domingo, 30 de junho de 2019

Putin ao Financial Times: elites dominantes se separaram do povo



Em entrevista histórica ao Financial Times, o presidente russo Vladimir
Putin faz uma análise da cena política mundial; a entrevista foi
pesadamente editada pelo jornal britânico e aqui, conta com a versão
integral e sem cortes publicada pelo site do Kremlin


*247*- Na véspera da reunião do G20, Vladimir Putin conversou em Moscou
com o editor do /Financial Times/, Lionel Barber, e com o chefe da
sucursal, Henry Foy.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, o senhor se dirige para Osaka em
breve como o estadista sênior do G20. Ninguém esteve em tantas reuniões
internacionais desse grupo e do G7 nos últimos 20 anos, tempo durante o
qual o senhor está no comando da Rússia. Antes de falarmos sobre a
agenda do G20 e o que o senhor espera alcançar, sabemos que há
crescentes tensões entre os Estados Unidos e a China no comércio, o
risco de conflito no Golfo. Eu ficaria muito grato se o senhor pudesse
falar um pouco sobre como o senhor viu o mundo mudar nos últimos 20 anos
enquanto esteve no poder.

*Presidente da Rússia, Vladimir Putin:* Primeiro, não estive no poder
por todos esses 20 anos. Como você deve saber, fui primeiro-ministro por
quatro anos, e essa não é a autoridade máxima da Federação Russa. Mas,
mesmo assim, estou há muito tempo no governo e nos escalões superiores,
para poder julgar o que está mudando e como. Na verdade, você acabou de
dizer, perguntando o que mudou e como. Você mencionou as guerras
comerciais e os desenvolvimentos do Golfo Pérsico. Eu diria com cautela
que a situação não mudou para melhor, mas continuo otimista até certo
ponto. Mas, para ser franco, a situação definitivamente se tornou mais
dramática e explosiva.

*Lionel Barber:* O senhor acredita que o mundo agora está mais fragmentado?

*Vladimir Putin:* Claro, porque durante a Guerra Fria, o pior foi a
Guerra Fria. É verdade. Mas havia pelo menos algumas regras que todos os
participantes da comunicação internacional mais ou menos aderiram ou
tentaram seguir. Agora, parece que não há regras. Nesse sentido, o mundo
se tornou mais fragmentado e menos previsível, o que é o mais importante
e lamentável.

*Lionel Barber:* Vamos voltar a este tema do mundo sem regras,
fragmentação, mais transacional. Mas primeiro, Sr. Presidente, diga-nos
o que o senhor quer alcançar em Osaka, em termos de suas relações com
essas outras partes? Quais são seus principais objetivos para a cúpula?

*Vladimir Putin:* Eu gostaria muito de todos os participantes deste
evento, e o G20, na minha opinião, é um fórum de desenvolvimento
econômico internacional importante hoje, então gostaria que todos os
membros do G20 reafirmassem sua intenção – pelo menos uma intenção – de
elaborar algumas regras gerais que todos seguiriam e de demonstrar seu
compromisso e dedicação para fortalecer as instituições financeiras e
comerciais internacionais.

Todo o resto são detalhes que complementam os principais tópicos de uma
forma ou de outra. Nós certamente apoiamos a presidência do Japão.
Quanto ao desenvolvimento de tecnologia moderna, o mundo da informação,
a economia da informação, bem como a atenção dos nossos colegas
japoneses para questões como a longevidade e o meio ambiente – tudo isso
é extremamente importante, e certamente o apoiaremos e participaremos de
todas essas discussões. Mesmo que seja difícil esperar qualquer avanço
ou decisão histórica nas condições atuais; dificilmente podemos contar
com isso hoje. Mas, de qualquer forma, há esperança de que, no mínimo,
durante essas discussões gerais e reuniões bilaterais, possamos atenuar
as divergências existentes e estabelecer uma base, uma base para o
movimento positivo em frente.

*Lionel Barber:* O senhor terá uma reunião com Mohammad bin Salman em
Osaka. Podemos esperar uma extensão do atual acordo sobre a produção de
petróleo? Limitações?

*Vladimir Putin:* Como você sabe, a Rússia não é membro da OPEP, apesar
de estar entre os maiores produtores do mundo. Nossa produção diária é
estimada em 11,3 milhões de barris, acredito. Os Estados Unidos
apareceram à nossa frente. Mas acreditamos que nossos acordos de
estabilização de produção com a Arábia Saudita e a OPEP em geral tiveram
um efeito positivo na estabilização e previsão do mercado.

