domingo, 27 de outubro de 2013

Organizações de trabalho associado

VIRTUALIDADES POLÍTICO-SOCIAIS DAS ORGANIZAÇÕES DOS TRABALHADORES

Candido Giraldez VIEITEZ l
Neusa Maria DAL RI 2

Introdução

Na ordem social capitalista, a burocracia é a forma de
organização dominante. Embora a empresa seja a organização típica
desse modelo, a burocracia, sob diversas variantes, encontra-se presente
em praticamente todas as instâncias sociais, como, por exemplo, na
maneira como se organizam o Estado, as escolas, as igrejas ou as
sociedades de benemerência (Weber, 1963).

A força social desse paradigma é tão grande que o mesmo
aparece para os diversos atores sociais como a única forma possível de
organização. Deste modo, ele freqüentemente determina a prática social
mesmo daqueles atores que teriam razões para não o utilizar.

A forma burocrática de organização, embora dominante,
não é a única existente ou possíveL Desde os primórdios da sociedade
moderna, os trabalhadores, em sua luta de resistência ao capital, foram
criando entidades próprias cujos parâmetros constitutivos divergem
fundamentalmente dos que se encontram na burocracia.

Desta forma, neste trabalho procurar-se-á mostrar que:
1) as diferentes organizações criadas pelos trabalhadores apresentam
determinações constitutivas comuns, isto é, elementos de natureza
democrática que transcendem as categorias da burocracia; 2) essas
características aparecem também em entidades que têm um objetivo
econômico tais como cooperativas e empresas autogestionárias; 3) os

ORG & DEMO

I Professor Assistente Doutor da Faculdade de Filosofia e Ciências -Unesp -Campus de
Marília e Coordenador do Grupo de Pesquisa Organizações & Democracia.
2 Professora Assistente Doutora da Faculdade de Filosofia e Ciências -Unesp -Campus de
Marília e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Organizações & Democracia.



elementos ordenadores básicos dessas organizações econômicas
encontram-se preconizados na carta de princípios da Aliança Cooperativa
Internacional -ACI;3 4) nos últimos vinte anos, empreendimentos que
se apresentam como autogestionários vêm incorporando os princípios
clássicos da ACI e, ao mesmo tempo, acrescentando novos elementos
democrático-sociais em sua prática; 5) cooperativas de trabalhadores ou
empresas sob outras formas jurídicas, além de preservarem esses mesmos
princípios, apresentam um potencial social que transcende os critérios
ordenadores da economia capitalista e da democracia liberal.

As Organizações dos Trabalhadores (OTs)

As organizações engendradas pelos trabalhadores durante

o desenvolvimento do capitalismo podem ser divididas em dois grupos:
organizações de ajuda mútua, de luta política, ideológica, econômica e
social; e organizações econômicas.
No primeiro grupo encontram-se as sociedades literárias
e de correspondência, as associações de ajuda mútua, os sindicatos, os
diversos tipos de conselhos e os partidos políticos. No outro grupo temos
as várias modalidades de cooperativas e, mais recentemente, as empresas
autogestionárias, organizadas ou não sob a forma jurídica de cooperativas.

A determinações básicas de todas essas entidades, com
variações significativas referentes às particularidades de época histórica,
finalidade e lugar, são as seguintes: 1) os dirigentes são os próprios
trabalhadores; 2) os valores das subscrições e cotizações financeiras para
a afiliação às mesmas são compatíveis com os rendimentos dos
trabalhadores; 3) os estatutos e regimentos são elaborados e aprovados
pelo conjunto de associados, segundo princípios de igualdade e eqüidade
e por meio de práticas de discussão e deliberação coletivas; 4) em
princípio, estão abertas a todos os sujeitos sociais interessados, sem
discriminação de raça, religião, status social e gênero, resguardadas as
normas e finalidades; 5) a educação é vista como um fator de elevação

3 Trata-se da Associação internacional que congrega e orienta as ações de cooperativas de
diferentes matizes.


ORG&DEMO

do nível cultural e profissional dos associados, assim como um meio de
desenvolvimento da própria organização; 6) autonomia e independência
são valores primordiais; 7) postulam o desenvolvimento da solidariedade
entre os trabalhadores; 8) as entidades geram impostações e práticas
que transcendem seus objetivos específicos e colocam-se no âmbito do
desenvolvimento democrático geral da sociedade.

