VIRTUALIDADES POLÍTICO-SOCIAIS DAS ORGANIZAÇÕES DOS TRABALHADORES
Candido Giraldez VIEITEZ l 
Neusa Maria DAL RI 2 
Introdução 
Na ordem social capitalista, a burocracia é a forma de 
organização dominante. Embora a empresa seja a organização típica 
desse modelo, a burocracia, sob diversas variantes, encontra-se presente 
em praticamente todas as instâncias sociais, como, por exemplo, na 
maneira como se organizam o Estado, as escolas, as igrejas ou as 
sociedades de benemerência (Weber, 1963). 
A força social desse paradigma é tão grande que o mesmo 
aparece para os diversos atores sociais como a única forma possível de 
organização. Deste modo, ele freqüentemente determina a prática social 
mesmo daqueles atores que teriam razões para não o utilizar. 
A forma burocrática de organização, embora dominante, 
não é a única existente ou possíveL Desde os primórdios da sociedade 
moderna, os trabalhadores, em sua luta de resistência ao capital, foram 
criando entidades próprias cujos parâmetros constitutivos divergem 
fundamentalmente dos que se encontram na burocracia. 
Desta forma, neste trabalho procurar-se-á mostrar que: 
1) as diferentes organizações criadas pelos trabalhadores apresentam 
determinações constitutivas comuns, isto é, elementos de natureza 
democrática que transcendem as categorias da burocracia; 2) essas 
características aparecem também em entidades que têm um objetivo 
econômico tais como cooperativas e empresas autogestionárias; 3) os 
ORG & DEMO
I Professor Assistente Doutor da Faculdade de Filosofia e Ciências -Unesp -Campus de 
Marília e Coordenador do Grupo de Pesquisa Organizações & Democracia. 
2 Professora Assistente Doutora da Faculdade de Filosofia e Ciências -Unesp -Campus de 
Marília e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Organizações & Democracia. 
 
elementos ordenadores básicos dessas organizações econômicas 
encontram-se preconizados na carta de princípios da Aliança Cooperativa 
Internacional -ACI;3 4) nos últimos vinte anos, empreendimentos que 
se apresentam como autogestionários vêm incorporando os princípios 
clássicos da ACI e, ao mesmo tempo, acrescentando novos elementos 
democrático-sociais em sua prática; 5) cooperativas de trabalhadores ou 
empresas sob outras formas jurídicas, além de preservarem esses mesmos 
princípios, apresentam um potencial social que transcende os critérios 
ordenadores da economia capitalista e da democracia liberal. 
As Organizações dos Trabalhadores (OTs) 
As organizações engendradas pelos trabalhadores durante 
o desenvolvimento do capitalismo podem ser divididas em dois grupos: 
organizações de ajuda mútua, de luta política, ideológica, econômica e 
social; e organizações econômicas. 
No primeiro grupo encontram-se as sociedades literárias 
e de correspondência, as associações de ajuda mútua, os sindicatos, os 
diversos tipos de conselhos e os partidos políticos. No outro grupo temos 
as várias modalidades de cooperativas e, mais recentemente, as empresas 
autogestionárias, organizadas ou não sob a forma jurídica de cooperativas. 
A determinações básicas de todas essas entidades, com 
variações significativas referentes às particularidades de época histórica, 
finalidade e lugar, são as seguintes: 1) os dirigentes são os próprios 
trabalhadores; 2) os valores das subscrições e cotizações financeiras para 
a afiliação às mesmas são compatíveis com os rendimentos dos 
trabalhadores; 3) os estatutos e regimentos são elaborados e aprovados 
pelo conjunto de associados, segundo princípios de igualdade e eqüidade 
e por meio de práticas de discussão e deliberação coletivas; 4) em 
princípio, estão abertas a todos os sujeitos sociais interessados, sem 
discriminação de raça, religião, status social e gênero, resguardadas as 
normas e finalidades; 5) a educação é vista como um fator de elevação 
3 Trata-se da Associação internacional que congrega e orienta as ações de cooperativas de 
diferentes matizes. 
 