Acredito que tanto os produtores de energia, neste caso, os países
produtores de petróleo, quanto os consumidores estão interessados nisso,
porque, definitivamente, estabilidade é artigo que atualmente está
definitivamente em falta. E nossos acordos com a Arábia Saudita e outros
membros da OPEP, sem dúvida, fortalecem a estabilidade.

Quanto a se vamos estender o acordo, você descobrirá nos próximos dias.
Eu tive uma reunião sobre esta questão com os principais executivos de
nossas maiores empresas de petróleo e membros do governo antes desta
entrevista.

*Lionel Barber:* Eles estão um pouco frustrados. Gostariam de produzir
mais. Isso está correto?

*Vladimir Putin:* Eles têm uma política inteligente. Não se trata de
aumentar a produção, embora seja um componente importante no trabalho de
grandes empresas petrolíferas. É sobre a situação do mercado. Eles têm
uma visão abrangente da situação, bem como de suas receitas e despesas.
Claro, eles também estão pensando em impulsionar a indústria,
investimentos oportunos, maneiras de atrair e usar tecnologia moderna,
bem como tornar esta indústria vital mais atraente para os investidores.

No entanto, aumentos dramáticos de preços ou quedas não contribuirão
para a estabilidade do mercado e não estimularão o investimento. Por
isso discutimos hoje todos esses problemas, em sua totalidade.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, o senhor observou quatro presidentes
americanos de perto e talvez de cinco, o senhor teve experiência direta.
Em que o presidente Trump é diferente?

*Vladimir Putin:* Somos todos diferentes. Não há duas pessoas iguais,
assim como não há conjuntos idênticos de impressões digitais. Qualquer
um tem suas próprias vantagens e deixa os eleitores julgarem suas
deficiências. No geral, mantive relações suficientemente boas e
equilibradas com todos os líderes dos Estados Unidos. E tive a
oportunidade de me comunicar mais ativamente com alguns deles.

O primeiro presidente dos EUA com quem entrei em contato foi Bill
Clinton. De modo geral, a experiência me parece positiva. Estabelecemos
laços suficientemente estáveis e semelhantes a negócios por um curto
período de tempo, porque seu mandato já estava chegando ao fim. Eu era
apenas um jovem presidente que acabara de começar a trabalhar. Lembro
sempre que o presidente Clinton estabeleceu relações de parceria comigo.
Continuo muito grato a ele por isso.

Houve tempos diferentes e tivemos que lidar com vários problemas com
todos os outros colegas. Infelizmente, isso muitas vezes envolveu
debates, e nossas opiniões não coincidiram em alguns assuntos que, em
minha opinião, podem ser chamados de aspectos-chave para a Rússia, os
Estados Unidos e o mundo inteiro. Por exemplo, dentre aqueles assuntos,
a retirada unilateral dos EUA do Tratado de Mísseis Antibalísticos que,
como sempre acreditamos, e como ainda estou convencido, era a pedra
fundamental de todo o sistema internacional de segurança.

Debatemos esse assunto por um longo tempo, argumentamos e sugerimos
várias soluções. De qualquer forma, fiz tentativas muito enérgicas para
convencer nossos parceiros americanos a não se retirarem do Tratado. E,
se o lado dos EUA ainda quisesse se retirar do Tratado, deveria tê-lo
feito de forma a garantir a segurança internacional por um longo período
histórico. Sugeri isso, já discuti isso em público e repito que fiz isso
porque considero que esse assunto é muito importante. Sugeri trabalhar
em conjunto em projetos de defesa antimísseis que deveriam envolver
Estados Unidos, Rússia e Europa. [Aqueles projetos] Estipulavam
parâmetros específicos dessa cooperação, determinavam abordagens de
mísseis perigosos e previam o intercâmbio de tecnologia, a elaboração de
mecanismos de tomada de decisões, etc. Essas eram propostas
absolutamente específicas.