Características das organizações econômicas e das organizações
de luta

A subordinação do trabalho ao capital dá-se sob diversas
formas abrangendo os vários momentos do circuito econômico-social,
vale dizer, da produção, distribuição, circulação e consumo de
mercadorias. Ainda no período de formação do modo de produção
capitalista, os trabalhadores livres, destituídos de qualquer propriedade
mobiliária ou imobiliária, e os trabalhadores proprietários dos próprios
instrumentos de trabalho em escala artesanal, procuraram resistir a essa
subordinação criando para essa finalidade organizações próprias
(Thompson, 1977, p. 17-28).

As primeiras organizações de trabalhadores estiveram
voltadas para a ajuda mútua e a luta contra as condições subumanas de
trabalho e de vida impostas pelo capital. Subseqüentemente, o movimento
de oposição expandiu-se a outras esferas da atividade social.

Em 1844, os trabalhadores industriais da cidade de
Rochdale, na Inglaterra, fundaram uma organização comercial com o
objetivo de oferecer aos associados produtos de melhor qualidade a
preços mais baixos. Essa sociedade assim constituída era uma cooperativa
de consumidores que se tornou um marco na história do cooperativismo.
A notoriedade de Rochdale deve-se precipuamente ao fato de que inovou
em relação à tradição oweniana, enunciando os princípios que
viabilizariám o cooperativismo como atividade econômica e empresarial.
Os princípios de Rochdale (Cole, 1945, p. 74) são: 1) controle democrático
-uma pessoa, um voto; 2) porta aberta -livre adesão, entrada e saída
voluntárias; 3) juros limitados como remuneração do capital; 4) sobras


ORG&DEMO

proporcionais ao montante de compras do associado; 5) vendas à vista;
6) vendas de mercadorias de boa qualidade; 7) educação dos sócios; 8)
neutralidade política e religiosa.

Esses princípios foram adotados pela Aliança Cooperativa
Internacional que promoveu, através dos tempos, algumas modificações.
A versão mais recente da Carta de Principios da ACI4 foi aprovada no
Congresso de 1995, realizado em Manchester, Inglaterra, consistindo no
seguinte: 1) adesão voluntária e aberta; 2) controle democrático por
parte dos membros; 3) participação econômica dos associados; 4)
autonomia e independência; 5) educação, capacitação e informação; 6)
cooperação entre as cooperativas; 7) interesse pela comunidade.

Observa-se que o núcleo essencial da formulação de
Rochdale, corporificado nos princípios de números 1, 2 e 7, foi mantido.
O princípio de número 4 foi substituído pela proposição mais genérica
de "participação econômica dos associados". Os princípios de números
3, 5 e 6, que não apresentavam implicações importantes sobre os
parâmetros organizativos, foram suprimidos. O sétimo princípio da ACI,
"interesse pela comunidade", não estava presente em Rochdale. Por fim,

o princípio de "neutralidade política e religiosa" parece ter assumido a
forma de "autonomia e independência". Embora os termos dessas
formulações possam dar a impressão de conter significados díspares, na
verdade, são próximos. A expressão "neutralidade política e religiosa"
visava garantir a "autonomia e independência" da cooperativa diante de
agentes externos. O princípio não preconizava o apoliticismo, mas sim
uma posição de independência referente à ação política do Estado.5
4 DECLARACIÓN de la Alianza Cooperativa Internacional sobre la Identidad Cooperativa
aprobada en lVIanchester en el XXXI Congresso de la ACI. In: Revista de Debate sobre Ecollomía
Pública Social y Cooperativa, p.37-9.

5 Comentando o princípio de número oito de Rochdale, que aparentemente é tão estranho à
tradição operária e popular, Monzón Campos afirma que: "Dada a desconfiança mostrada por
Owen em relação às instituições do Estado burguês (já se comentou, por exemplo, sua
desconfiança do sufrágio universal), se compreenderá facilmente o sentido que em Owen tem o
princípio da 'neutralidade política' que na formulação roéhdaliana remete claramente de novo a
valores do socialismo associacionista, ao menos ao liderado por Robert Owen". J.L.M. Campos,
Las Cooperativas de Trabajo Asociado ell la Literatura Económica y ell los Hechos, p. 74.


ORG&DEMO

Os princípios da ACI atendem às especificidades
empresariais e econômicas próprias das cooperativas. Constituem-se em
uma tecnologia social que orienta a formação e o funcionamento das
cooperativas e que na práticR mostrou-se funcional.