ORG&DEMO 
do nível cultural e profissional dos associados, assim como um meio de 
desenvolvimento da própria organização; 6) autonomia e independência 
são valores primordiais; 7) postulam o desenvolvimento da solidariedade 
entre os trabalhadores; 8) as entidades geram impostações e práticas 
que transcendem seus objetivos específicos e colocam-se no âmbito do 
desenvolvimento democrático geral da sociedade. 
Características das organizações econômicas e das organizações 
de luta 
A subordinação do trabalho ao capital dá-se sob diversas 
formas abrangendo os vários momentos do circuito econômico-social, 
vale dizer, da produção, distribuição, circulação e consumo de 
mercadorias. Ainda no período de formação do modo de produção 
capitalista, os trabalhadores livres, destituídos de qualquer propriedade 
mobiliária ou imobiliária, e os trabalhadores proprietários dos próprios 
instrumentos de trabalho em escala artesanal, procuraram resistir a essa 
subordinação criando para essa finalidade organizações próprias 
(Thompson, 1977, p. 17-28). 
As primeiras organizações de trabalhadores estiveram 
voltadas para a ajuda mútua e a luta contra as condições subumanas de 
trabalho e de vida impostas pelo capital. Subseqüentemente, o movimento 
de oposição expandiu-se a outras esferas da atividade social. 
Em 1844, os trabalhadores industriais da cidade de 
Rochdale, na Inglaterra, fundaram uma organização comercial com o 
objetivo de oferecer aos associados produtos de melhor qualidade a 
preços mais baixos. Essa sociedade assim constituída era uma cooperativa 
de consumidores que se tornou um marco na história do cooperativismo. 
A notoriedade de Rochdale deve-se precipuamente ao fato de que inovou 
em relação à tradição oweniana, enunciando os princípios que 
viabilizariám o cooperativismo como atividade econômica e empresarial. 
Os princípios de Rochdale (Cole, 1945, p. 74) são: 1) controle democrático 
-uma pessoa, um voto; 2) porta aberta -livre adesão, entrada e saída 
voluntárias; 3) juros limitados como remuneração do capital; 4) sobras 
 
ORG&DEMO 
proporcionais ao montante de compras do associado; 5) vendas à vista; 
6) vendas de mercadorias de boa qualidade; 7) educação dos sócios; 8) 
neutralidade política e religiosa. 
Esses princípios foram adotados pela Aliança Cooperativa 
Internacional que promoveu, através dos tempos, algumas modificações. 
A versão mais recente da Carta de Principios da ACI4 foi aprovada no 
Congresso de 1995, realizado em Manchester, Inglaterra, consistindo no 
seguinte: 1) adesão voluntária e aberta; 2) controle democrático por 
parte dos membros; 3) participação econômica dos associados; 4) 
autonomia e independência; 5) educação, capacitação e informação; 6) 
cooperação entre as cooperativas; 7) interesse pela comunidade. 
Observa-se que o núcleo essencial da formulação de 
Rochdale, corporificado nos princípios de números 1, 2 e 7, foi mantido. 
O princípio de número 4 foi substituído pela proposição mais genérica 
de "participação econômica dos associados". Os princípios de números 
3, 5 e 6, que não apresentavam implicações importantes sobre os 
parâmetros organizativos, foram suprimidos. O sétimo princípio da ACI, 
"interesse pela comunidade", não estava presente em Rochdale. Por fim, 
o princípio de "neutralidade política e religiosa" parece ter assumido a 
forma de "autonomia e independência". Embora os termos dessas 
formulações possam dar a impressão de conter significados díspares, na 
verdade, são próximos. A expressão "neutralidade política e religiosa" 
visava garantir a "autonomia e independência" da cooperativa diante de 
agentes externos. O princípio não preconizava o apoliticismo, mas sim 
uma posição de independência referente à ação política do Estado.5 
4 DECLARACIÓN de la Alianza Cooperativa Internacional sobre la Identidad Cooperativa 
aprobada en lVIanchester en el XXXI Congresso de la ACI. In: Revista de Debate sobre Ecollomía 
Pública Social y Cooperativa, p.37-9. 
5 Comentando o princípio de número oito de Rochdale, que aparentemente é tão estranho à 
tradição operária e popular, Monzón Campos afirma que: "Dada a desconfiança mostrada por 
Owen em relação às instituições do Estado burguês (já se comentou, por exemplo, sua 
desconfiança do sufrágio universal), se compreenderá facilmente o sentido que em Owen tem o 
princípio da 'neutralidade política' que na formulação roéhdaliana remete claramente de novo a 
valores do socialismo associacionista, ao menos ao liderado por Robert Owen". J.L.M. Campos, 
Las Cooperativas de Trabajo Asociado ell la Literatura Económica y ell los Hechos, p. 74. 
 
