sexta-feira, 10 de abril de 2015

'Lei da terceirização é a maior derrota popular desde o golpe de 64'




por Wanderley Preite Sobrinho


Especialista em sociologia do trabalho, Ruy Braga traça um cenário delicado para
os próximos quatro anos: salários 30% mais baixos para 18 milhões de pessoas.
Até 2020, a arrecadação federal despencaria, afetando o consumo e os programas
de distribuição de renda. De um lado, estaria o desemprego. De outro, lucros
desvinculados do aumento das vendas. Para o professor da Universidade de São
Paulo (USP), a aprovação do texto base do Projeto de Lei 4330/04, que facilita a
terceirização de trabalhadores, completa o desmonte dos direitos trabalhistas
iniciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na década de 90. “Será a
maior derrota popular desde o golpe de 64”, avalia o professor em entrevista a
CartaCapital.

Embora o projeto não seja do governo, Braga não poupa a presidenta e o PT pelo
cenário político que propiciou sua aprovação. Ele cita as restrições ao Seguro
Desemprego, sancionadas pelo governo no final de 2014, como o combustível usado
pelo PMDB para engatar outras propostas desfavoráveis ao trabalhador, e ironiza:
“Esse projeto sela o fim do governo do PT e o início do governo do PMDB. Dilma
está terceirizando seu mandato”.

Leia a entrevista completa:

CartaCapital: Uma lei para regular o setor é mesmo necessária?

Ruy Braga: Não. A Súmula do TST [Tribunal Superior do Trabalho] pacificou na
Justiça o consenso de que não se pode terceirizar as atividades-fim. O que
acontece é que as empresas não se conformam com esse fato. Não há um problema
legal. Já há regulamentação. O que existe são interesses de empresas que desejam
aumentar seus lucros.

CC: Qual a diferença entre atividade-meio e atividade-fim?

RB: Uma empresa é composta por diferentes grupos de trabalhadores. Alguns cuidam
do produto ou serviço vendido pela companhia, enquanto outros gravitam em torno
dessa finalidade empresarial. Em uma escola, a finalidade é educar. O professor
é um trabalhador-fim. Quem mexe com segurança, limpeza e informática, por
exemplo, trabalha com atividades-meio.

CC: O desemprego cai ou aumenta com as terceirizações?

RB: O desemprego aumenta. Basta dizer que um trabalhador terceirizado trabalha
em média três horas a mais. Isso significa que menos funcionários são
necessários: deve haver redução nas contratações e prováveis demissões.

CC: Quantas pessoas devem perder a estabilidade?

RB: Hoje o mercado formal de trabalho tem 50 milhões de pessoas com carteira
assinada. Dessas, 12 milhões são terceirizadas. Se o projeto for transformado em
lei, esse número deve chegar a 30 milhões em quatro ou cinco anos. Estou
descontando dessa conta a massa de trabalhadores no serviço público, cuja
terceirização é menor, as categorias que de fato obtêm representação sindical
forte, que podem minimizar os efeitos da terceirização, e os trabalhadores
qualificados.

CC: Por que os trabalhadores pouco qualificados correm maior risco?

RB: O mercado de trabalho no Brasil se especializou em mão de obra
semiqualificada, que paga até 1,5 salário mínimo. Quando as empresas
terceirizam, elas começam por esses funcionários. Quando for permitido à
companhia terceirizar todas as suas atividades, quem for pouco qualificado
mudará de status profissional.

CC: Como se saíram os países que facilitaram as terceirizações?

RB: Portugal é um exemplo típico. O Banco de Portugal publicou no final de 2014
um estudo informando que, de cada dez postos criados após a flexibilização, seis
eram voltados para estagiários ou trabalho precário. O resultado é um aumento
exponencial de portugueses imigrando. Ao contrário do que dizem as empresas,
essa medida fecha postos, diminui a remuneração, prejudica a sindicalização de
trabalhadores, bloqueia o acesso a direitos trabalhistas e aumenta o número de
mortes e acidentes no trabalho porque a rigidez da fiscalização também é menor
por empresas subcontratadas.

CC: E não há ganhos?

RB: Há, o das empresas. Não há outro beneficiário. Elas diminuem encargos e
aumentam seus lucros.

CC: A arrecadação de impostos pode ser afetada?

RB: No Brasil, o trabalhador terceirizado recebe 30% menos do que aquele
diretamente contratado. Com o avanço das terceirizações, o Estado naturalmente
arrecadará menos. O recolhimento de PIS, Cofins e do FGTS também vão reduzir
porque as terceirizadas são reconhecidas por recolher do trabalhador mas não
repassar para a União. O Estado também terá mais dificuldade em fiscalizar a
quantidade de empresas que passará a subcontratar empregados. O governo sabe
disso.

CC: Por que a terceirização aumenta a rotatividade de trabalhadores?