Aparentemente, esses princípios não guardam nenhuma
semelhança com aqueles que regem outras entidades, como, por exemplo,
conselhos ou sindicatos. Porém, realizando-se um exame mais apurado,
obseIVa-se que esses princípios são, no essencial, os mesmos que norteiam
as demais organizações dos trabalhadores.

O quadro abaixo apresenta, de forma comparativa, os
princípios da ACI para o cooperativismo e as determinações básicas das
OTs.

QUADRO 1 -Comparação entre os princípios da ACI e as características
das OTs

rprfncípios da ACI Características Gerais das OTs
Voluntárias e abertas Abertas a todos, em princípio
Controle democrático, um homem um voto São dirigidas pelos próprios trabalhadores
Participação econômica dos membros
eqüidade e igualdade
com Cotizações e subscrições com baixos valores
Autonomia e independência Autonomia e independência
Educação, treinamento e informação Educação geral, politica e para o trabalho
Cooperação entre cooperativas Solidariedade
Interesse pela comunidade Visão inclusiva da sociedade e interesse por ela

Cotejando-se, sumariamente, as características das
organizações de ajuda mútua e de luta dos trabalhadores com os princípios
das organizações econômicas explicitados pela ACI, verifica-se o que
segue.

O controle democrático porparte dos membros garante
que os trabalhadores possam dirigir suas próprias entidades.

O preceito de adesão voluntária e aberta nega o caráter
discriminatório e de exclusão social sobre o qual erigem-se as organizações
burguesas e, em princípio, possibilita a inclusão de qualquer pessoa.


ORG&DEMO

A formulação educação, capacitação e informação revela
que a educação ilimitada dos trabalhadores constitui um quesito essencial
para o desenvolvimento e reprodução.de suas organizações, ao contrário
do que ocorre nas da burguesia que têm como pressuposto constitutivo
e funcional a educação estratificada.

o sexto princípio, cooperação entre cooperativas,
explicita o valor de cooperação e solidariedade historicamente
preconizado pelas organizações populares6 e oposto aos valores de
competição e exclusão promovidos pela burguesia.
O preceito interesse pela comunidade encontra-se no
seio das tradições operárias que tendem a desenvolver as suas atividades
procurando ligar-se com a sociedade no seu todo e tendo em vista o seu
desenvolvimento social e democrático.

O terceiro princípio, participação econômica dos
associados, reforça o caráter democrático da cooperativa, determinando
uma distribuição eqüitativa dos proventos e lançando as bases para a
definição da propriedade dos meios de produção como propriedade
social de um coletivo de trabalhadores. Além disso, o preceito de
contribuição eqüitativa dos membros ao patrimônio da cooperativa,
estabelece que ela seja compatível com os rendimentos da classe
trabalhadora, o que se encontra em consonância com o princípio geral
de baixos valores para a afiliação requeridos pelas demais organizações.

Conservação e mudança nas organizações econômicas dos
trábalhadores (OETs)

A burocracia é comumente entendida como um sistema
de poder e uma técnica operativa imprescindível ao funcionamento das
organizações.7 No entanto, neste trabalho, burocracia é compreendida

6 Entende-se por organizações populares aquelas que têm por sua base social as classes

subalternas, sobretudo os trabalhadores assalariados.

7 Nessa concepção, sobressaem características tais como a hierarquia, a especialização de funções,
a minuciosa divisão de tarefas, a competência, entre outras. Por uma questão de comodidade de
exposição, abstraem-se as várias configurações que a burocracia tem assumido historicamente,
como, por exemplo, o taylorismo. .


ORG&DEMO

primordialmente como um instrumento de dominação da classe burguesa,
ou seja, como um·conjunto de variáveis organizativas que propicia o
controle social e, portanto, a manutenção do poder de classe.

Considerada esta acepção, as OTs não podem ser
caracterizadas como organizações de tipo burocrático, pois, primeiro,
são engendradas e mantidas pelas classes trabalhadoras com o propósito
de promover a sua própria organização, identidade e autonomia e,
segundo, os seus elementos constitutivos apontam para a superação das
determinações de classe.

Não obstante esse fato primordial, é necessário
considerar, também, que as OTs formam-se a partir dos materiais históricos
presentes na sociedade capitalista. Assim, o fenômeno resultante dessa
situação traz em si mesmo uma contradição fundamental. De um lado,
as organizações erigem-se sobre princípios básiCos que se encontram
em oposição aos valores dominantes. De outro, encontram-se tangidas
pelas determinações das relações capitalistas de produção das quais
derivam. Dessa forma, o modelo burocrático, ou seja, as relações sociais
capitalistas rondam permanentemente essas entidades que variavelmente
dão origem a fenômenos semelhantes àqueles produzidos pela
burocracia.

