sábado, 29 de agosto de 2015

"Faz 20 anos que a esquerda só pensa em eleição"



João Pedro Stédile, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) (entrevista a Marco Weissheimer)



Há alguns meses, ou mesmo anos, João Pedro Stédile, uma das principais
lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vem repetindo
algumas advertências dirigidas à esquerda brasileira, relacionadas à evolução da
conjuntura política nacional e internacional.

Uma dessas principais advertências consiste em alertar sobre a importância de
não resumir a luta política à luta eleitoral e de não sucumbir às armadilhas da
política tradicional, como abraçar o financiamento privado de campanhas como um
método natural de fazer política.

A crise política iniciada após a reeleição de Dilma Rousseff e a ofensiva da
oposição e dos setores mais conservadores do país com o objetivo de derrubar a
presidenta eleita pelo voto popular recolocou essas advertências na ordem do
dia.

Na última sexta-feira, Stédile esteve em Porto Alegre para participar de um
debate na abertura do 14º Congresso Estadual da Central Única dos Trabalhadores
(CUT). Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a conjugação de três crises no
presente - econômica, política e social -, sobre as movimentações de seus
principais protagonistas e seus possíveis desdobramentos.

E apontou aquele que considera ser o principal desafio da esquerda neste
período: "Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a fazer
trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz 20
anos, que a esquerda só pensa em eleição", disse Stédile.

Sul21: Na última semana, tivemos uma nova série de manifestações contra e a
favor da presidenta Dilma Rousseff e a denúncia oferecida contra o presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na tua opinião, como esses
eventos influenciam no atual clima de instabilidade política que marca a
conjuntura nacional?

João Pedro Stédile: O Brasil está vivendo um período muito confuso e complexo
onde, a cada semana, surgem fatos que complicam mais ainda a leitura da
conjuntura na qual inserem esses dois episódios que citou na tua pergunta. Essa
complexidade, na avaliação do MST e dos movimentos sociais como um todo, deve-se
ao fato de estarmos vivendo um período que conjugou três crises.

Temos uma crise econômica, que afeta a economia brasileira que não cresce há
dois anos e deve ficar ainda mais uns dois sem crescer, com um forte processo de
desindustrialização que já se reflete inclusive na classe trabalhadora, com
aumento do desemprego e diminuição do salário médio. Temos também uma crise
social, cuja ponta do icebergapareceu nos protestos de junho de 2013. O governo
adotou uma retórica de diálogo, porém, todos aqueles problemas sociais que eram
substrato para as mobilizações de junho, nenhum deles se resolveu, pelo
contrário. Os problemas da moradia, do transporte público, do acesso à
universidade, todos eles se agravaram. Essa crise social ainda não eclodiu, está
latente, mas existe. E, por fim, temos uma crise política cuja origem é o
sequestro da democracia brasileira feito pelos capitalistas por meio do
financiamento privado das campanhas eleitorais. As dez maiores empresas do país
financiaram cerca de 70% dos parlamentares, processo este que gerou os Cunha da
vida e os seus 300 aliados. Hoje, a população não se reconhece nos políticos.
Diversas pesquisas de opinião apontam os políticos com o menor índice de
credibilidade. Então, temos uma dicotomia aí. O que acontece na política não
reflete na sociedade, ou só reflete negativamente.


Todos os dias nós temos evidência dessas três crises. Se lermos o Valor
Econômico, por exemplo, veremos os reflexos da crise econômica. Se consultarmos
os movimentos populares ouviremos relatos de todos eles sobre os problemas
sociais que vem se avolumando. E, na política, é o que você citou. Todo dia
temos fatos novos.

Sul21: E quais são, na sua avaliação, os possíveis desdobramentos dessa
conjugação de crises?

João Pedro Stédile: A dificuldade para sair dessa crise geral é que as classes
ainda não se puseram de acordo sobre o que fazer. Seria preciso criar um novo
bloco histórico e social que se constituísse numa maioria capaz de encontrar a
saída. Isso, em geral, se materializa em períodos eleitorais. O problema é que
nós acabamos de sair de uma eleição. Então, nós vamos levar quatro anos, durante
todo o governo Dilma, para encontrar essa maioria. Essa é a dificuldade.