RB: As empresas contratam jovens, aproveitam a motivação inicial e aos poucos
aumentam as exigências. Quando a rotina derruba a produtividade, esses
funcionários são demitidos e outros são contratados. Essa prática pressiona a
massa salarial porque a cada demissão alguém é contratado por um salário menor.
A rotatividade vem aumentando ano após ano. Hoje, ela está em torno de 57%, mas
alcança 76% no setor de serviços. O Projeto de Lei 4330 prevê a chamada
"flexibilização global", um incentivo a essa rotatividade.

CC: Qual o perfil do trabalhador que deve ser terceirizado?

RB: Nos últimos 12 anos, o público que entrou no mercado de trabalho é composto
por: mulheres (63%), não brancos (70%) e jovens. Houve um avanço de contratados
com idade entre 18 e 25 anos. Serão esses os maiores afetados. Embora os últimos
anos tenham sido um período de inclusão, a estrutura econômica e social
brasileira não exige qualificações raras. O perfil dos empregos na
agroindústria, comércio e indústria pesada, por exemplo, é menos qualificado e
deve sofrer com a nova lei porque as empresas terceirizam menos seus
trabalhadores qualificados.

CC: O consumo alavancou a economia nos últimos anos. Ele não pode ser afetado?

RB: Essa mudança é danosa para o consumo, o que inevitavelmente afetará a
economia e a arrecadação. Com menos impostos é provável que o dinheiro para
transferência de renda também diminua.

CC: Qual a responsabilidade do PT e do governo Dilma por essa derrota na Câmara?

RB: O governo inaugurou essa nova fase de restrição aos direitos trabalhistas.
No final de 2014, o governo editou as medidas provisórias 664 e 665, que
endureceram o acesso ao Seguro Desemprego, por exemplo. Evidentemente que a base
governista - com PMDB e PP - iria se sentir mais à vontade em avançar sobre mais
direitos. Foi então que [o presidente da Câmara] Eduardo Cunha resgatou o PL
4330 do Sandro Mabel, que nem é mais deputado.

CC: Para um partido de esquerda, essa derrota na Câmara pode ser considerada a
maior que o PT já sofreu?

RB: Eu diria que, se esse projeto se tornar lei, será a maior derrota popular
desde o golpe de 64 e o maior retrocesso em leis trabalhistas desde que o FGTS
foi criado, em 1966. Essa é a grande derrota dos trabalhadores nos últimos anos.
Ela sela o fim do governo do PT e marca o início do governo do PMDB. A Dilma
está terceirizando seu mandato.

CC: A pressão do mercado era mesmo incontornável?

RB: Dilma deixou de ser neodesenvolvimentista a partir do segundo ano de seu
primeiro mandato. Seu governo privatizou portos, aeroportos, intensificou a
liberação de crédito para projetos duvidosos e agora está fazendo de tudo para
desonerar o custo do trabalho. O governo se voltou contra interesses históricos
dos trabalhadores. O que eu vejo é a intensificação de um processo e não uma
mudança de rota. Se havia alguma dúvida, as pessoas agora se dão conta de que o
governo está rendido ao mercado financeiro.

CC: A terceirização era um dos assuntos preferidos nos anos 90, mas não passou.
Não é contraditório que isso aconteça agora?

RB: O Fernando Henrique tentou acabar com a CLT [Consolidação das Leis do
Trabalho] por meio de uma reforma trabalhista que não foi totalmente aprovada.
Ele conseguiu passar a reforma previdenciária do setor privado e a
regulamentação de contratos por tempo determinado. O governo Lula aprovou a
reforma previdenciária do setor público e agora, com anos de atraso, o segundo
governo Dilma conclui a reforma iniciada por FHC.

CC: Mas a CLT não protege também o trabalhador terceirizado?

RB: A proteção da CLT é formal, mas não acontece no mundo real. Quem é
terceirizado, além de receber menos, tem dificuldade em se organizar
sindicalmente porque 98% dos sindicatos que representam essa classe protegem as
empresas em prejuízo dos trabalhadores. Um simples dado exemplifica: segundo o
Ministério Público do Trabalho, das 36 principais libertações de trabalhadores
em situação análoga a de escravos em 2014, 35 eram funcionários terceirizados.

CC: A bancada patronal tem 221 parlamentares, segundo o Diap (Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar). Existe alguma relação entre o tão
falado fim do financiamento privado de campanha e a aprovação desse projeto?

RB: Não há a menor dúvida. Hoje em dia é muito simples perceber o que acontece
no País. Para eleger um vereador em São Paulo paga-se 4 milhões de reais. Para
se eleger deputado estadual, são 10 milhões. Quem banca? Quem financia cobra
seus interesses, e essa hora chegou. Enquanto o presidente da Fiesp [Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo], Paulo Skaf, ficou circulando no
Congresso durante os últimos dois dias, dando entrevista, conversando com
deputados e defendendo o projeto, sindicalistas levavam borrachada da polícia.
Esse é o retrato do Congresso brasileiro hoje: conservador, feito de
empresários, evangélicos radicais e bancada da bala.

In
Carta Capital
http://www.cartacapital.com.br/economia/lei-da-terceirizacao-e-a-maior-derrota-popular-desde-o-golpe-de-64-2867.html
10/4/2015

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