Para este trabalho, no entanto, interessa estabelecer e
discutir as variáveis que incidem mais diretamente e de forma contraditória
sobre as organizações econômicas dos trabalhadores e que são as
seguintes: 1) organização do processo de trabalho; 2) tecnologias; 3)
divagens educacionais e profissionais; 4) utilização de trabalho
assalariado; 5) democracia representativa; 6) direção por meio dos quadros
ou lideranças; 7) ausência de integra'ção entre as entidades.

A forma jurídica de cooperativa ou associaçã08 altera
fundamentalm~nte o regime de trabalho suprimindo o assalariamento e
instituindo a figura da propriedade coletiva. No entanto, este fato por si

8 Há casos em que uma Associação é proprietária de um empreendimento no qual os trabalhadores
são os próprios mem~ros da Associação contratados sob o regime de Consolidação das Leis do
Trabalho -CLT (legislação que normatiza o trabalho assalariado ). Neste caso, porém, as
determinações dadas pelo regime de trabalho assalariado podem tornar-se puramente formais.


ORG&DEMO

só não modifica a organização do processo de trabalho, a qual diz respeito
ao modo como se realizam as tarefas numa empresa. Em geral, as OETs
utilizam-se dos mesmos métodos de organização do processo de trabalho
empregados pela empresa capitalista. São várias as razões que contribuem
para que isso ocorra e uma delas é que a concepção burocrática encontrase
também amplamente arraigada entre os trabalhadores.

O processo de trabalho determina em grande parte as
relações sociais vigentes na empresa. Contudo, geralmente as OETs não
avaliam as implicações dessa determinação, abstraindo-as e colocando
em primeiro plano o assunto da participação por meio da representação.9

Entretanto, essa problemática encontra-se muito além
da capacidade indutora do paradigma burocrático e da competência de
análise das OETs. Na ordem social hodierna, os fatores de produção,
força de trabalho, ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, bem
como os circuitos de distribuição, circulação e consumo de mercadorias
encontram-se estruturados em função da empresa capitalista, vale dizer,
da organização ·burocrática. Dadas essas condições, compreende-se que
seja altamente oneroso, problemático e incerto para as OETs lançaremse
em projetos alternativos de organização do processo de trabalho. Em
contrapartida, o funcionamento das OETs, sob o processo burocrático,
não ap~nas entrava, como, também, pode fazer retroceder o
desenvolvimento político-democrático dessas organizações. Isso ocorre
porque; preserva-se part~ considerável dos elementos que são
característicos à operação da empresa capitalista, tais como a
impossibilidade dos trabalhadores tomarem decisões sobre o objeto
imediato de trãbalho; o seu enquadramento em minuciosa e rígida divisão
de tarefas; a reprodução de profissQes que decorrem da existência de
um mercado de trabalho e da sua organização capitalista e vários outros
aspectos que restririgem o desenvolvimento intelectual, cultural, político
e técnico dos trabalhadores.

9 De maneira geral, as OETs entendem que a mudança no regime de propriedade, a eleição de
dirigentes e a decisão de questões estratégicas em assembléias gerais são suficientes para garantir
a democratização das entidades.


ORG&DEMO

As tecnologias, em suas várias modalidades, como por
exemplo máquinas e equipamentos, constituem-se em uma outra razão
inibidora do desenvolvimento alternativo de processos de trabalho. Isto
deve-se, primeiro, ao fato de que a maior parte das tecnologias em uso
ainda necessitam do trabalho vivo enquanto força física ativa. Dessa
forma, os trabalhadores encontram-se sujeitos à realização de tarefas
manuais, fragmentadas e repetitivas, as quais consomem a maior parte
de suas energias físicas e mentais. E, segundo, porque as tecnologias
vêm sendo produzidas em função dos métodos de trabalho utilizados
pelas empresas capitalistas.

