quinta-feira, 9 de abril de 2015

O machado da guerra, o anzol da paz e os crápulas transparentes




O machado da guerra, o anzol da paz e os crápulas transparentes

– Venezuela e Colômbia, dois processos associados na estratégia regional
do Império

por Jorge Beinstein [*]

Seria errado subestimar as especificidades dos casos colombiano e
venezuelano, mas também seria grave limitar-nos às tramas nacionais ou
dotá-las de uma autonomia excessiva. Muito já se escreveu acerca da
globalização do capitalismo, por vezes para diluir tudo numa dinâmica
supranacional esmagadora – mas em certos casos com um resultado oposto,
onde o global surge como uma referência abstracta, inapreensível ou então
a operar como uma força exógena misteriosa sobre o aparentemente
"concreto" ou "tangível", o que está ao alcance da mão, tão complicado e
"nacional" que só pode ser entendido pelos que estão submersos nessa
realidade. Então exagera-se o nível de poder real das oligarquias e máfias
locais, de suas supostas fracções "reaccionárias" ou "civilizadas", de
suas contradições em países como a Colômbia onde estão instaladas bases
militares do Império, ou naqueles como a Colômbia e Venezuela onde
proliferam os negócios transnacionalizados financeiros, mediáticos,
narcos, comerciais, etc e onde importantes sectores sociais altos e médios
são do ponto de vista político-cultural simples prolongamentos coloniais
da sociedade estado-unidense.

Os Estados Unidos desenvolvem actualmente uma guerra global cujo fracasso
significaria o fim do Império. A lógica da reprodução do parasitismo
norte-americano leva a super-potência a uma multiplicação de ofensivas à
escala planetária, destinadas a quebrar os obstáculos que travam seu
projecto de super-exploração devastadora dos recursos naturais e humanos
do conjunto da periferia. Os dirigentes do Império consideram que essa
pilhagem desaceleraria a decadência em curso, impediria o colapso do
dólar, baixaria drasticamente os custos de mercadorias e salários
coloniais, engordando os lucros das suas empresas, mantendo seus mercados
internos cada vez mais concentrados.

A América Latina e o Caribe constituem um espaço decisivo do referido
projecto, sua recolonização integral é uma peça chave da uma ofensiva
planetária cuja implementação na região abrange um amplo leque de
operações convergentes. Trata-se de uma mega estratégia flexível que
inclui as desestabilizações de média intensidade no Brasil e Argentina, a
intervenção directa encoberta na Colômbia, os golpes de estado em Honduras
e Paraguai, a tentativa de desestabilização de alta intensidade apontando
para a intervenção militar na Venezuela, o ensaio de "abraço de urso"
procurando desarticular Cuba, a instalação de postos avançados militares
no Peru, etc. O objectivo final é a transformação do pátio traseiro
latino-americano numa região caótica, sem barreiras estatais nem
rebeldias significativas à sua dominação.

A exacerbação das intervenções imperialistas coincide com (e busca
aproveitar a) o declínio dos governos progressistas cujas dificuldades
abrem brechas que facilitam essas investidas. A agudização da crise global
impacta a América Latinas, as altas taxas de crescimento económico ficaram
no passado, as contradições sociais agudizam-se em põem em xeque os
equilíbrios progressistas que demonstram sua fragilidade. Um bom exemplo
disso é o Brasil, onde o governo inflecte para a direita a sua política
económica causando descontentamento popular sem por isso acalmar o apetite
das elites e das classes médias reaccionárias, cada vez mais
reaccionárias, que procuram a revanche rumo à hiper-concentração de
rendimentos e a submissão integral dos pobres.

É dentro desse contexto global-regional que devem ser enquadradas as
operações imperiais em curso sobre a Colômbia e a Venezuela.

O machado da guerra

A Venezuela surge como o objectivo central do capítulo latino-americano
da guerra energética global dos Estados Unidos. A república bolivariana
conta com 20% das reservas mundiais de petróleo convencional, o primeiro
lugar global. A confrontação deste facto com a informação sobre as
reservas limitadas e em declínio a médio prazo do petróleo convencional e
do xisto nos Estados Unidos seria suficiente para medir a urgência do
Império em devorar esse bocado. A propaganda acerca das supostas imensas
reservas norte-americanas de petróleo de xisto acabou por se chocar com a
dura realidade: recentemente a Agência de Energia dos Estados Unidos
informou que antes do fim da presente década a produção norte-americana de
petróleo de xisto chegará ao seu nível máximo, a seguir ao qual começará a
decair. Na realidade a crise desse sector já começou, impulsionada pela
baixa do preço do petróleo que reduziu sensivelmente seus lucros
(tornando-os negativos num número crescente de casos).