Nessas tentativas de saída de crise, o que está sendo mais ou menos sinalizado?
A burguesa, no sentido clássico do termo, mais conhecida como os empresários ou
o poder econômico, já apresentou a sua proposta de saída. Não é um programa
formalizado, mas vem sendo apresentado em suas reuniões e discursos. Essa
proposta consiste em realinhar a economia brasileira aos Estados Unidos, que foi
um pouco o que aconteceu em 1964. A ideia é que os americanos venham para cá,
invistam e tirem a economia da crise, ampliando o mercado para as empresas
brasileiras que entrariam de maneira subalterna numa relação com a economia
industrial norte-americana.

Em segundo lugar, consiste em diminuir o papel do Estado, que hoje se expressa
nas propostas de cortar gastos sociais, de diminuir o número de ministérios, de
diminuir os gastos com a Previdência, etc. Tudo isso é firula para voltar a
velha tese de que o mercado é que resolve.

Em terceiro lugar, é diminuir o custo da mão de obra. Esse é o programa deles,
que ainda não pode ser explicitado, pois, em sua essência, esse programa é o
neoliberalismo, que foi derrotado nas últimas quatro eleições. Eles não podem
simplesmente apresentá-lo de novo. Precisam dourar a pílula.

Então, a burguesia está fazendo esse movimento para tentar construir uma
maioria em torno do seu programa. Como fazem isso? Pautando essas propostas no
Congresso Nacional. Todas as iniciativas do bloco do Eduardo Cunha caminham na
direção desse programa: diminuir custo, diminuir Estado, privatizações, abrir a
economia e reaproximá-la com os Estados Unidos. Além disso, também pautaram o
Judiciário e a grande mídia comercial, da qual a Globo é a grande porta-voz.
Esse movimento representa o maior grau de unidade que eles conseguiram até
agora, com manifestações da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro),
do Renan Calheiros, presidente do Senado, e com setores do PSDB. Tenho absoluta
convicção, pela recente entrevista do Mendonça de Barros, que Serra e Alckmin,
embora não possam aparecer publicamente, concordam com esse programa. Mas eles
não podem aparecer.

Sul21: Você referiu o movimento que vem sendo articulado pelo grande
empresariado e seus braços políticos para a superação da crise. E quantos aos
demais setores da sociedade, é possível vislumbrar alguma movimentação que busca
saídas para os atuais impasses?

João Pedro Stédile: Nós temos outro segmento, que é a chamada classe média, ou
pequena burguesia como denominava Marx. Estamos falando aqui daquela classe
média que o Marcio Pochmann menciona no Atlas da Exclusão Social, que, pela
renda que tem, representa entre 5 e 10% da população e que sonha um dia em virar
burguesia. Qual é o programa que essa classe média apresenta para sair da crise?
Golpe na Dilma! Mas isso não é programa, não resolve nenhuma das três crises.
Por isso que a burguesia, que é mais esperta, está dizendo para eles: Calma,
vocês podem ficar latindo aí na Paulista, em Copacabana, mas isso não é saída
para a crise.

O próprio Temer disse isso para eles quando afirmou que não adiantava colocá-lo
no lugar da Dilma, pois a crise tem outras raízes. Pelo contrário, se houvesse
um golpe institucional, se criaria uma quarta crise, uma crise institucional,
que levaria os movimentos sociais e populares para as ruas. Isso desarrumaria
todas aquelas regras do Estado burguês que, apesar da crise política, todo mundo
segue respeitando. Se isso acontecesse, por que não poderíamos, por exemplo,
pedir o impeachment do Sartori ou do Alckmin, cujas campanhas também foram
financiadas por empresas privadas. Então, a saída dessa classe média é burra. A
nossa sorte, e a deles também, é que representam uma parcela muito pequena da
sociedade. É por isso que as mobilizações deles não aumentam. E tem que ser
feitas sempre no domingo, né? É muito mais um festival, ao qual eles têm
direito, do que propriamente uma luta política.

Do lado de cá, temos a classe trabalhadora, que não está conseguindo apresentar
um programa de saída para a crise. Neste momento, as direções de organizações
como CUT, UNE, MST, os movimentos de luta pela moradia, estão tentando unificar
uma agenda. O que conseguimos construir de unidade até aqui é um programa
defensivo contra o golpe, em defesa dos direitos, contra o neoliberalismo, ou
seja, é uma defesa do passado, não é avançar como nós queremos. Então, para a
classe trabalhadora também está sendo difícil construir um programa propositivo
capaz de retomar a ofensiva na direção das mudanças que defendemos. Essa é uma
dificuldade real e é neste ponto em que nós estamos.

Sul21: Quais as perspectivas de superar essa dificuldade?

