quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O projeto militar dos Estados Unidos para o mundo




 por Thierry Meyssan

Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel
Há 70 anos que a obsessão dos estrategistas norte-americanos não tem nada a ver
com a defesa do seu povo, mas sim com a manutenção da superioridade militar dos
Estados Unidos sobre o resto do mundo. Durante a década que vai da dissolução da
União Soviética aos atentados de 11 de setembro de 2001, eles buscaram as mais
diferentes maneiras de intimidar a tudo o que resistisse à dominação
norte-americana.
Harlan K. Ullman desenvolveu a ideia de aterrorizar as populações,
desfechando-lhes um golpe descomunal sobre suas cabeças (shock and awe: choque e
pavor) [Ullman, Harlan K. & Wade, James P. 1996. Shock and Awe. Achieving Rapid
Dominance. Washington D. C.: National Defense University Press.]. Seu paradigma
era o uso da bomba atômica contra os japoneses, e, na prática, isso significou
despejar uma chuva de mísseis de cruzeiro sobre Bagdá.
  ​
Os discípulos do filósofo Leo Strauss sonhavam com combater e ganhar várias
guerras ao mesmo tempo (full-spectrum dominance: domínio em largo espectro).
Vieram então as guerras do Afeganistão e do Iraque, comissionadas a um comando
comum [Mahajan, Rahul. 2003. Full Spectrum Dominance. U.S. Power in Iraq and
Beyond. Nova Iorque: Seven Stories Press.].
O almirante Arthur K. Cebrowski preconizava a reorganização das forças armadas
de modo a tratar e compartilhar uma enormidade de dados de maneira simultânea.
Assim, os sistemas automáticos poderiam um dia indicar instantaneamente as
melhores táticas [Alberts, David S.; Garstka, John J. & Stein, Frederick P.
Network Centric Warfare: Developing and Leveraging Information Superiority.
Washington D. C.: Command and Control Research Program – Departamento de
Defesa.]. Como veremos em seguida, as profundas reformas que ele iniciou não
tardaram a produzir frutos venenosos.
O pensamento neoimperialista norte-americano
Essas ideias e obsessões começaram levando o presidente Bush e a Marinha à
elaboração do mais vasto programa internacional de sequestro e tortura, que pode
ter alcançado 80.000 vítimas, para mais adiante fazer com que o presidente Obama
pusesse em marcha um programa de assassinatos, em especial por meio do uso de
drones, mas também por meio do uso de comandos especiais, que passaram a operar
em 80 países, com o suporte de um orçamento anual de 14 bilhões de dólares
[Shaw, Ian G. R. 2016. Predator empire: drone warfare and full spectrum
dominance. Minneapolis: University of Minnesota Press.].
A partir do 11 de setembro, o assistente do almirante Cebrowski, Thomas P. M.
Barnet, proferiu numerosas conferências no Pentágono e nas escolas de comando e
estado maior, para anunciar aquele que seria o novo mapa mundi, segundo o alto
comando da Defesa [Barnett, Thomas P. M. 2004. The Pentagon’s New Map. War and
Peace in the Twenty-First Century. Nova Iorque: Putnam Publishing Group.]. Essa
projeção começou a tomar corpo por meio das reformas estruturais das forças
armadas norte-americanas, nas quais se reconhece uma nova visão de mundo. Só que
esse projeto parecia inicialmente tão delirante que os observadores estrangeiros
apressadamente o consideraram apenas como mais um golpe de retórica, visando
insuflar medo nos povos que os Estados Unidos pretendiam dominar.
Barnett afirmava que, para manter sua hegemonia mundial, os Estados Unidos
teriam que jogar ao mar uma parte da carga, ou seja, dividir o mundo em dois,
para ficar com o que interessa. De um lado ficariam os Estados “estáveis” (os
membros do G-8 e seus aliados), e do outro, o resto do mundo, considerado tão
apenas como um reservatório de recursos naturais. À diferença dos seus
predecessores, Barnett já não considerava mais o acesso a esses recursos como
vital para Washington, mas pretendia que eles só fossem acessíveis aos Estados
“estáveis” pela mediação dos recursos e serviços militares dos Estados Unidos.
Portanto, convém destruir sistematicamente todas as estruturas estatais no