Mas não se trata só de petróleo. Apesar da demonização mediática
internacional do processo venezuelano este continua a operar como um
incentivo importante para os movimentos populares da região, para os
comportamentos estatais independentes quanto à dominação estado-unidense.
Apesar do desaparecimento de Chavez, a Venezuela continua a ser uma peça
decisiva de articulações rebeldes diante do poder imperial, como o ALBA e
outras iniciativas regionais em direcção a outros espaços da periferia.

A "Ordem Executiva" de Obama contra a Venezuela, declarando-a uma
"ameaça extraordinária" à segurança nacional dos Estados Unidos [NR] ,
não é um exercício retórico e sim um passo decisivo de uma ofensiva que
procura encurralar o governo e as forças armadas venezuelanas, estimular
a oposição, mobilizando seus grupos conspirativos mais radicais. Com essa
decisão Washington dá um salto qualitativo na deslegitimação do estado
venezuelano perante o Ocidente, abrindo desse modo um capítulo de
intervenções directas e encobertas, de reconhecimentos legais ou de facto
a "representantes da oposição", de apoio a possíveis levantamentos
armados, a uma agressão do exército colombiano, etc, ou seja, a cenários
conhecidos em outros lugares da periferia como a Síria ou a Líbia. Essa é
a linha de acção principal.

Não faltam funcionários de governos progressistas latino-americanos –
inclusive do próprio governo venezuelano – inclinados a ver o lado
moderado da tormenta. Supõem eles que a declaração imperial tende antes a
pressionar a Venezuela a fim de empurrá-la astutamente para a direita,
procurando a instalação de um "governo de unidade nacional" (mistura
pragmática de chavistas razoáveis e opositores conciliadores) amigo ou
menos inimigo dos Estados Unidos. Essa ilusão na realidade também faz
parte da estratégia estado-unidense, golpeando por um lado e oferecendo ao
mesmo tempo uma saída pacífica, tentando assim abrandar o campo inimigo,
criar fissuras e deserções, o jogo faz parte do manual para principiantes
em guerras coloniais.

Washington sabe muito bem que a longo prazo não há alternativa suave para
a Venezuela. Qualquer inflexão para a direita, brutal ou gradual, geraria
uma concentração de rendimentos acompanhada inevitavelmente por revanches
sociais das classes superiores que automaticamente desencadeariam
rebeliões populares. O processo bolivariano não trouxe a transição
socialista prometida, não quebrou a espinha dorsal do capitalismo
(descolagem imprescindível do caminho pós capitalista), afundou-se numa
confusa e interminável "transição" rumo à transição anunciada, enchendo
suas cabeças de esperanças, forjando identidade popular, auto-estima dos
humildes. Isso não pode ser apagado facilmente.

Assim como na Venezuela existe um fascismo maciço nas classes médias e
altas que só se conforma com uma contra-revolução sangrenta, também existe
um chavismo profundo nas classes baixas que aprendeu a odiar o
capitalismo, os Estados Unidos, que sabe combater. O chavismo não esmagou
o país burguês impondo o país popular e socialista, a resultantes da sua
condução desordenada foi a criação de dois países incompatíveis entre si.

Para Washington trata-se de conquistar a Venezuela, nem mais nem menos.
Não para instaurar uma nova ordem colonial e sim para parasitar
livremente sobre o caos, para saquear riquezas navegando no meio da
desarticulação violenta de uma sociedade estrategicamente submetida. Para
visualizar o futuro venezuelano desejado por Washington não é preciso ler
velhos textos acerca da ascensão do fascismo na Itália ou dos neofascismos
militares mais recentes da América Latina – basta dar uma olhadela ao
Iraque ou à Líbia de hoje.