Estou convencido de que o mundo seria um lugar diferente hoje, se nossos
parceiros nos EUA tivessem aceitado essa proposta. Infelizmente, não
aconteceu. Podemos ver que a situação está se desenvolvendo em outra
direção; novas armas e tecnologia militar de ponta estão surgindo. Bem,
esta não é a nossa escolha. Mas, hoje, devemos pelo menos fazer todo o
possível para não agravar a situação.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, o senhor é um estudante de história.
E registram-se muitas horas de horas de conversa entre o senhor e Henry
Kissinger. O senhor quase certamente leu o livro dele, /World Order/
[/Ordem Mundial/
<https://www.saraiva.com.br/ordem-mundial-8814825.html>]. Com o Sr.
Trump, vimos algo novo, algo muito mais transacional. Ele é muito
crítico de alianças e aliados na Europa. O senhor vê aí alguma vantagem
para a Rússia?

*Vladimir Putin:* Seria melhor perguntar qual seria a vantagem dos
Estados Unidos, neste caso. O Sr. Trump não é político de carreira. Ele
tem uma visão mundial distinta, e tem sua específica visão dos
interesses nacionais dos EUA. Eu não aceito muitos de seus métodos
quando se trata de resolver problemas. Mas você sabe o que penso? Acho
que o Sr.Trump é pessoa talentosa. Ele sabe muito bem o que seus
eleitores esperam dele.

Rússia foi acusada e, por estranho que pareça, ainda está sendo acusada,
apesar do relato de Mueller, de uma suposta interferência na eleição dos
EUA. O que aconteceu na realidade? Trump olhou para a atitude de seus
oponentes e viu mudanças na sociedade americana, e ele se aproveitou disso.

Você e eu estamos conversando antes da reunião do G20. É um fórum
econômico e, sem dúvida, haverá discussões sobre globalização, comércio
global e finanças internacionais.

*Alguém já pensou em quem realmente se beneficiou e que benefícios foram
obtidos com a globalização, cujo desenvolvimento temos observado e do
qual participamos nos últimos 25 anos, desde os anos 90?*

A China fez uso da globalização, em particular, para tirar milhões de
chineses da pobreza.

O que aconteceu nos Estados Unidos e como isso aconteceu? Nos Estados
Unidos, as principais empresas americanas – as empresas, seus gerentes,
acionistas e parceiros – fizeram uso desses benefícios. A classe média
dificilmente se beneficiou da globalização. O salário líquido nos EUA
(provavelmente falaremos mais tarde sobre a renda real na Rússia, que
precisa de atenção especial do governo). A classe média nos Estados
Unidos não se beneficiou da globalização; ficou de fora quando esse bolo
foi dividido.

A equipe Trump percebeu isso com muita clareza e clareza, e eles usaram
isso na campanha eleitoral. Aí é onde vocês devem procurar razões por
trás da vitória de Trump, em vez de só falar de alguma suposta
interferência estrangeira. É disso que devemos falar aqui, inclusive
quando se trata da economia global.

Acredito que isso possa explicar as decisões econômicas aparentemente
extravagantes e até mesmo as relações do presidente Trump com seus
parceiros e aliados. Porque ele está convencido de que a distribuição de
recursos e benefícios da globalização na década passada foi injusta para
os Estados Unidos.

Não vou discutir se isso é justo ou não, e não vou dizer se o que ele
está fazendo é certo ou errado. Mas, sim, gostaria de entender seus
motivos, que é o que você me perguntou. Talvez isso possa explicar seu
comportamento incomum.

*Lionel Barber:* Eu definitivamente quero voltar para a economia russa.
Mas o que o senhor disse é absolutamente fascinante. Aqui está o senhor,
o Presidente da Rússia, defendendo a globalização junto com o Presidente
Xi, enquanto o Sr. Trump está atacando a globalização e falando sobre
/America First/. Como o senhor explica esse paradoxo?

*Vladimir Putin:* Eu não acho que o desejo do presidente dos EUA de pôr
os EUA em primeiro lugar seja algum paradoxo. Eu quero que a Rússia seja
a primeira, e isso não é percebido como um paradoxo. Não há nada incomum
aí. Quanto ao fato de ele estar atacando algumas manifestações da
globalização, já comentei. O presidente Trump parece acreditar que os
resultados da globalização poderiam ter sido muito melhores para os
Estados Unidos, do que são. Esses resultados da globalização não estão
produzindo o efeito desejado para os Estados Unidos. Assim, o presidente
dos EUA está iniciando essa campanha contra certos elementos da
globalização. É movimento que preocupa todos, principalmente os
principais participantes do sistema de colaboração econômica
internacional, incluindo aliados.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, o senhor teve muitas reuniões com o
Presidente Xi, e Rússia e China definitivamente se aproximaram. O senhor
não estaria pondo muitos ovos na cesta da China? Porque a política
externa russa, inclusive sob sua liderança, sempre teve a virtude de
conversar com todos.