Quanto ao sistema educacional, observa-se que ele fonna
as pessoas para competirem por empregos no mercado de trabalho. Por
sua vez, esse mercado encontra-se, em parte, determinado pela divisão
capitalista do trabalho que engendra segmentações e estratificações
profissionais de várias ordens (Vieitez & Dal Ri, 2000). Essas características
do contingente da força de trabalho fazem-se presentes nas OETs no
momento mesmo em que os trabalhadores nelas ingressam. Porém,
continuam a manifestar-se por força da influência desse mercado, mesmo
depois que os trabalhadores passam para o estatuto de as~ociados.

O perfil ocupacional e educacional dos membros das
OETs é, assim, muito semelhante àquele da classe trabalhadora em geral.
O nível cultural é baixo e mesmo os setores com qualificação acadêmica
média e superior encontram-se despreparados para atuarem em
empreendimentos nos quais a participação na tomada de decisões é
vital.

Essa contradição é observada pelas OETs que buscam
superá-la por meio da criação de programas educacionais complementares
ou alternativos. Esta é uma das tarefas que as OETs vêm realizando com
relativo sucesso.

Contudo, é de observar-se que esses programas
educacionais, no que se refere ao aspecto profissional estrito senso, são
freqüentemente convencionais, não incorporando nenhuma reflexão
sobre as possíveis mudanças no processo de trabalho.


ORG & DEMO

Quanto à utilização de trabalho assalariado pelas OETs,
verifica-se que uma parte significativa dessas organizações, notadamente
no setor comercial e de serviços, emprega trabalho assalariado e não de
forma meramente supletiva. Essa prática introduz, nas organizações, um
fator capitalista que se encontra em oposição aos princípios básicos das
OETs. Esse fator apresenta um potencial degenerativo que, somado a
outras incongruências, pode levar à reconversão da organização em
empresa convencional.

A democracia representativa é a forma de participação
predominante nas OETs. Embora esta constitua-se em uma ruptura em
relação à estrutura de poder vigente nas empresas capitalistas, ,sendo,
portanto, um dos pilares das OETs, esse procedimento não tem sido
suficiente para garantir uma participação Inais alnpla de todos os membros
na vida das empresas e nem tampouco para erradicar a cultura do
assalariamento que sobrevive entre os associados, o que se reconhece
como um dos óbices mais importantes ao desenvolvimento desses
empreendimentos.

As OETs possibilitam que a "massa" trabalhadora passe
a ter nas mesmas uma participação política recorrente. Contudo, esse
fato que em si mesmo constitui "um desses gonzos sobre os quais gira a
história" (Thompson, 1967, p. 23); não chega a resolver totalmente o
problema do controle dos trabalhadores sobre o sistema de produção
de riquezas.

A dificuldade dos trabalhadores para apropriarem-se
cabalmente do controle dos sistemas de trabalho encontra-se relacionada
também aos tipos de dirigentes e de dinâmicas de gestão que os próprios
trabalhadores engendram e que serão denominados aqui, à falta de melhor
designação, de direção por meio das lideranças, ativistas ou quadros.

Esse tema, no passado, adquiriu notoriedade no
movimento internacional dos trabalhadores por intermédio de acirrados
debates a respeito de quais deveriam ser os princípios a presidir as
relações entre vanguardas e massas (Lenin, 1966, Luxemburgo, 1968).


ORG & DEMO

As OETs também dão origem a uma camada de lideranças
as quais acabam sendo indicadas ou eleitas para os diversos cargos
diretivos e de representação. A gestão desenvolvida pelos quadros não
é dé tipo burocrático. Porém, ela apresenta um problema fundamental,
qual seja, esse tipo de gestão preserva em parte a dicotomÍa entre direção
e corpo de associados. Além disso, essa dicotomia estrutural pode
propiciar práticas que aumentam ainda mais a distância social e política
entre os dirigentes e os membros das organizações. Essas práticas
comumente materializam-se em centralismo, mandonismo, personalismo,
perpetuação no poder e ausência de transparência, sem quese mencionem
corrupções e outros problemas conexos.

Por fim, subsistem as limitações advindas da escassa
integração e cooperação entre as várias enlpresas. A ausência dessa
integração mantém os empreendimentos atuando individualmente no
mercado e, portanto, em condições iguais às de qualquer outra empresa.
Na falta desse relacionamento, as OETs deixam de trocar experiências,
de realizar negócios contratados entre si e de atuar como força coletiva
organizada perante o setor público e privado, bem como de desenvolver
projetos comuns e de acordo com os princípios cooperativistas. No
entantó, o probiema principal é que, atuando individualmente no mercado
capitalista, as OETs encontram-se plenamente sujeitas às determinações
da lei do valor nas instâncias da circulação e consumo de mercadorias,
enquanto que o princípio de cooperação entre cooperativas sugere
relações sociais alternativas a essas.