ORG&DEMO 
Os princípios da ACI atendem às especificidades 
empresariais e econômicas próprias das cooperativas. Constituem-se em 
uma tecnologia social que orienta a formação e o funcionamento das 
cooperativas e que na práticR mostrou-se funcional. 
Aparentemente, esses princípios não guardam nenhuma 
semelhança com aqueles que regem outras entidades, como, por exemplo, 
conselhos ou sindicatos. Porém, realizando-se um exame mais apurado, 
obseIVa-se que esses princípios são, no essencial, os mesmos que norteiam 
as demais organizações dos trabalhadores. 
O quadro abaixo apresenta, de forma comparativa, os 
princípios da ACI para o cooperativismo e as determinações básicas das 
OTs. 
QUADRO 1 -Comparação entre os princípios da ACI e as características 
das OTs 
rprfncípios da ACI Características Gerais das OTs 
Voluntárias e abertas Abertas a todos, em princípio 
Controle democrático, um homem um voto São dirigidas pelos próprios trabalhadores 
Participação econômica dos membros 
eqüidade e igualdade 
com Cotizações e subscrições com baixos valores 
Autonomia e independência Autonomia e independência 
Educação, treinamento e informação Educação geral, politica e para o trabalho 
Cooperação entre cooperativas Solidariedade 
Interesse pela comunidade Visão inclusiva da sociedade e interesse por ela 
Cotejando-se, sumariamente, as características das 
organizações de ajuda mútua e de luta dos trabalhadores com os princípios 
das organizações econômicas explicitados pela ACI, verifica-se o que 
segue. 
O controle democrático porparte dos membros garante 
que os trabalhadores possam dirigir suas próprias entidades. 
O preceito de adesão voluntária e aberta nega o caráter 
discriminatório e de exclusão social sobre o qual erigem-se as organizações 
burguesas e, em princípio, possibilita a inclusão de qualquer pessoa. 
 
ORG&DEMO 
A formulação educação, capacitação e informação revela 
que a educação ilimitada dos trabalhadores constitui um quesito essencial 
para o desenvolvimento e reprodução.de suas organizações, ao contrário 
do que ocorre nas da burguesia que têm como pressuposto constitutivo 
e funcional a educação estratificada. 
o sexto princípio, cooperação entre cooperativas, 
explicita o valor de cooperação e solidariedade historicamente 
preconizado pelas organizações populares6 e oposto aos valores de 
competição e exclusão promovidos pela burguesia. 
O preceito interesse pela comunidade encontra-se no 
seio das tradições operárias que tendem a desenvolver as suas atividades 
procurando ligar-se com a sociedade no seu todo e tendo em vista o seu 
desenvolvimento social e democrático. 
O terceiro princípio, participação econômica dos 
associados, reforça o caráter democrático da cooperativa, determinando 
uma distribuição eqüitativa dos proventos e lançando as bases para a 
definição da propriedade dos meios de produção como propriedade 
social de um coletivo de trabalhadores. Além disso, o preceito de 
contribuição eqüitativa dos membros ao patrimônio da cooperativa, 
estabelece que ela seja compatível com os rendimentos da classe 
trabalhadora, o que se encontra em consonância com o princípio geral 
de baixos valores para a afiliação requeridos pelas demais organizações. 
Conservação e mudança nas organizações econômicas dos 
trábalhadores (OETs) 
A burocracia é comumente entendida como um sistema 
de poder e uma técnica operativa imprescindível ao funcionamento das 
organizações.7 No entanto, neste trabalho, burocracia é compreendida 
6 Entende-se por organizações populares aquelas que têm por sua base social as classes 
subalternas, sobretudo os trabalhadores assalariados. 
7 Nessa concepção, sobressaem características tais como a hierarquia, a especialização de funções, 
a minuciosa divisão de tarefas, a competência, entre outras. Por uma questão de comodidade de 
exposição, abstraem-se as várias configurações que a burocracia tem assumido historicamente, 
como, por exemplo, o taylorismo. . 
 