*Vladimir Putin:* Primeiro de tudo, temos muitos ovos, mas há poucas
cestas onde esses ovos podem ser colocados. Este é o primeiro ponto.

Em segundo lugar, avaliamos sempre os riscos.

Em terceiro lugar, as nossas relações com a China não são motivadas por
considerações políticas e oportunismo. Permitam-me salientar que o
Tratado de Amizade com a China foi assinado em 2001, se não estou
enganado, muito antes da situação atual e muito antes das atuais
divergências econômicas, para dizer o mínimo, entre os Estados Unidos e
a China.

Não precisamos nos unir a nada e não precisamos direcionar nossa
política contra ninguém. De fato, Rússia e China não estão direcionando
sua política contra ninguém. Estamos apenas implementando
consistentemente nossos planos para expandir a cooperação. Fazemos isso
desde 2001, e estamos apenas implementando consistentemente esses planos.

Dê uma olhada no que está escrito lá. Não fizemos nada que transcenda a
estrutura daqueles acordos. Portanto, não há nada incomum aqui, e você
não deve procurar por quaisquer implicações da reaproximação sino-russa.
Naturalmente, avaliamos os desenvolvimentos globais atuais; nossas
posições coincidem em vários assuntos da atual agenda global, incluindo
nossa atitude em relação ao cumprimento das regras geralmente aceitas no
comércio, sistema financeiro internacional, pagamentos e liquidações.

O G20 desempenhou um papel muito tangível. Desde a sua criação em 2008,
quando foi deflagrada a crise financeira, o G20 realizou muitas coisas
úteis para estabilizar o sistema financeiro global, para desenvolver o
comércio global e assegurar sua estabilização. Eu estou falando sobre o
aspecto fiscal da agenda global, a luta contra a corrupção, e assim por
diante. China e Rússia aderem a esse conceito.

O G20 realizou muito, defendendo mudanças de cotas no Fundo Monetário
Internacional e no Banco Mundial. Tanto Rússia quanto China compartilham
essa abordagem. Considerando o grande aumento na participação econômica
global dos mercados emergentes, isso é justo e correto, e temos
expressado essa posição desde o início. E estamos contentes que isso
continue a se desenvolver e a seguir em linha com as mudanças no
comércio global.

Nos últimos 25 anos (acho que são 25), a participação dos países do G7
no PIB global caiu de 58% para 40%. Isso também tem efeito, de alguma
forma, nas instituições internacionais. Essa é a posição comum da Rússia
e da China. É posição de justiça, e nada há aí de especial.

Sim, Rússia e China têm muitos interesses coincidentes, é verdade. É
isso que motiva nossos frequentes contatos com o Presidente Xi Jinping.
Naturalmente, também estabelecemos relações pessoais muito calorosas, e
isso é natural.

Portanto, estamos nos alinhando com nossa agenda bilateral que foi
formulada em 2001, mas respondemos rapidamente a desenvolvimentos
globais. Nunca dirigimos nossas relações bilaterais contra ninguém. Não
somos contra ninguém, somos por nós mesmos.

*Lionel Barber:* Estou aliviado que este suprimento de ovos seja forte.
Mas o ponto sério, Senhor Presidente, é que o senhor está familiarizado
com o livro de Graham Allison, /The Thucydides's Trap/ [A Armadilha de
Tucídides (resenha)
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-91992017000300008>].
Há alto risco de tensões ou risco de conflito militar entre uma potência
dominante e uma potência em ascensão, EUA e China. O senhor acha que há
risco de conflito militar, ainda no seu tempo, entre Rússia, EUA e China?

*Vladimir Putin:* Você sabe, toda a história da humanidade sempre esteve
cheia de conflitos militares, mas desde o surgimento das armas nucleares
o risco de conflitos globais diminuiu, devido às potenciais
consequências trágicas globais para toda a população do planeta no caso
de conflito entre dois estados nucleares. Espero que não chegue a isso.

