fala diretamente com o povo. Nas democracias deformadas,
 como essa que temos no Brasil, os políticos falam uns com os outros e esquecem o povo.”

Mesmo assim, cercado desde o primeiro dia por pressões de toda ordem,
conseguiu legar as bases da economia moderna, com a criação de grandes
estatais que ajudaram a turbinar o período seguinte, de JK. E garantiu a
continuidade do seu grupo por mais alguns anos, com o gesto político do
suicídio.

*Peça 3 – o retorno de Lula*

A volta de Lula é, em muitos pontos, idêntica à de Vargas.

Ele representa, hoje em dia, todas as pautas civilizatórias, do combate
à miséria às diversas formas de inclusão, da defesa do meio ambiente às
lutas de afirmação do sul global e a única esperança de retomada de um
processo de desenvolvimento.

Vargas assumiu em 1930, tendo atrás de si o dinamismo dos positivistas
gaúcho; Lula assumiu em 2002 acompanhado da vitalidade do movimento
sindical e das comunidades eclesiais de base.

O Getúlio de 1950 já não dispunha do espírito guerreiro dos gaúcho; Lula
não dispõe da antiga capacidade de mobilização de suas bases. Ambos têm
consciência do enorme desafio de reconstruir o que foi destruído no
interregno Temer e no desastre Bolsonaro.

Na volta, desde o início Lula entendeu a importância de um governo de
pacificação nacional. Abriu mão de um governo de esquerda, em favor de
um governo que possa acolher todas as tendências. Seu chamamento para
que as igrejas evangélicas ajudem na localização e identificação de
vulneráveis candidatos ao Bolsa Família é simbólico, mostra o caminho.
Mas não basta.

Falta um fator essencial: o discurso unificador, a bandeira abrangente,
capaz de unir o país em torno de uma pauta única. Nos anos 50, a grande
bandeira foi a campanha do Petróleo é Nosso, que surgiu de baixo para
cima. Vargas, inicialmente, queria uma Petrobras sem monopólio.

A campanha, conduzida por militantes como Henrique Miranda e Maria
Tibiriça Miranda, por jornalistas como Gondim da Fonseca, por
engenheiros como Fernando Luiz Lobo Carneiro, por militares, como Horta
Barbosa, incendiou a imaginação do país e convenceu a própria UDN a
apresentar o projeto do monopólio estatal e da empresa diversificada –
como forma de impedir seu sufocamento pelas cinco irmãs.

Precisa surgir um tema similar para colocar a bandeira do projeto
nacional nas mãos de Lula.

*Peça 4 – o país partido ao meio*

Segundo estudos de Thomas Traumann e Felipe Nunes, o país está
irremediavelmente partido ao meio, dividido entre lulistas e
bolsonaristas, com uma faixa menor essencial para desempatar a disputa.

Há um conjunto de temas que acirram a polarização, especialmente as
pautas morais, as identitárias e as políticas de inclusão. Obviamente,
Lula não poderá abrir mão dessas bandeiras, e já as contemplou na
formação de seu ministério.

Por outro lado, a bandeira que mobiliza é o tema da salvação nacional.
Mobilizou os bolsonaristas e pode mobilizar a frente civilizatória.

O bolsonarismo conseguiu manipular muito bem o conceito, convencendo
milhões de pessoas que havia um inimigo a ser combatido – o lulismo -, e
a única missão a ser cumprida pelos seus seguidores seriam as orações na
porta de quartéis ou para discos voadores. Loucura, alucinação coletiva,
mas era uma missão. Cada seguidor estava convencido que cumpria com sua
cota de patriotismo.

Agora, o tema racional, capaz de unir todos os pontos do país, é o tema
da produção. O governo tem que sair da Faria Lima e unificar o país. A
ideia fixa na Faria Lima está enfraquecendo Lula não apenas perante sua
base, mas perante todas as grandes corporações.

E, por produção, entenda-se a atividade produtiva – pequenas, médias e
grandes empresas -, os trabalhadores, as organizações de pequenas
empresas, como o cooperativismo e os movimentos sociais.

Não se trata de uma alucinação – como a bolsonarista -, mas de um corte
central no modelo de desenvolvimento. O foco do governo tem que ser a
defesa intransigente das produção nacional, do interesse nacional, da
criação de empregos. Não é só uma estratégia de unificação nacional: é a
receita para o desenvolvimento.

*Peça 5 – a salvação nacional*

Um desafio dessa ordem passa por inúmeros fatores.

*Auto-estima do produtor* – O primeiro – e fundamental – é o da
valorização da auto-estima do produtor. E chamo de produtor todo aquele
que constrói, que monta empresas pequenas ou grandes, gera emprego, gera
fornecedores, receita fiscal, em contraposição aos falsos heróis de
hoje, os traders, as startups e outras aventuras de alcance limitado e
que não geram riqueza para o país.

Em campanhas midiáticas, discursos políticos, eventos, o pequeno
produtor – empresário e trabalhador – têm que saber de seu valor e
entender que o seu trabalho, por mais humilde que seja, é parte
relevante da reconstrução nacional.