João Pedro Stédile: Espero que, nos próximos meses consigamos avançar na direção
desta unidade da classe trabalhadora para construir um programa, não defensivo,
mas que apresente propostas para a saída das crises econômica, política e
social. Talvez já tenhamos uma maior unidade no tema da crise política, com a
defesa de uma Reforma Política construída por meio de uma Assembleia Nacional
Constituinte. Este Congresso não fará essa reforma e os partidos não têm força
para aprová-la no cenário atual. No fundo, a saída de um programa construído
pela classe trabalhadora vai depender de um componente que ainda não está no
cenário, que é a classe trabalhadora se mobilizar e ir para a rua. Até agora, só
foram para a rua as mediações, os militantes. A grande massa segue sentada em
casa assistindo tudo pela televisão. Por isso que as nossas mobilizações também
têm mantido o mesmo tamanho.

Contudo, essa massa e as nossas mediações têm uma arma potente que ainda não
foi usada: a greve geral, que afeta diretamente o lucro dos capitalistas. A
perspectiva de parar a produção um dia, dois dias, uma semana, coloca em pânico
a burguesia. No fundo, esse é o maior medo que eles têm. Por isso não querem ver
o circo pegar fogo, pois a lona cairia também sobre as suas cabeças.

Sul21: Você mencionou algumas organizações há pouco que estão tentando unificar
uma agenda comum e não mencionou nenhum partido político entre elas.
Considerando que o partido que vem governando o Brasil há 13 anos atravessa uma
série crise política e os demais partidos de esquerda parecem não ter força para
apresentar uma alternativa, a conjuntura está convocando os movimentos sociais a
assumir um maior protagonismo, a exemplo do que ocorreu na Bolívia há alguns
anos?

João Pedro Stédile: É evidente que os partidos políticos no Brasil, tanto os da
burguesia quanto os da esquerda, estão em crise. Os da burguesia foram
substituídos pela Globo. Quem dirige ideologicamente as ideias da direita no
Brasil é a Globo. Os dirigentes partidários da direita brasileira estão
completamente desmoralizados. Estão aí os Eduardo Cunha, os Ronaldo Caiado da
vida. E a esquerda precisa fazer uma autocrítica séria porque caiu só no
eleitoralismo e, mesmo nesta esfera, não se preocupou em defender uma reforma
política. Ao invés disso, fez o jogo da burguesia, abraçando o financiamento
privado das campanhas e caindo na arapuca que a Lava Jato expressa. Se não
mudarmos as regras políticas, não vai ser de dentro dos partidos que virá a
solução. Os partidos já estão enlambuzados. Uma reforma política rejuvenesceria
os partidos mas estes não têm força para colocar massa na rua em defesa dessa
reforma. Então, isso só poderá ser feito por meio de uma ampla coalizão de todas
as forças populares, com todas as formas de mediação de que a classe
trabalhadora dispõe, sejam pastorais, sindicatos, movimentos populares,
partidos, etc.

Agora não é o momento de discutir quem vai ser protagonista, mas sim de juntar
todas as forças para fazer um debate na sociedade e junto às nossas bases sobre
quais são as saídas para a crise que está posta e é inegável. Eu não sei como
será essa saída. Isso dependerá da correlação de forças e da dinâmica da luta de
classes. Acho muito ruim queremos copiar algum exemplo.

Tenho visto algumas pessoas dizendo que temos seguir o exemplo do Podemos, da
Espanha, ou do Syryza, da Grécia.

A história da Espanha é outra e o Tsipras durou apenas três meses. Então, cada
país tem a sua dinâmica e nós, brasileiros, teremos que inventar a nossa. A
ousadia que nos cabe é inventar. Quando quisemos copiar, erramos. Quisemos
copiar o modelo do financiamento privado de campanhas. Deu no que deu. O
componente principal da ousadia que precisamos ter é que precisamos levar esse
debate para as massas e fazer com elas se mobilizem e decidam ir para as ruas,
criando uma efervescência, um novo dinamismo na política brasileira. No meio
dessa efervescência, também vão surgir novos líderes. Não adianta ficar olhando
para trás e procurando onde estão os líderes do passado.

A dinâmica da luta de classes vai forjar novas lideranças e novas formas de
organização também.

Sul21: Na tua opinião, há um avanço de ideias e valores conservadores no Brasil,
de uma direita mais orgânica e extremada, ou é muita fumaça o que está
aparecendo nas ruas?