âmbito desse “reservatório de recursos”, de maneira que ninguém aí possa jamais
se opor aos desígnios de Washington, nem tratar diretamente com os Estados
“estáveis”.
Quando de seu Discurso sobre o Estado da União, proferido em janeiro de 1980, o
presidente Carter enunciou sua doutrina: Washington considerava o abastecimento
da sua economia pelo petróleo do Golfo como uma questão de segurança nacional. O
Pentágono será então dotado do CentCom (United States Central Command) para
controlar essa região. Hoje, no entanto, Washington obtém menos petróleo do
Iraque e da Líbia do que o que se produzia antes das guerras contra esses
países... e não está muito se importando com isso.
A ideia de destruir as estruturas estatais remete-se ao caos, um conceito
emprestado de Leo Strauss, ao qual Barnett dá um novo sentido. Para aquele
filósofo judeu, depois do fracasso da República de Weimar e, por consequência, o
advento da Shoah (o Holocausto), o povo judeu não poderia mais confiar nas
democracias. O único modo de se proteger de algum novo nazismo seria instaurar
sua própria ditadura mundial ― em nome do Bem, “evidentemente”. Seria preciso
então destruir alguns Estados recalcitrantes, mergulhá-los no caos, para poder
reconstruí-los de acordo com novas normas [Drury, Shadia B. 1988. Political
Ideas of Leo Strauss. Londres: Palgrave Macmillan. ― Norton, Anne. 2005. Leo
Strauss and the Politics of American Empire. New Haven: Yale University Press. ―
Gottfried, Paul Edward. 2011. Leo Strauss and the conservative movement in
America: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press. ―
Minowitz, Peter. 2009. Straussophobia: Defending Leo Strauss and Straussians
Against Shadia Drury and Other Accusers. Lanham: Lexington Books.].
Isso é exatamente o que dizia Condoleezza Rice, durante os primeiros dias da
guerra de 2006 contra o Líbano, quando ainda parecia que Israel podia sair
vitorioso:
“Não reconheço o interesse da diplomacia, se é para retornar ao statu quo ante
entre Israel e o Líbano. Creio que isso seria um erro. O que vemos aqui, de
certa maneira, é um começo, são as contrações do nascimento de um novo Oriente
Médio e, seja lá o que façamos, temos de estar certos de que avançamos em
direção a esse novo Oriente Médio, e de que não retornaremos ao anterior”.
Para Barnett, no entanto, não bastaria mergulhar no caos apenas os povos
recalcitrantes, mas todos aqueles que não alcançaram um certo nível de vida. E
uma vez que sejam reduzidos ao caos, aí devem ser mantidos.
Em certa medida, a influência dos seguidores de Leo Strauss andou declinando no
Pentágono após a morte de Andrew Marshall, idealizador do “giro para a Ásia”
[Krepinevich, Andrew F. & Watts, Barry D. 2015. The Last Warrior: Andrew
Marshall and the Shaping of Modern American Defense Strategy. Nova Iorque: Basic
Books.].
Uma das grandes rupturas entre o pensamento de Barnett e o dos seus
predecessores reside na ideia de que a guerra não deve ser conduzida contra
Estados em particular, por razões políticas, mas contra regiões inteiras do
mundo pelo fato de que elas não estão bem integradas no sistema econômico
global. Evidentemente que se começará por esse ou aquele país, mas o mais
importante é propiciar o efeito de contágio, até que tudo seja destruído, como
se está vendo no Oriente Médio ampliado. Hoje, o estado de guerra se mantém,
inclusive com blindados, tanto na Tunísia e na Líbia, quanto no Egito (Sinai),
na Palestina, no Líbano (em Ain el-Helue e Ras Baalbeck), na Síria, no Iraque,
na Arábia Saudita (na cidade de Qatif), no Bahrein, no Iêmen, na Turquia (em
Diyarbakir) e no Afeganistão.
Por conta disso, a estratégia neoimperialista de Barnett precisa se apoiar
necessariamente sobre elementos da retórica de Bernard Lewis e de Samuel
Huntington sobre a “guerra de civilizações”. Como é impossível justificar a
sumária indiferença pelo destino dos povos daquele “reservatório de recursos
naturais”, pode-se ainda persuadir as pessoas de que nossas civilizações são
incompatíveis.