ORG&DEMO 
primordialmente como um instrumento de dominação da classe burguesa, 
ou seja, como um·conjunto de variáveis organizativas que propicia o 
controle social e, portanto, a manutenção do poder de classe. 
Considerada esta acepção, as OTs não podem ser 
caracterizadas como organizações de tipo burocrático, pois, primeiro, 
são engendradas e mantidas pelas classes trabalhadoras com o propósito 
de promover a sua própria organização, identidade e autonomia e, 
segundo, os seus elementos constitutivos apontam para a superação das 
determinações de classe. 
Não obstante esse fato primordial, é necessário 
considerar, também, que as OTs formam-se a partir dos materiais históricos 
presentes na sociedade capitalista. Assim, o fenômeno resultante dessa 
situação traz em si mesmo uma contradição fundamental. De um lado, 
as organizações erigem-se sobre princípios básiCos que se encontram 
em oposição aos valores dominantes. De outro, encontram-se tangidas 
pelas determinações das relações capitalistas de produção das quais 
derivam. Dessa forma, o modelo burocrático, ou seja, as relações sociais 
capitalistas rondam permanentemente essas entidades que variavelmente 
dão origem a fenômenos semelhantes àqueles produzidos pela 
burocracia. 
Para este trabalho, no entanto, interessa estabelecer e 
discutir as variáveis que incidem mais diretamente e de forma contraditória 
sobre as organizações econômicas dos trabalhadores e que são as 
seguintes: 1) organização do processo de trabalho; 2) tecnologias; 3) 
divagens educacionais e profissionais; 4) utilização de trabalho 
assalariado; 5) democracia representativa; 6) direção por meio dos quadros 
ou lideranças; 7) ausência de integra'ção entre as entidades. 
A forma jurídica de cooperativa ou associaçã08 altera 
fundamentalm~nte o regime de trabalho suprimindo o assalariamento e 
instituindo a figura da propriedade coletiva. No entanto, este fato por si 
8 Há casos em que uma Associação é proprietária de um empreendimento no qual os trabalhadores 
são os próprios mem~ros da Associação contratados sob o regime de Consolidação das Leis do 
Trabalho -CLT (legislação que normatiza o trabalho assalariado ). Neste caso, porém, as 
determinações dadas pelo regime de trabalho assalariado podem tornar-se puramente formais. 
 
ORG&DEMO 
só não modifica a organização do processo de trabalho, a qual diz respeito 
ao modo como se realizam as tarefas numa empresa. Em geral, as OETs 
utilizam-se dos mesmos métodos de organização do processo de trabalho 
empregados pela empresa capitalista. São várias as razões que contribuem 
para que isso ocorra e uma delas é que a concepção burocrática encontrase 
também amplamente arraigada entre os trabalhadores. 
O processo de trabalho determina em grande parte as 
relações sociais vigentes na empresa. Contudo, geralmente as OETs não 
avaliam as implicações dessa determinação, abstraindo-as e colocando 
em primeiro plano o assunto da participação por meio da representação.9 
Entretanto, essa problemática encontra-se muito além 
da capacidade indutora do paradigma burocrático e da competência de 
análise das OETs. Na ordem social hodierna, os fatores de produção, 
força de trabalho, ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, bem 
como os circuitos de distribuição, circulação e consumo de mercadorias 
encontram-se estruturados em função da empresa capitalista, vale dizer, 
da organização ·burocrática. Dadas essas condições, compreende-se que 
seja altamente oneroso, problemático e incerto para as OETs lançaremse 
em projetos alternativos de organização do processo de trabalho. Em 
contrapartida, o funcionamento das OETs, sob o processo burocrático, 
não ap~nas entrava, como, também, pode fazer retroceder o 
desenvolvimento político-democrático dessas organizações. Isso ocorre 
porque; preserva-se part~ considerável dos elementos que são 
característicos à operação da empresa capitalista, tais como a 
impossibilidade dos trabalhadores tomarem decisões sobre o objeto 
imediato de trãbalho; o seu enquadramento em minuciosa e rígida divisão 
de tarefas; a reprodução de profissQes que decorrem da existência de 
um mercado de trabalho e da sua organização capitalista e vários outros 
aspectos que restririgem o desenvolvimento intelectual, cultural, político 
e técnico dos trabalhadores. 
9 De maneira geral, as OETs entendem que a mudança no regime de propriedade, a eleição de 
dirigentes e a decisão de questões estratégicas em assembléias gerais são suficientes para garantir 
a democratização das entidades. 
 