O anzol da paz

Uma peça chave na conquista da Venezuela é o exército colombiano, a força
armada regular com maior experiência de combate da região, com 460 mil
pessoas (incluindo as três armas mais a polícia nacional). Trata-se de
longe do maior aliado militar com que contam os Estados Unidos na América
Latina, útil tanto para a realização de incursões rápidas como para uma
invasão em grande escala e como aparelho de retaguarda no caso de uma
guerra prolongada na Venezuela. A estas forças profissionais é preciso
acrescentar várias dezenas de milhares de paramilitares operacionais no
imediato ou de recrutamento fácil.

Mas essa força agressiva potencial está manietada no território
colombiano por uma insurgência que não pôde ser subjugada depois de meio
século de repressão e que, no caso de uma guerra civil ou de invasão da
Venezuela, poderia converter-se no núcleo principal de uma vasta guerra
popular abrangendo ambos os países – ou pelo menos num aliado estratégico
decisivo dos combatentes venezuelanos. Para os estrategas do Império,
retirar essa insurgência da cena regional é um objectivo prioritário. Não
conseguiram fazê-lo pela via militar, tentam agora alcançá-lo através de
uma complexa operação que envolve pressões directas e indirectas e ofertas
tentadoras combinadas com a ameaça (e a prática) permanente do garrote
bélico. Tentam converter a crescente debilidade (e decrescente
legitimidade) do regime colombiano numa espécie de armadilha letal
colocada aos pés da insurgência, "permitindo" sua extensão (que tende à
sobre-extensão) política mais ou menos legal com a finalidade de criar-lhe
ataduras sistémicas de todo tipo (institucionais, políticas, ideológicas,
sociais, etc) que a impeçam de sair da rota do apaziguamento. Ao
enquadramento local acrescenta-se um não menos embrulhado jogo de pressões
regionais e extra-regionais mais ou menos "amistosas" para completar o
cerco psicológico. Apaziguar, deslocar, adormecer, penetrar esse factor
perturbador extremamente perigoso constitui a obsessão desses
manipuladores de alto nível. A estratégia tem algo de ciência e algo de
pôker porque se baseia principalmente na capacidade (difícil de medir) de
absorção (de degradação politiqueira) do regime colombiano cuja evolução
articula-se cada vez mais em torno de duas dinâmicas inter-relacionadas
que podem ser maquilhadas, ornamentadas com garantias democráticas
ilusórias mas não eliminadas uma vez que constituem o núcleo duro,
sobredeterminante da reprodução do sistema, da sua inserção no capitalismo
global.

Em primeiro lugar o aparelho militar, cujo sobredimensionamento em
relação à sociedade colombiana corresponde à longa guerra interna que
protagoniza assim como à sua vinculação-dependência ao aparelho militar
norte-americano e às suas estratégias coloniais. Atravessado por negócios
mafiosos próprios e laços directos com o império, o aparelho militar
dispõe de margens de autonomia significativas em relação às camarilhas
burguesas locais com as quais compartilha interesses. Não é segredo para
ninguém que os Estados Unidos contam com as forças armadas da Colômbia
para suas futuras operações militares regionais e extra-regionais. Só
algum progressista iludido pode acreditar que o Império e seus lacaios
locais possam alguma vez aceitar pacificamente a democratização e redução
significativa dessa estrutura criminosa.

Em segundo lugar a crescente hegemonia económica na Colômbia do complexo
agro-mineral exportador (agricultura quase sem camponeses e mineração
ultra-extractivista) expulsor de população e destruidor do meio ambiente.
Este modelo vai-se impondo na América Latina, tanto em países com governos
neoliberais como progressistas, e responde à lógica global do
capitalismo, dos seus pólos imperialistas (decadentes mas poderosos)
decididos a saquear os recursos naturais da periferia.

A eliminação ou subordinação democrática desse núcleo duro equivaleria em
termos concretos à quebra da espinha dorsal do capitalismo colombiano.
Custa a crer que os donos do sistema se resignem a perdê-lo enquanto o
Império exacerba sua guerra planetária.

Os crápulas transparentes

Os Estados Unidos expandem seu desdobramento militar pela América Latina,
secundados pelos seus aliados da NATO.