No entanto, é claro, temos que admitir que não se trata apenas dos
subsídios industriais da China, por um lado, ou da política tarifária
dos Estados Unidos, por outro. Em primeiro lugar, estamos falando de
diferentes plataformas de desenvolvimento, por assim dizer, na China e
nos Estados Unidos. Eles são diferentes e o senhor, sendo um
historiador, provavelmente concordará comigo. Eles têm filosofias
diferentes nas políticas externa e interna.

Mas gostaria de compartilhar algumas observações pessoais com o senhor.
Estou apenas observando o que está acontecendo no momento – sobre
relações aliadas com um país ou um confronto com o outro. A China está
mostrando lealdade e flexibilidade aos seus parceiros e opositores.
Talvez haja aí alguma relação com características históricas da
filosofia chinesa, sua abordagem para construir relações.

Por conseguinte, não creio que a China nos faça qualquer ameaça.
Realmente, não consigo imaginar tal coisa. Mas é difícil dizer se os
Estados Unidos teriam paciência suficiente para não tomar decisões
precipitadas, mas respeitar seus parceiros, mesmo que houvesse
divergências. Mas, espero, gostaria de repetir: espero que não haja
nenhum confronto militar.

*Lionel Barber:* Controle de armas. Sabemos que o acordo /INF/ está em
grave risco. Existe algum lugar, do ponto de vista da Rússia, para
futuros acordos de controle de armas, ou estamos em uma nova fase,
quando é provável que vejamos uma nova corrida armamentista nuclear?

*Vladimir Putin:* Acredito que haja tal risco.

Como já disse, os Estados Unidos retiraram-se unilateralmente do Tratado
/ABM/, e recentemente também deixaram o Tratado de Forças Nucleares de
Alcance Intermediário. Mas desta vez, não apenas desistiram, mas
encontraram um motivo para desistir, e esse motivo foi a Rússia. Não
creio que a Rússia signifique algo para eles nesse caso, porque é
improvável que este teatro de guerra, o teatro de guerra na Europa seja
interessante para os EUA, apesar da expansão da OTAN e do contingente da
OTAN perto das nossas fronteiras. O fato permanece: os EUA retiraram-se
do Tratado. Agora, a agenda está focada no Tratado de Redução de Armas
Estratégicas (/New START/). Espero conseguir falar com Donald, se nos
encontrarmos em Osaka.

Dissemos que estamos prontos para manter conversações e estender esse
tratado entre os Estados Unidos e a Rússia, mas não vimos nenhuma
iniciativa relevante de nossos parceiros americanos. Eles ficam em
silêncio, e o tratado expirará em 2021. Se não começarmos as
conversações agora, tudo isso acabará, porque não haveria tempo nem para
as formalidades.

Nossa conversa anterior com Donald mostrou que os americanos parecem
interessados nisso, mas não estão dando qualquer passo prático.
Portanto, se este tratado deixar de existir, não haverá instrumento no
mundo para reduzir a corrida armamentista. E isso é ruim.

*Lionel Barber:* Exatamente. As luvas já foram jogadas. Existe alguma
chance de um acordo triangular entre China, Rússia e EUA sobre forças
nucleares intermediárias, ou isso é sonho? O senhor apoiaria tal fim?

*Vladimir Putin:* Como disse no início, apoiaremos qualquer acordo que
consiga promover nossa causa, isto é, que nos ajude a conter a corrida
armamentista.

Deve-se dizer que, até agora, o nível e a escala de desenvolvimento das
forças nucleares da China são muito mais baixos do que nos Estados
Unidos e na Rússia. A China é uma enorme potência que tem a capacidade
para construir seu potencial nuclear. Isso provavelmente acontecerá no
futuro, mas até agora nossas capacidades são dificilmente comparáveis. A
Rússia e os Estados Unidos são as principais potências nucleares, razão
pela qual o acordo foi assinado entre eles. Sobre a China unir-se a
esses esforços, você pode perguntar aos nossos amigos chineses.

*Lionel Barber:* A Rússia é uma potência do Pacífico, bem como uma
potência europeia e asiática. É uma potência do Pacífico. O senhor viu o
que os chineses estão fazendo em termos de acúmulo de forças na
respectiva Marinha e em sua força marítima. Como o senhor lida com esses
potenciais problemas de segurança, disputas territoriais no Pacífico? A
Rússia tem um papel a desempenhar em um novo arranjo de segurança?