Aporte das Empresas AutogestionáriaslO
Nos último~ vinte anos, empreendimentos econômicos
que se reivindicam como autogestionários, vêm não apenas observando
os princípios da ACI em sua prática, como também acrescentando
elementos que aprofundam as relações democráticas no interior dessas
entidades. Esses novos elementos podem ser sumariados nós seguintes
procedimentos: 1) não utilização de trabalho assalariado; 2) modificações

10 A idéia de autogestão, utilizada nesse artigo, refere-se tão somente àquela que se encontra nas
organizações aqui consideradas.


ORG&DEMO

no processo de trabalho visando à superação da herança burocrática; 3)
supressão de hierarquias e diminuição do papel atribuíndo a elas; 4)
diminuição dos diferenciais existentes nas retiradas dos sócios; 5)
instauração de formas de democracia direta.

o uso que os empreendimentos autogestionários fazem
do trabalho assalariado, quando este é utilizado, é de caráter supletivo,
isto é, o número de empregados representa uma pequena fração em
relação ao número total de sócios. Essa utilização é, na maioria das
vezes, objeto de regulamentação por meio dos estatutos os quais, em
geral, fixam o teto para a contratação de assalariados em 10 % do número
total dos sócios.
Observa-se nessas sociedades uma preocupação com as
novas formas de estruturação do processo de trabalho. Embora os
problemas inerentes a essa reestruturação dificultem sobremaneira o
avanço desse processo, verifica-se a implementação de medidas nesse
sentido e, tam~m, que muitas delas são análogas ou até mesmo idênticas
àquelas observadas nas empresas tradicionais as quais a literatura
denomina de novas/ormas de organização do tràbalho (NFOn. Dentre
as NFOT mais relevantes, cite-se a formação de equipes de trabalho que
passam a contar com graus variáveis de autonomia e a desempenhar
funções diretivas. Contudo, as NFOT implementadas nas empresas de
autogestão distinguem-se substantivamente de suas similares aplicadas
nos empreendimentos tradicionais. Isto dá-se fundamentalmente pelo
fato de que, nas organizações autogestionárias, a aplicação das NFOT
tenta romper com os limites impostos pela separação entre as esferas da
execução ou produção e as da administração ou planejamento.

A redução dos escalões hierárquicos, bem tomo sua a
redefinição segundo parâmetros que não os tipicamente burocráticos,
ocorrem de modo mais significativo quando o processo de trabalho
também está passando por modificações importantes. Contudo, é comum
que a redução e relativa redefinição do sistema hierárquico ocorram
mesmo quando a reestruturação do processo de trabalho é ainda
embrionária. Porém, em qualquer das situações, o que se objetiva é o
desenvolvimento de relações de trabalho baseadas não mais na


ORG&DEMO

subordinação, mas sim na igualdade, auto-responsabilidade e
solidariedade.

No que diz respeito à distribuição dos proventos dos
sócios, as empresas de autogestão não são igualitaristas. Isto porque
entendem que não é.possível ignorar totalmente as determinações
educacionais e profissionais, advindas da ordem burocrática, ainda
presentes na empresa e francamente dominantes no mercado de trabalho
e na sociedade. Não obstante, é usual encontrar-se nessas empresas a
implementação de políticas de distribuição de proventos caracterizada
por diferenciais pequenos, geralmente definindo-se o valor do mais alto
salário como o equivalente a três vezes ou, no máximo, quatro vezes o
valor do menor. Ademais, essa postura fica reforçada pelo fato de que,
quando há sobras, a tendência é distribuí-las igualitariamente entre os
sócios.

Porém, esses procedimentos não eliminam a distribuição
desigualitária e a manutenção de certas práticas de exploração econômica
efetuadas por uns trabalhadores sobre outros. Contudo, parecem criar,
sob uma orientação democrática e autogestionária, um patamar adequado
para o desenvolvimento econômico dos empreendimentos.