É um desafio que pode contar com o apoio das igrejas evangélicas sérias,
do MST, das federações empresariais, do sistema Sebrae, das Associações
Comerciais. Tem que se tirar o foco da Faria Lima e concentrar no país.
E não apenas no país dos rincões. A obsessão com o déficit zero não está
apenas esvaziando o apoio popular ao governo, mas também dos grandes
complexos industriais.

*Defesa intransigente da produção nacional* – se o pequeno fabricante de
roupas está sendo esmagado pelas plataformas internacionais de varejo,
se o grande produtor de aço sofre ameaças da importação chinesa, o
governo tem que vir em seu socorro, com imposto de importação, sim. Só
conseguirá ganhar a confiança do produtor com medidas concretas que
reflitam, internamente, a altivez que Lula demonstra nos fóruns
internacionais. Tem que demonstrar, através de atos concretos, que é o
grande pai em defesa do Brasil.

*Remontagem do BNDES* – em qualquer contabilidade, investimento é
separado de despesa corrente, porque investimento gera aumento da
produção. Tome-se o caso do BNDES. A diferença entre o custo do
financiamento e o custo do financiamento do Tesouro passou a ser tratado
como subsídio, abrindo espaço para o aumento do custo do financiamento.

Confira a lógica:

1. O BNDES financia, digamos, 10 empresas.

2. A diferença entre o custo do financiamento e o do Tesouro
corresponde, digamos, a 100.

3. Os financiamento permitirão ampliar a produção. Haverá mais produção,
mais fornecedores, mais trabalhadores. E todos pagarão impostos. Digamos
que, ao final de 10 anos, os 100 tenham sido repostos com juros. Em
qualquer país racional, a análise contábil do fator BNDES levaria em
conta o diferencial inicial com o financiamento do Tesouro (mesmo
sabendo-se que o ponto fora da curva é o do Tesouro), e o aumento
posterior da receita fiscal, através dos impostos gerados pela nova
produção, pelos fornecedores e pela nova folha salarial. Simples assim.

O próprio BNDES poderia preparar um estudo dessa ordem, com base no
histórico de financiamentos. Ou, então, monte uma parceria com uma
associação de auditores. Seria a maneira mais rápida e racional de tirar
o torniquete que sufocou o mercado de financiamento no país com uma
mentira aceita acriticamente pela mídia.

*Compartidas do investimento externo* – a reciclagem energética está
atraindo dois tipos de empresas no país: a que vem explorar os recursos
naturais e as que pretendem simplesmente produzir com energia verde. O
governo tem que começar a atuar como qualquer país desenvolvido e
pragmático, e impor contrapartidas: transferência de tecnologia;
garantia de fornecedores nacionais; de preferência associação com
empresas nacionais, que garanta a atualização tecnológica permanente. E
há diversas outras possibilidades.

*Contratos offset – *Em uma transação comercial, um contrato de offset é
um acordo entre um comprador e um vendedor no qual o vendedor concorda
em fornecer ao comprador compensações adicionais, além do produto ou
serviço negociado. Essas compensações podem assumir várias formas,
incluindo:

– *Transferência de tecnologia:* O vendedor concorda em transferir
tecnologia ao comprador, o que pode incluir treinamento, licenças ou
transferência de direitos de propriedade intelectual.

Transferência de tecnologia em um contrato de offset

– *Investimento:* O vendedor concorda em investir no país do comprador,
o que pode incluir a construção de uma fábrica, a criação de empregos ou
a aquisição de uma empresa local.

– *Exportações:* O vendedor concorda em exportar produtos ou serviços do
país do comprador, o que pode ajudar a aumentar o comércio e a balança
comercial do país.

No Brasil, os contratos de offset são regulamentados pela Lei nº
8.666/1993, que estabelece que os contratos de aquisição de bens e
serviços pelo governo federal devem incluir cláusulas de offset. A lei
define o offset como “qualquer prática compensatória estabelecida como
condição para a aquisição de bens ou serviços pelo Poder Público, com o
objetivo de promover o desenvolvimento econômico e tecnológico do País”.

*Peça 6 – o que esperar de Lula 2024*

A grande interrogação será o comportamento de Lula 2024. É urgente que
saia da anomia atual e empunhe uma bandeira. Mas as associações
empresariais, as grandes corporações, o sistema cooperativista, as
associações comerciais, têm que começar a se mover em direção a uma
bandeira racional: a valorização da produção interna. E, com esse
movimento, ajudar a despertar o país para sua grande vocação, a de ser a
civilização do século 21.

É necessário a recuperação do próprio amor-próprio nacional, entendendo
o potencial do território, da população, dessa mistura de cores e sons
que, pelo menos até o desastre Bolsonaro, encantava o mundo.

Ainda há tempo de reconstruir a primeira grande democracia tropical.

Em
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/xadrez-2/o-destino-do-pais-na-ultima-batalha-de-lula-por-luis-nassif/
4/12/2023

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