ORG&DEMO 
As tecnologias, em suas várias modalidades, como por 
exemplo máquinas e equipamentos, constituem-se em uma outra razão 
inibidora do desenvolvimento alternativo de processos de trabalho. Isto 
deve-se, primeiro, ao fato de que a maior parte das tecnologias em uso 
ainda necessitam do trabalho vivo enquanto força física ativa. Dessa 
forma, os trabalhadores encontram-se sujeitos à realização de tarefas 
manuais, fragmentadas e repetitivas, as quais consomem a maior parte 
de suas energias físicas e mentais. E, segundo, porque as tecnologias 
vêm sendo produzidas em função dos métodos de trabalho utilizados 
pelas empresas capitalistas. 
Quanto ao sistema educacional, observa-se que ele fonna 
as pessoas para competirem por empregos no mercado de trabalho. Por 
sua vez, esse mercado encontra-se, em parte, determinado pela divisão 
capitalista do trabalho que engendra segmentações e estratificações 
profissionais de várias ordens (Vieitez & Dal Ri, 2000). Essas características 
do contingente da força de trabalho fazem-se presentes nas OETs no 
momento mesmo em que os trabalhadores nelas ingressam. Porém, 
continuam a manifestar-se por força da influência desse mercado, mesmo 
depois que os trabalhadores passam para o estatuto de as~ociados. 
O perfil ocupacional e educacional dos membros das 
OETs é, assim, muito semelhante àquele da classe trabalhadora em geral. 
O nível cultural é baixo e mesmo os setores com qualificação acadêmica 
média e superior encontram-se despreparados para atuarem em 
empreendimentos nos quais a participação na tomada de decisões é 
vital. 
Essa contradição é observada pelas OETs que buscam 
superá-la por meio da criação de programas educacionais complementares 
ou alternativos. Esta é uma das tarefas que as OETs vêm realizando com 
relativo sucesso. 
Contudo, é de observar-se que esses programas 
educacionais, no que se refere ao aspecto profissional estrito senso, são 
freqüentemente convencionais, não incorporando nenhuma reflexão 
sobre as possíveis mudanças no processo de trabalho. 
 
ORG & DEMO 
Quanto à utilização de trabalho assalariado pelas OETs, 
verifica-se que uma parte significativa dessas organizações, notadamente 
no setor comercial e de serviços, emprega trabalho assalariado e não de 
forma meramente supletiva. Essa prática introduz, nas organizações, um 
fator capitalista que se encontra em oposição aos princípios básicos das 
OETs. Esse fator apresenta um potencial degenerativo que, somado a 
outras incongruências, pode levar à reconversão da organização em 
empresa convencional. 
A democracia representativa é a forma de participação 
predominante nas OETs. Embora esta constitua-se em uma ruptura em 
relação à estrutura de poder vigente nas empresas capitalistas, ,sendo, 
portanto, um dos pilares das OETs, esse procedimento não tem sido 
suficiente para garantir uma participação Inais alnpla de todos os membros 
na vida das empresas e nem tampouco para erradicar a cultura do 
assalariamento que sobrevive entre os associados, o que se reconhece 
como um dos óbices mais importantes ao desenvolvimento desses 
empreendimentos. 
As OETs possibilitam que a "massa" trabalhadora passe 
a ter nas mesmas uma participação política recorrente. Contudo, esse 
fato que em si mesmo constitui "um desses gonzos sobre os quais gira a 
história" (Thompson, 1967, p. 23); não chega a resolver totalmente o 
problema do controle dos trabalhadores sobre o sistema de produção 
de riquezas. 
A dificuldade dos trabalhadores para apropriarem-se 
cabalmente do controle dos sistemas de trabalho encontra-se relacionada 
também aos tipos de dirigentes e de dinâmicas de gestão que os próprios 
trabalhadores engendram e que serão denominados aqui, à falta de melhor 
designação, de direção por meio das lideranças, ativistas ou quadros. 
Esse tema, no passado, adquiriu notoriedade no 
movimento internacional dos trabalhadores por intermédio de acirrados 
debates a respeito de quais deveriam ser os princípios a presidir as 
relações entre vanguardas e massas (Lenin, 1966, Luxemburgo, 1968). 
 