Para finalizar, tendo os princípios até aqui expostos como
pressupostos, cabe mencionar o esforço das cooperativas autogestionárias
para construírem instâncias decisórias baseadas na democracia direta. A
implantação dessa forma de poder parece ser exeqüível especialmente
quando o número de sócios é pequeno e o coletivo de trabalhadores
está disposto a realizar essa tarefa. Nesses casos, a democracia direta
aparece como a forma de participação dominante ou mesmo como a
única. Outra é a situação encontrada em empresas médias ou grandes,
nas quais não parece viável que todos participem de tudo. Nestas, as
instâncias de representação aparecem como ineludíveis. Além disso, como
fazer para que as formas democráticas diretas não se limitem às poucas,
complicadas e, não raro, esvaziadas assembléias gerais?

Tanto quanto a reorganização dos processos de trabalho,
a implementação de formas de democracia direta encontra-se em fase
exploratória, mesmo porque não são tantos assim os exemplos existentes


ORG&DEMO

de empreendimentos autogestionários médios e grandes a partir dos
quais se possa delinear uma tendência.11

Em suma, a autogestão, ou o aprofundamento das
práticas democráticas que historicamente constituem-se em uma tradição
nas OETs, é um processo ainda de natureza experimental que se encontra
basicamente em aberto. Trata-se de um fenômeno social complexo que
envolve facetas de naturezas cultural, política, educacional, administrativa
e econômica. Em uma palavra, um projeto que busca realizar a passagem
da administração por meio dos quadros, ainda típica das OETs, para a
administração coletiva.

Conclusão

A sociedade burguesa floresceu com o desenvolvimento
de um mercado de trabalho livre e com a negação do monopólio político
da nobreza que estava fundado na linhagem hereditária. A formação do
mercado mundial e a generalização progressiva do trabalho assalariado
revolucionaram a ordem do mundo.

A burguesia suprimiu os privilégios estamentais. Mas só
para substituí-los pelos privilégios de classe. Em sua origem, a política
burguesa, tipicamente consubstanciada na democracia liberal, foi
exclusividade de grupos proprietários e, em seguida, de modo
crescentemente dominante, de grupos proprietários que se assentaram
sobre a exploração do trabalho assalariado.

A abertura desse regime político censitário à participação
dos trabalhadores foi obra, basicamente, da ação política dos próprios
trabalhadores, os quais, em virtude de sua situação de classe, defenderam
a participação política como um direito universal.

11 Entretanto, o igualitarismo também faz-se presente. Esta política é característica, por exemplo,
de cooperativas integrantes da Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil
ligada ao Movimento dos Sem Terra. Nos EUA, e em outros países também, há indicadores de
que o igualitarismo retributivo, sobretudo nos empreendimentos de pequeno porte, tem um lugar
que deve ser considerado. Ver Joyce Rothschild e J. Allen Whiu, El Lugar dei Trabajo
cooperativo, 1991.


ORG & DEMO

Durante todo o transcurso da ordem social capitalista,
desenvülveram-se as lutas populares que apresentaram ·caráter
revolucionário, de resistência ou de reforma dos mais variados matizes.
Essas lutas incluíram a liberdade para que os trabalhadores criassem
com autonomia suas próprias organizações, uma vez que estas,
terminantemente proibidas nos albores da sociedade burguesa, sofreram
restrições ainda por séculos. Com a evolução do movimento democrático
e popular, cünsubstanciaram-se e generalizaram-se por todo o sistema
social, ainda que de modo notavelmente heterogêneo, os direitos civis,
políticos e süciais (Marshall, 1967).

o caráter democrático universal do movimento dos
trabalhadüres tem uma base nas formas que assumiram as suas
organizações as quais, como foi indicado, estruturaram-se segundo normas
democráticas e coletivas. 12
Na esfera das relações imediatas de trabalho, os direitos
trabalhistas, igualmente heterügêneos por tüda a parte, füram também
conquistas do müvimento demücrático e popular. Os sindicatüs e üs
conselhos lutaram por melhores condições de trabalho e de vida, bem
como pela ampliação <:los espaços de participação, nas empresas
capitalistas. Entretanto, em geral, não negaram a propriedade privada
dos meios de produção, o trabalho assalariado e, em última instância,
não reivindicaram o poder na empresa. Nesse sentido, observa-se uma
defasagem substantiva entre os espaços de participação conquistados
no sistema político, parlamentar e aqueles existentes nas empresas, que
continuam basicamente sob domínio absoluto dos capitalistas.