*Vladimir Putin:* Você mencionou o aumento das forças navais na China. O
gasto total da defesa da China é de US$ 117 bilhões, se a memória não me
falha. Os gastos com defesa dos EUA são de mais de US$ 700 bilhões. E
você está tentando assustar o mundo com o aumento do poderio militar da
China? Não funciona com essa escala de gastos militares. Não, não faz
sentido.

Quanto à Rússia, continuaremos a desenvolver nossa Frota do Pacífico,
como planejado. Naturalmente, também respondemos aos desenvolvimentos
globais e ao que acontece nas relações entre outros países. Podemos ver
tudo isso, mas isso não afeta nossos planos de desenvolvimento de
defesa, incluindo nossos planos para o Extremo Oriente da Rússia.

Somos autossuficientes e estamos confiantes. A Rússia é a maior potência
continental. Mas nós temos uma base de submarinos nucleares no Extremo
Oriente, onde estamos desenvolvendo nosso potencial de defesa de acordo
com nossos planos, também para que possamos garantir a segurança na Rota
do Mar do Norte, que estamos planejando desenvolver.

Temos a intenção de atrair muitos parceiros para esse esforço, incluindo
nossos parceiros chineses. Podemos até chegar a um acordo com os
transportadores americanos e com a Índia, que também sinalizou seu
interesse na Rota do Mar do Norte.

Gostaria de dizer que também estamos preparados para a cooperação na
região da Ásia-Pacífico, e tenho motivos para acreditar que a Rússia
pode dar um contributo considerável, tangível e positivo para
estabilizar a situação.

*Lionel Barber:* Podemos apenas dar as costas à Coreia do Norte? Como o
senhor avalia a situação atual? O senhor acredita que, no final,
qualquer acordo ou acordos terão de aceitar o fato de que a Coreia do
Norte possui armas nucleares e que o desmantelamento total simplesmente
não é possível? Se eu puder acrescentar, Senhor Presidente, pergunto-lhe
isso porque a Rússia tem uma fronteira, relativamente pequena sim, mas
ainda assim fronteira, com a Coreia do Norte.

*Vladimir Putin:* Você sabe, quer reconheçamos a Coreia do Norte como
uma potência nuclear ou não, o número de bombas nucleares não diminuirá.
Devemos partir das realidades modernas, que são as armas nucleares que
representam uma ameaça à paz e segurança internacionais.

Outra questão pertinente é de onde esse problema se origina. As
tragédias da Líbia e do Iraque inspiraram muitos países a se pôr a
garantir sua segurança a todo custo.

O que deveríamos estar falando não é como fazer a Coreia do Norte
desarmar-se, mas como garantir a segurança incondicional da Coreia do
Norte e como fazer com que qualquer país, incluindo a Coreia do Norte,
sinta-se seguro e protegido pela lei internacional que seja estritamente
honrada por todos os membros da comunidade internacional. É nisso que
devemos pensar.

Devemos pensar em garantias, que devemos usar como base para conversas
com a Coreia do Norte. Devemos ter paciência, respeitar a Coreia do
Norte e, ao mesmo tempo, levar em conta os perigos decorrentes disso, os
perigos do status nuclear e a presença de armas nucleares.

Naturalmente, a situação atual é repleta de cenários imprevisíveis, que
devemos evitar.

*Lionel Barber:* O senhor obviamente pensou nisso como experiente
analista de política externa e segurança e como estrategista. Como o
senhor vê a situação de segurança do Norte da Ásia nos próximos cinco a
dez anos, se o senhor tem os problemas de Rússia, China, Coreia e Japão?

*Vladimir Putin:* Você disse corretamente que temos uma fronteira comum,
mesmo que pequena, com a Coreia do Norte e que, portanto, esse problema
tem um impacto direto sobre nós. Os Estados Unidos estão localizados do
outro lado do oceano, e o Reino Unido está localizado longe, enquanto
estamos bem aqui, nessa região, e a faixa nuclear norte-coreana não está
longe de nossa fronteira. Por essa razão isso nos preocupa diretamente,
e nunca paramos de pensar nisso.

Gostaria de voltar à resposta que dei à sua pergunta anterior. Devemos
respeitar as legítimas preocupações de segurança da Coreia do Norte.
Devemos demonstrar respeito e devemos encontrar uma maneira de garantir
sua segurança que satisfaça a Coreia do Norte.