ORG & DEMO 
As OETs também dão origem a uma camada de lideranças 
as quais acabam sendo indicadas ou eleitas para os diversos cargos 
diretivos e de representação. A gestão desenvolvida pelos quadros não 
é dé tipo burocrático. Porém, ela apresenta um problema fundamental, 
qual seja, esse tipo de gestão preserva em parte a dicotomÍa entre direção 
e corpo de associados. Além disso, essa dicotomia estrutural pode 
propiciar práticas que aumentam ainda mais a distância social e política 
entre os dirigentes e os membros das organizações. Essas práticas 
comumente materializam-se em centralismo, mandonismo, personalismo, 
perpetuação no poder e ausência de transparência, sem quese mencionem 
corrupções e outros problemas conexos. 
Por fim, subsistem as limitações advindas da escassa 
integração e cooperação entre as várias enlpresas. A ausência dessa 
integração mantém os empreendimentos atuando individualmente no 
mercado e, portanto, em condições iguais às de qualquer outra empresa. 
Na falta desse relacionamento, as OETs deixam de trocar experiências, 
de realizar negócios contratados entre si e de atuar como força coletiva 
organizada perante o setor público e privado, bem como de desenvolver 
projetos comuns e de acordo com os princípios cooperativistas. No 
entantó, o probiema principal é que, atuando individualmente no mercado 
capitalista, as OETs encontram-se plenamente sujeitas às determinações 
da lei do valor nas instâncias da circulação e consumo de mercadorias, 
enquanto que o princípio de cooperação entre cooperativas sugere 
relações sociais alternativas a essas. 
Aporte das Empresas AutogestionáriaslO 
Nos último~ vinte anos, empreendimentos econômicos 
que se reivindicam como autogestionários, vêm não apenas observando 
os princípios da ACI em sua prática, como também acrescentando 
elementos que aprofundam as relações democráticas no interior dessas 
entidades. Esses novos elementos podem ser sumariados nós seguintes 
procedimentos: 1) não utilização de trabalho assalariado; 2) modificações 
10 A idéia de autogestão, utilizada nesse artigo, refere-se tão somente àquela que se encontra nas 
organizações aqui consideradas. 
 
ORG&DEMO 
no processo de trabalho visando à superação da herança burocrática; 3) 
supressão de hierarquias e diminuição do papel atribuíndo a elas; 4) 
diminuição dos diferenciais existentes nas retiradas dos sócios; 5) 
instauração de formas de democracia direta. 
o uso que os empreendimentos autogestionários fazem 
do trabalho assalariado, quando este é utilizado, é de caráter supletivo, 
isto é, o número de empregados representa uma pequena fração em 
relação ao número total de sócios. Essa utilização é, na maioria das 
vezes, objeto de regulamentação por meio dos estatutos os quais, em 
geral, fixam o teto para a contratação de assalariados em 10 % do número 
total dos sócios. 
Observa-se nessas sociedades uma preocupação com as 
novas formas de estruturação do processo de trabalho. Embora os 
problemas inerentes a essa reestruturação dificultem sobremaneira o 
avanço desse processo, verifica-se a implementação de medidas nesse 
sentido e, tam~m, que muitas delas são análogas ou até mesmo idênticas 
àquelas observadas nas empresas tradicionais as quais a literatura 
denomina de novas/ormas de organização do tràbalho (NFOn. Dentre 
as NFOT mais relevantes, cite-se a formação de equipes de trabalho que 
passam a contar com graus variáveis de autonomia e a desempenhar 
funções diretivas. Contudo, as NFOT implementadas nas empresas de 
autogestão distinguem-se substantivamente de suas similares aplicadas 
nos empreendimentos tradicionais. Isto dá-se fundamentalmente pelo 
fato de que, nas organizações autogestionárias, a aplicação das NFOT 
tenta romper com os limites impostos pela separação entre as esferas da 
execução ou produção e as da administração ou planejamento. 
A redução dos escalões hierárquicos, bem tomo sua a 
redefinição segundo parâmetros que não os tipicamente burocráticos, 
ocorrem de modo mais significativo quando o processo de trabalho 
também está passando por modificações importantes. Contudo, é comum 
que a redução e relativa redefinição do sistema hierárquico ocorram 
mesmo quando a reestruturação do processo de trabalho é ainda 
embrionária. Porém, em qualquer das situações, o que se objetiva é o 
desenvolvimento de relações de trabalho baseadas não mais na 
 