Entretanto, numa outra vertente de resistência ao capital,
foram criadas as OETs que se diferenciam dos empreendimentos
capitalistas pelo, fato de que os trabalhadüres são, ao mesmo tempo, os

12 O caráter democrático socialista ou democrático radical expressa-se no fato de que o movimento
dos trabalhadores ou nega a ordem social como um todo, ou tende a criar dentro dela setores que
escapam à natureza imanente da economia capitalista e da democracia liberal estrito senso
consideradas. São exemplos desta tendência as próprias organizações dos trabalhadores, os direitos
políticos das massas, a saúde pública, o ensino gratuito universal e outros que compõem os
chamados direitos políticos e sociais, os quais a ordem liberal negou no passado e regateia no
presente.


ORG&DEMO

proprietários e os detentores do poder. Este fenômeno tornou-se
especialmente significativo nos últimos 30 anos em decorrência da
multiplicação de diversas variantes de cooperativas de trabalho, bem
como de outras formas jurídicas.

As vertentes autogestionárias desses empreendimentos
buscam avançar na democratização das relações de trabalho ao
implementarem especialmente a democracia direta e novas formas de
organização do processo de trabalho, bem como ao recusarem a utilização
do trabalho assalariado.

A partir dessa inflexão, parece possível visualizar uma
nova qualidade para os processos internos de democratização e eficácia
dessas organizações. Contudo, não se observa um movimento renovador,
de vetor análogo, no que se refere à inserção desses empreendimentos
no mercado.

o preceito de cooperação entre cooperativas, presente
na carta de princípios da ACI, não foi devidamente explorado nos planos
prático ou reflexivo. As OETs mantêm-se na situação de unidades
econômicas privadas, que se relacionam com os demais atores sociais
por meio do intercâmbio de mercadorias como quaisquer outras empresas.
Ainda que seja um problema de estatura histórica superar esta condição,
é de supor-se, lógica e historicamente, que a condição de produtores
singulares de mercadorias competindo no mercado não seja a situação
adequada para o desenvolvimento de uma economia solidária ou social,
o que faz com que esta característica se constitua muito provavelmente
no elo mais frágil da teoria e prática cooperativista. Dessa forma, a
construção de redes cooperativistas que não estejam simplesmente
apoiadas sobre os procedimentos mercantis clássicos afigura-se como
um dos maiores desafios ao desenvolvimento das cooperativas e,
conseqüentemente, à formação de uma economia baseada em relações
democráticas.13
13 Este problema é aflorado em texto escrito pelo presidente da Fetrabalho -Federação das
Cooperativas de Trabalho do Estado de São Paulo (Tesch, 1999, p. 43-53).



Referências Bibliográficas

CAMPOS, J. L. M. Las cooperativas de trabajo asociado en la literatura
economicay en los hechos. Madrid: Ministerio de Trabajo y Seguridad
Social, 1989.

COLE, G. D. H. A century ofco-operation. Manchester, 1945.

DAL RI, Neusa Maria. (Org). Economia solidária :0 desafio da
democratização das relações de trabalho. São Paulo: Arte & Ciência,
1999.

DECLARACIÓN de la Alianza. Cooperativa Internacional. Revista de Debate
sobre Economía Pública Social y Cooperativa. Número extraordinario:
V Conferencia Europea de la Economia Social. Madrid, CIRIEC, n. 19,

p. 37-9, oct., 1995.
JACOBY, H. La burocratización dei mundo. Madrid: Siglo Veintiuno, 1972.
LUXEMBURGO, R. Socialismo e liberdade. Rio de Janeiro: Forum, 1968.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio deJaneiro: Zahar,
1967.
ROTHSCHILD,)., WHITT, J. A. Ellugardel trabajo cooperativo. Madrid:
Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991.

TESCH, W. Identidade e desenvolvimento da economia social. In: DAL
RI, N. M. (Org.) Economia solidária: o desafio da democratização
das relações de trabalho. São Paulo: Arte & Ciência, 1999.
THERBORN, G. ?Cómo domina la clase dominante? Madrid: Siglo
Veintiuno, 1979.

THOMPSON, E. P. Laformación histórica de la clase obrera. Barcelona:
Laia, 1967.

VIElTEZ, C. G., DAL RI, N. M. A educação nas organizações democráticas.
In: DAL RI, N. M., MARRACH, S. A. A. (Org). Desafios da educação
dofim do século. Marília: Unesp-Marília-Publicações, 2000. p. 11-24.

WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.


In
Revista Org & Demo: Marília, São Paulo, 2000. Vol.1, nº 1, pp 53-69
http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/orgdemo/article/viewFile/459/358

Nenhum comentário:

Postar um comentário