Vejamos algumas notícias recentes. No Paraguai acaba de desembarcar um
contingente de peritos britânicos em inteligência militar, segundo foi
informado pelo governo desse país, os quais assim se somam a um número
desconhecido de "assessores"norte-americanos formais e de mercenários de
diferentes origens [1] . Em Honduras, os Estados Unidos decidiram instalar
(na base de Palmerola) uma denominada "Força-Tarefa de Finalidade
Especial Ar-Terra de Fuzileiros Navais – Sul" que, dotada da mais alta
tecnologia, estará em condições de operar rapidamente em qualquer zona da
região considerada "em situação de crise" [2] . No Peru, em 2015, estão a
chegar 3200 fuzileiros navais (marines) norte-americanos, prolongando as
tarefas de apoio que já realizavam destinadas, segundo a informação
oficial, "a combater as ameaças insurgentes" [3] .

Em relação à dupla Colômbia-Venezuela, as notícias não podem ser mais
claras. Em princípios deste ano foi anunciada a instalação no departamento
de La Guajira, fronteiriço com a Venezuela (próximo de Maracaibo) de uma
unidade blindada capaz de deslocar-se rapidamente chamada "Força-Tarefa de
Armas Combinadas Medianas" (FUTAM). A nova unidade militar disporá de
blindados da última geração. Segundo a publicação especializada
"defensa.com" , no acto oficial de entrega dos mesmos o ministro da
Defesa da Colômbia, Juan Carlos Pinzón, "referindo-se a um cenário futuro
de pós conflito perante a possibilidade de chegar à paz com a guerrilha
das FARC, ressaltou que as Forças Armadas da Colômbia 'têm hoje capacidade
de inter-operar com outras do mundo, especialmente com as de outros países
com padrões internacionais e com missões que busquem garantir a paz
global'...". Os "outros países" são em primeiro lugar os Estados Unidos e
seus sócios da NATO & Co. que "garantem a paz" (?) com suas guerras na
Líbia, Iraque, Afeganistão, Iémen, Síria, Palestina, Ucrânia...

Isto coincide com o que se verificou na "mesa de peritos" convocada pelo
ministro Pinzon acerca do tema do futuro das forças armadas colombianas.
Ali, Mary Beth Long, ex-subsecretária da Defesa dos Estados Unidos,
assinalou que "os militares (colombianos) estão estudando outras ameaças
na região que podem representar seus vizinhos como a Venezuela,
preparar-se para essas eventualidades e os felicito por isso porque há
outros desafios no horizonte, e sua força pública, sua liderança e sua
polícia já se estão a preparar para isso" [4] .

Mas o departamento de La Guajira não é apenas o lugar de uma base
operativa destinada a agredir a Venezuela. Há poucos dias a agência de
notícias ADITAL informava: "Desde que o principal rio da região foi
represado e a sua água privatizada pela indústria agrícola e pela maior
exploração da mina de carvão a céu aberto do mundo, a maior comunidade
indígena da Colômbia, constituída pelos povo Wayúu, morre de fome e de
sede. Situada no extremo norte do país, na península desértica de La
Guajira, a população sofre devido à desnutrição, subindo a pelo menos 37
mil as crianças indígenas desnutridas. Há dados a assinalar que cerca de
14 mil meninos e meninas já morreram de inanição".
(1) "Expertos británicos proveen asistencia de inteligencia en Paraguay"
, HISPANTV, 19 de marzo de 2015
(2) "EEUU creará fuerza especial para América Latina con sede en
Honduras" , ANNCOL, 3 de Abril de 2015
(3) "Arribó al Perú el segundo contingente de soldados de EEUU" ,
defensa.com, 19 de febrero de 2015
(4] "Exsubsecretaria de Defensa dice que Colombia se prepara para
eventuales conflictos con Venezuela" , noticias-uno, 28 de marzo de 2015
(5) Marcela Belchior, "Privatización de río provoca 14 mil muertes de
indígenas por inanición" , ADITAL, 5 de Abril de 2015

[NR] Mas em 08 de Abril um subordinado de Obama desmentiu a "Ordem
executiva" do seu chefe. Ver:
Venezuela: Ahora el gobierno de EEUU dice que no dijo lo que dijo su
Presidente

[*] Doutorado em economia e professor catedrático das universidades de
Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba. É autor de
Capitalismo senil: a grande crise da economia global, publicado no
Brasil pela editora Record (2001). Dirige o Instituto de Pesquisa
Científica da Universidade da Bacia do Prata e publica regularmente em
Le Monde Diplomatique (em castelhano).

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/beinstein/venez_colom_07abr15.html
9/4/2015

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