Mapa inicialmente apresentado por Thomas P. M. Barnett em uma conferência
realizada no Pentágono em 2003. Os países dentro da área rosa são considerados
como “não-integrados” ao “centro operativo” do mundo globalizado. Esta cópia foi
extraída de um Powerpoint do Estado Maior Conjunto dos Estados Unidos.
A aplicação do neoimperialismo norte-americano
É exatamente essa política da qual vínhamos tratando que foi posta em prática a
partir do 11 de setembro. Nenhuma das guerras que se iniciaram desde então
terminaram. Após 16 anos, as condições de vida dos afegãos são, a cada dia, mais
terríveis e perigosas. A reconstrução do seu Estado, anunciado sob os termos de
um planejamento similar àquele do modelo da Alemanha e do Japão após a Segunda
Guerra, jamais chegou a acontecer. A presença de tropas da OTAN em nada melhorou
a vida dos afegãos. Pelo contrário, ela se deteriorou ainda mais. É forçoso
constatar que essa presença é, hoje, antes de mais nada, a causa do problema. A
despeito dos discursos tranquilizadores sobre a ajuda internacional, a presença
das tropas estrangeiras lá apenas aprofunda e mantém o caos.
Em momento algum, desde que as tropas da OTAN desembarcam, os motivos oficiais
para a guerra se revelam verdadeiros, nem no caso do Afeganistão (a
responsabilidade do Talibã nos atentados de 11 de setembro), nem no caso do
Iraque (o apoio de Sadam Hussein aos terroristas do 11 de setembro e a
fabricação de armas de destruição massiva para atacar os Estados Unidos), nem no
caso da Líbia (o bombardeio do exército sobre o próprio povo), nem no caso da
Síria (a ditadura do presidente Assad e da seita alauita). E em nenhum dos
casos, jamais a derrubada de algum governo pôs fim às guerras que aí se
iniciaram.
As “primaveras árabes”, ainda que sejam fruto de uma ideia do MI6, o serviço de
inteligência britânico (Military Intelligence, Section 6), que se vincula
diretamente ao modelo da “revolta árabe de 1916” e das façanhas de Lawrence da
Arábia, acabaram se inscrevendo no plano geral da estratégia norte-americana. A
Tunísia tornou-se ingovernável. No Egito, o exército retomou o controle da
situação e o país tenta hoje, com bastante esforço, respirar. A Líbia tornou-se
um campo de batalha; não após o Conselho de Segurança da ONU adotar uma
resolução clamando a proteção da população, mas a partir do assassinato de
Muamar Kadhafi e a vitória da OTAN.
A Síria, tão apenas, tornou-se um caso excepcional, uma vez que o Estado não
chegou a passar às mãos da Irmandade Muçulmana, para que eles pudessem instalar
o caos no país. No entanto, numerosos grupos jihadistas egressos da Irmandade
controlaram ― e ainda controlam ― partes do território onde, aí sim, instalou-se
o caos. Nem o califado do Estado Islâmico (Daesh), nem Idlib sob o controle da
Al-Qaida chegam a conformar Estados onde o Islã possa florescer, mas apenas
zonas de terror, sem escolas ou hospitais.
É provável que, graças a seu povo, a seu exército e a seus aliados russos,
libaneses e iranianos, a Síria consiga escapar do destino traçado para ela em
Washington. No entanto, o Oriente Médio ampliado continuará a arder até que seus
povos compreendam os planos dos seus inimigos.
O mesmo processo de destruição lança seus primeiros passos no noroeste da
América do Sul. A mídia ocidental trata com desdém as conturbações na Venezuela,
mas uma vez que a guerra comece, ela não se limitará a esse país. Ela tenderá a
se espalhar pela região, ainda que as condições econômicas e políticas de cada
Estado que a compõe sejam bastante diferentes.
Os limites do neoimperialismo norte-americano
Os estrategistas norte-americanos adoram comparar o poder dos Estados Unidos com
o do Império Romano. No entanto, os romanos aportavam segurança e opulência aos
povos que conquistavam e integravam; construíam monumentos e racionalizavam suas
instituições. Ao contrário, o neoimperialismo norte-americano não tem nada a
aportar, nem aos Estados “estáveis” nem ao que ele considera mero “reservatório
de recursos naturais”. Ele planeja tão apenas extorquir os primeiros e destruir
os laços sociais que sedimentam os últimos. Ele sequer deseja exterminar esses
últimos, mas apenas fazê-los sofrer de tal modo que o caos em que vivam convença
os Estados “estáveis” a não ir buscar neles recursos naturais senão sob a
proteção das forças militares dos Estados Unidos.
Até aqui o projeto imperialista considerava que “não se pode fazer omeletes sem
quebrar os ovos”. Ele admitia que teria que cometer massacres “colaterais” para
estender sua dominação. Daqui por diante, ele parece ter começado a planejar
massacres generalizados para impor definitivamente sua autoridade.
O neoimperialismo norte-americano supõe que os demais Estados do G-8 e seus
aliados aceitem que os Estados Unidos “protejam” os interesses daqueles mundo
afora, por meio das suas forças militares. Se isso parece não ser um problema
para o caso da União Europeia, já submissa depois de tantos anos, pode, no
entanto, que venha a ser objeto de discussão dura com o Reino Unido, e,
seguramente, será impossível com a Rússia e a China.
Lembrando sua “relação especial” com Washington, Londres já exigiu ser tratada
como sócia no projeto norte-americano de governar o mundo. Esse foi o sentido da
viagem de Theresa May aos Estados Unidos em janeiro de 2017, no que acabou
ficando sem resposta.
De outra parte, é impensável que as forças militares norte-americanas assegurem
a segurança das “rotas da seda” tal como as rotas comerciais estão estabelecidas
hoje, em parceria com seus homólogos britânicos, por meio de vias marítimas e
aéreas. Do mesmo modo, é também inimaginável fazer a Rússia se curvar e cair de
joelhos, ainda mais depois de manobrar para retirá-la do G-8 por conta de seu
envolvimento na Síria e na Crimeia.

Sugestões do tradutor:
Para saber mais sobre a “estratégia do caos” e sua aplicação:
- A estratégia do caos;
- Caos: Prática e Aplicações;
- A última potência hegemônica: aqueles a quem os deuses destruirão
Para quem lê em francês, o melhor “briefing” sobre os fundamentos dessa
estratégia:
- Leo Strauss: l’idéologie fasciste des faucons.
Sobre os termos gerais de uma “nova guerra fria”:
- Nova guerra fria: faz sentido?

In
JORNAL GGN
http://jornalggn.com.br/blog/ricardo-cavalcanti-schiel/o-projeto-militar-dos-estados-unidos-para-o-mundo-por-thierry-meyssan
23/8/2017

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