Você lembra qual foi a mudança da situação depois que a União Soviética
adotou a política de /détente/? Preciso dizer mais alguma coisa?

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, o senhor está há muito tempo no
poder ou muito próximo do poder. Acho que foi em Davos, quando nos
conhecemos, que eu lhe disse que o senhor não estava no poder, mas
apesar disso, atraía sobre si todos os tiros. Depois de 20 anos no topo
ou perto do topo, seu apetite por risco aumentou?

*Vladimir Putin:* Não aumentou nem diminuiu. O risco deve estar sempre
bem justificado. Mas esse não é o caso, se se pode usar o dito popular
russo: “Quem foge dos riscos, nunca bebe champanhe”. Esse não é o caso.
Muito possivelmente, os riscos são inevitáveis, quando se tem de tomar
certas decisões. Dependendo da escala de qualquer decisão, os riscos
podem ser pequenos ou sérios.

Qualquer processo de tomada de decisão é acompanhado por risco. Antes de
arriscar, é preciso avaliar meticulosamente tudo. Portanto, o risco
baseado em uma avaliação da situação e as possíveis consequências das
decisões é possível e até mesmo inevitável. Riscos insensatos, que
negligenciam a situação real e não compreendem claramente as
consequências, são inaceitáveis, porque podem pôr em risco os interesses
de um grande número de pessoas.

*Lionel Barber:* Que dimensões teve o risco da Síria, em termos de sua
decisão de intervir?

*Vladimir Putin:* Foi suficientemente alto. No entanto, é claro, pensei
cuidadosamente sobre isso com bastante antecedência, e considerei todas
as circunstâncias e todos os prós e contras. Considerei o modo como a
situação em torno da Rússia se desenvolveria e as possíveis
consequências. Discuti esse assunto com meus assessores e ministros,
inclusive os responsáveis pelas agências de aplicação da lei e outros
altos funcionários. Para o longo prazo, decidi que o efeito positivo
para a Rússia e os interesses da Federação Russa de nosso envolvimento
ativo nos assuntos sírios superaria em muito a não-interferência e a
observação passiva de como uma organização terrorista internacional
crescia cada vez mais perto de nossas fronteiras.

*Lionel Barber:* Como foi o retorno em relação ao risco assumido na Síria?

*Vladimir Putin:* Eu acredito que tenha havido retorno bom e positivo.
Conseguimos ainda mais do que eu esperava. Primeiro de tudo, muitos
militantes terroristas que planejavam retornar à Rússia foram
eliminados. São vários milhares de pessoas. Eles estavam planejando
voltar para a Rússia ou países vizinhos com os quais não mantemos nenhum
regime de vistos. Ambos os aspectos são igualmente perigosos para nós.
Esta é a primeira coisa.

Em segundo lugar, conseguimos, de uma forma ou de outra, estabilizar a
situação em uma região próxima. Isso também é muito importante.
Portanto, fortalecemos diretamente a segurança interna da Rússia. Esta é
a terceira coisa.

Em quarto lugar, estabelecemos relações de negócios suficientemente boas
com todos os países da região, e nossas posições na região do Oriente
Médio tornaram-se mais estáveis. De fato, estabelecemos relações muito
boas, semelhantes a empresas, semelhantes a parceiros e em grande parte
aliadas, com muitos países da região, incluindo Irã, Turquia e outros
países.

Principalmente, isso diz respeito à Síria, conseguimos preservar o
Estado sírio, não importa que Estado seja, e evitamos o caos ao estilo
da Líbia. E um cenário de pior caso explicaria as consequências
negativas para a Rússia.

Além disso, gostaria de falar abertamente da mobilização das Forças
Armadas russas. Nossas Forças Armadas construíram uma experiência
prática que não poderiam ter alcançado durante os exercícios de paz.

*Lionel Barber:* O senhor está comprometido com a manutenção do Sr.
al-Assad no poder, ou podemos esperar ver, em algum momento, a Rússia
apoiar a transição na Síria, diferente do que se viu na Líbia?

*Vladimir Putin:* Eu acredito que o povo sírio deve ser livre para
escolher seu próprio futuro. Ao mesmo tempo, gostaria que as ações dos
atores externos fossem substanciadas e, assim como no caso dos riscos
que você mencionou, previsíveis e compreensíveis, para que possamos
considerar, pelo menos, nossos próximos movimentos.