ORG&DEMO 
subordinação, mas sim na igualdade, auto-responsabilidade e 
solidariedade. 
No que diz respeito à distribuição dos proventos dos 
sócios, as empresas de autogestão não são igualitaristas. Isto porque 
entendem que não é.possível ignorar totalmente as determinações 
educacionais e profissionais, advindas da ordem burocrática, ainda 
presentes na empresa e francamente dominantes no mercado de trabalho 
e na sociedade. Não obstante, é usual encontrar-se nessas empresas a 
implementação de políticas de distribuição de proventos caracterizada 
por diferenciais pequenos, geralmente definindo-se o valor do mais alto 
salário como o equivalente a três vezes ou, no máximo, quatro vezes o 
valor do menor. Ademais, essa postura fica reforçada pelo fato de que, 
quando há sobras, a tendência é distribuí-las igualitariamente entre os 
sócios. 
Porém, esses procedimentos não eliminam a distribuição 
desigualitária e a manutenção de certas práticas de exploração econômica 
efetuadas por uns trabalhadores sobre outros. Contudo, parecem criar, 
sob uma orientação democrática e autogestionária, um patamar adequado 
para o desenvolvimento econômico dos empreendimentos. 
Para finalizar, tendo os princípios até aqui expostos como 
pressupostos, cabe mencionar o esforço das cooperativas autogestionárias 
para construírem instâncias decisórias baseadas na democracia direta. A 
implantação dessa forma de poder parece ser exeqüível especialmente 
quando o número de sócios é pequeno e o coletivo de trabalhadores 
está disposto a realizar essa tarefa. Nesses casos, a democracia direta 
aparece como a forma de participação dominante ou mesmo como a 
única. Outra é a situação encontrada em empresas médias ou grandes, 
nas quais não parece viável que todos participem de tudo. Nestas, as 
instâncias de representação aparecem como ineludíveis. Além disso, como 
fazer para que as formas democráticas diretas não se limitem às poucas, 
complicadas e, não raro, esvaziadas assembléias gerais? 
Tanto quanto a reorganização dos processos de trabalho, 
a implementação de formas de democracia direta encontra-se em fase 
exploratória, mesmo porque não são tantos assim os exemplos existentes 
 
ORG&DEMO 
de empreendimentos autogestionários médios e grandes a partir dos 
quais se possa delinear uma tendência.11 
Em suma, a autogestão, ou o aprofundamento das 
práticas democráticas que historicamente constituem-se em uma tradição 
nas OETs, é um processo ainda de natureza experimental que se encontra 
basicamente em aberto. Trata-se de um fenômeno social complexo que 
envolve facetas de naturezas cultural, política, educacional, administrativa 
e econômica. Em uma palavra, um projeto que busca realizar a passagem 
da administração por meio dos quadros, ainda típica das OETs, para a 
administração coletiva. 
Conclusão 
A sociedade burguesa floresceu com o desenvolvimento 
de um mercado de trabalho livre e com a negação do monopólio político 
da nobreza que estava fundado na linhagem hereditária. A formação do 
mercado mundial e a generalização progressiva do trabalho assalariado 
revolucionaram a ordem do mundo. 
A burguesia suprimiu os privilégios estamentais. Mas só 
para substituí-los pelos privilégios de classe. Em sua origem, a política 
burguesa, tipicamente consubstanciada na democracia liberal, foi 
exclusividade de grupos proprietários e, em seguida, de modo 
crescentemente dominante, de grupos proprietários que se assentaram 
sobre a exploração do trabalho assalariado. 
A abertura desse regime político censitário à participação 
dos trabalhadores foi obra, basicamente, da ação política dos próprios 
trabalhadores, os quais, em virtude de sua situação de classe, defenderam 
a participação política como um direito universal. 
11 Entretanto, o igualitarismo também faz-se presente. Esta política é característica, por exemplo, 
de cooperativas integrantes da Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil 
ligada ao Movimento dos Sem Terra. Nos EUA, e em outros países também, há indicadores de 
que o igualitarismo retributivo, sobretudo nos empreendimentos de pequeno porte, tem um lugar 
que deve ser considerado. Ver Joyce Rothschild e J. Allen Whiu, El Lugar dei Trabajo 
cooperativo, 1991. 
 