João Pedro Stédile: Eu acho que é muita fumaça. Nas raízes do povo brasileiro há
energias muito saudáveis. O povo brasileiro é solidário, trabalhador e digno.
Agora, essa fumaça é resultado da hegemonia ideológica da burguesia nos meios de
comunicação. A Globo é a principal responsável pela projeção desses falsos
valores, desse negativismo que afirma que todo mundo é corrupto. Ela projeta
essas ideias e valores todos os dias, em suas novelas, em seus noticiários. Aí
devemos buscar a causa dessa fumaça que esconde a realidade. E nós não temos
meios de comunicação de massa alternativos. Ficamos lutando em trincheiras, com
uma página aqui, um boletim ali. Não temos um meio de comunicação nacional que
consiga fazer esse debate com a sociedade. O que está faltando na sociedade
brasileira é debate sobre os seus problemas e suas possíveis soluções.

Sul21: Neste momento, há vários grupos se reunindo e discutindo a necessidade de
formação de novas frentes de esquerda e de setores progressistas da sociedade.
Esses grupos vêm conversando entre si?

João Pedro Stédile: Do ponto do vista do diagnóstico, todo mundo está com a
mesma leitura, ou seja, que a crise é grave, complexa e vai demorar. Mas não há
unidade quanto às possíveis saídas. Não tem um programa. Como estão se movendo
as forças, acredito que teremos várias frentes. Nós estamos colocando energia na
construção de uma que já tem nome, a Frente Brasil Popular, que junta partidos
tradicionais, movimentos populares, a UNE, o Levante Popular da Juventude, as
pastorais, entre outras organizações. Nós vamos fazer uma conferência nacional
dia 5 de setembro em Belo Horizonte para ver se avançamos em nosso programa. Mas
acredito que outros grupos de esquerda vão formar outras frentes, alguns porque
tem uma vocação mais eleitoral e querem tirar proveito dessa crise do PT.

No entanto, não creio que uma frente de esquerda limitada em sua base social,
por mais clareza ideológica que tenha, consiga acumular força. Agora, mais do
que saber para onde tu tem que ir, é preciso ter força social acumulada. E, em
períodos de crise, para ter essa força social acumulada, é preciso contar com
todos os que querem mudanças, sem exclusão ideológica. No caso da Frente Brasil
Popular, o espectro de forças com que estamos trabalhando é quem votou na Dilma
no segundo turno, que não são poucos. Se conseguirmos aglutinar numa frente
cerca de 54 milhões de brasileiros, teremos uma força suficiente para
impulsionar mudanças dentro do governo e se preparar para o pós-Dilma.

Sul21: Uma última questão. Se fosse possível definir numa frase o principal
desafio que a esquerda brasileira tem hoje, qual seria ela na tua opinião?

João Pedro Stédile: Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a
fazer trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz
20 anos, que a esquerda só pensa em eleição. Temos que parar um pouco de pensar
em eleição. Não que a eleição não seja importante. Claro que é importante, pois
faz parte da democracia. Nós temos feito bons diálogos com o Tarso (Genro) no
sentido de que a esquerda precisa recuperar mais o Gramsci. Como viveu num
momento de crise do movimento operário italiano, ele tem reflexões que são
apropriadas para o período que estamos vivendo. Entre as várias contribuições de
Gramsci, uma delas é essa visão de que na luta por mudanças sociais, a luta de
classes se manifesta em todos os espaços da vida social. Aparece numa rádio
comunitária, num sindicato, num bairro, numa igreja, num jornal, numa fábrica,
no comércio, numa praça. Todos são espaços de disputa. E nós, no passado
recente, reduzimos tudo isso à disputa eleitoral.

Precisamos preparar a classe trabalhadora para que ela possa disputar, com as
suas ideias, todos os espaços da vida social, pois tudo isso é poder político,
não só o governo. Para isso, precisamos também recuperar o trabalho de formação
de militantes, que a esquerda abandonou. Há uma juventude aí que está a ver
navios. A formação política é o casamento permanente entre luta de massas e
formação teórica. E a esquerda não fez nenhuma das duas coisas neste último
período. A luta de massa foi reduzida à eleição e a formação teórica foi
abandonada. Felizmente, a direita está recolocando em nossa pauta a importância
da luta de massa. Se não formos para a rua disputar com eles, eles vêm pra cima
de nós.

In
port.pravda.ru
http://port.pravda.ru/cplp/brasil/29-08-2015/39352-esquerda_eleicao-0/#
29/8/2015

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