ORG & DEMO 
Durante todo o transcurso da ordem social capitalista, 
desenvülveram-se as lutas populares que apresentaram ·caráter 
revolucionário, de resistência ou de reforma dos mais variados matizes. 
Essas lutas incluíram a liberdade para que os trabalhadores criassem 
com autonomia suas próprias organizações, uma vez que estas, 
terminantemente proibidas nos albores da sociedade burguesa, sofreram 
restrições ainda por séculos. Com a evolução do movimento democrático 
e popular, cünsubstanciaram-se e generalizaram-se por todo o sistema 
social, ainda que de modo notavelmente heterogêneo, os direitos civis, 
políticos e süciais (Marshall, 1967). 
o caráter democrático universal do movimento dos 
trabalhadüres tem uma base nas formas que assumiram as suas 
organizações as quais, como foi indicado, estruturaram-se segundo normas 
democráticas e coletivas. 12 
Na esfera das relações imediatas de trabalho, os direitos 
trabalhistas, igualmente heterügêneos por tüda a parte, füram também 
conquistas do müvimento demücrático e popular. Os sindicatüs e üs 
conselhos lutaram por melhores condições de trabalho e de vida, bem 
como pela ampliação <:los espaços de participação, nas empresas 
capitalistas. Entretanto, em geral, não negaram a propriedade privada 
dos meios de produção, o trabalho assalariado e, em última instância, 
não reivindicaram o poder na empresa. Nesse sentido, observa-se uma 
defasagem substantiva entre os espaços de participação conquistados 
no sistema político, parlamentar e aqueles existentes nas empresas, que 
continuam basicamente sob domínio absoluto dos capitalistas. 
Entretanto, numa outra vertente de resistência ao capital, 
foram criadas as OETs que se diferenciam dos empreendimentos 
capitalistas pelo, fato de que os trabalhadüres são, ao mesmo tempo, os 
12 O caráter democrático socialista ou democrático radical expressa-se no fato de que o movimento 
dos trabalhadores ou nega a ordem social como um todo, ou tende a criar dentro dela setores que 
escapam à natureza imanente da economia capitalista e da democracia liberal estrito senso 
consideradas. São exemplos desta tendência as próprias organizações dos trabalhadores, os direitos 
políticos das massas, a saúde pública, o ensino gratuito universal e outros que compõem os 
chamados direitos políticos e sociais, os quais a ordem liberal negou no passado e regateia no 
presente. 
 
ORG&DEMO 
proprietários e os detentores do poder. Este fenômeno tornou-se 
especialmente significativo nos últimos 30 anos em decorrência da 
multiplicação de diversas variantes de cooperativas de trabalho, bem 
como de outras formas jurídicas. 
As vertentes autogestionárias desses empreendimentos 
buscam avançar na democratização das relações de trabalho ao 
implementarem especialmente a democracia direta e novas formas de 
organização do processo de trabalho, bem como ao recusarem a utilização 
do trabalho assalariado. 
A partir dessa inflexão, parece possível visualizar uma 
nova qualidade para os processos internos de democratização e eficácia 
dessas organizações. Contudo, não se observa um movimento renovador, 
de vetor análogo, no que se refere à inserção desses empreendimentos 
no mercado. 
o preceito de cooperação entre cooperativas, presente 
na carta de princípios da ACI, não foi devidamente explorado nos planos 
prático ou reflexivo. As OETs mantêm-se na situação de unidades 
econômicas privadas, que se relacionam com os demais atores sociais 
por meio do intercâmbio de mercadorias como quaisquer outras empresas. 
Ainda que seja um problema de estatura histórica superar esta condição, 
é de supor-se, lógica e historicamente, que a condição de produtores 
singulares de mercadorias competindo no mercado não seja a situação 
adequada para o desenvolvimento de uma economia solidária ou social, 
o que faz com que esta característica se constitua muito provavelmente 
no elo mais frágil da teoria e prática cooperativista. Dessa forma, a 
construção de redes cooperativistas que não estejam simplesmente 
apoiadas sobre os procedimentos mercantis clássicos afigura-se como 
um dos maiores desafios ao desenvolvimento das cooperativas e, 
conseqüentemente, à formação de uma economia baseada em relações 
democráticas.13 
13 Este problema é aflorado em texto escrito pelo presidente da Fetrabalho -Federação das 
Cooperativas de Trabalho do Estado de São Paulo (Tesch, 1999, p. 43-53). 
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