Quando discutimos esse assunto recentemente com a administração anterior
dos EUA, dissemos: suponhamos que Assad renuncie hoje, o que acontecerá
amanhã? Seu colega ri, e, sim, a resposta que recebemos foi muito
divertida. Você nem imagina o quão engraçada foi. Porque nos
responderam: “Não sabemos.” Mas... se você não sabe o que acontecerá
amanhã, por que atirar hoje, sem nem sacar a pistola do coldre? Isso
pode parecer primitivo, mas é assim.

Nós preferimos olhar para os problemas de todos os ângulos possíveis e
não ter pressa. Claro, estamos perfeitamente conscientes do que está
acontecendo na Síria. Existem razões internas para o conflito, e elas
devem ser tratadas. Mas ambos os lados devem fazer a sua parte. Estou me
referindo às partes conflitantes.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, esse mesmo argumento se aplica à
Venezuela? Em outras palavras, o senhor está preparado para ver uma
transição na Venezuela, e absolutamente comprometido com o presidente
Maduro.

*Vladimir Putin:* Ah! E eu pensando que havíamos começado tão bem! Por
favor, não se ofenda com o que vou dizer. Mas, sim, começamos aqui muito
bem, todos nós falando sério. Mas agora você voltou para as visões
estereotipadas sobre a Rússia.

Não temos nada a ver com o que está acontecendo na Venezuela, se você
sabe o que quero dizer.

*Lionel Barber:* O que fazem então, em Caracas, aqueles conselheiros russos?

*Vladimir Putin:* Eu vou responder, se você me deixar terminar. Não há
problema com isso.

Os russos vendemos armas ao presidente Chávez, há muito tempo, sem
quaisquer limites e problemas. Negócios absolutamente legais, como todo
mundo faz em todo mundo, inclusive nos Estados Unidos, no Reino Unido,
na China e na França. Os russos também vendemos armas para a Venezuela.

Assinamos contratos para orientar a manutenção desse equipamento
militar, que estipulam que devemos treinar especialistas locais,
garantir que esse equipamento seja mantido em prontidão de combate, e
assim por diante. Fornecemos serviços de manutenção para este
equipamento. Já disse isso muitas vezes, inclusive para nossos parceiros
americanos: não há tropas russas na Venezuela. Você entende? Sim, há
especialistas e instrutores russos lá. Sim, eles estão trabalhando lá.
Apenas recentemente, creio que há uma semana, um grupo de nossos
consultores e especialistas deixou o país. Mas eles podem voltar.

Temos um acordo que permite que nossas aeronaves participem de
exercícios. E é isso. Estamos regulando as ações dos rebeldes, como
alguns de nossos parceiros estão fazendo, ou as ações do presidente
Maduro? Ele é o presidente, por que controlaríamos suas ações? Ele está
no controle. Se ele está bem ou não, isso é outra questão. Nós não
fazemos nenhum julgamento.

Acredito que muitas coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente
quando se trata da economia. Mas não nos intrometemos em assuntos
internos de outros países: não é da nossa conta. Nós investimos bilhões
de dólares lá, principalmente no setor de petróleo. E daí? Outros países
também estão fazendo o mesmo.

Parece que tudo está sendo defendido por armas russas. Não é verdade.
Não tem nada a ver com a realidade. Onde estão os presidentes
autoproclamados e os líderes da oposição? Alguns deles se refugiaram em
embaixadas estrangeiras e outros estão escondidos. O que temos a ver com
isso? Este problema deve ser resolvido pelo próprio povo venezuelano.
Isso é tudo.

*Lionel Barber:* Apenas apliquei à Venezuela sua teoria e sua
experiência de ver o que aconteceu na Líbia e no Iraque. Supus que,
logicamente, o senhor diria: “Estamos comprometidos com o Sr. Maduro
porque não queremos ver a mudança de regime de fora”. Essa é a posição
russa? Ou o senhor diria: “Vamos apoiar Guaidó, porque temos importantes
interesses petrolíferos na Venezuela”?

*Vladimir Putin:* Estamos preparados para qualquer desdobramento em
qualquer país, inclusive na Venezuela, se forem respeitadas as normas
internas e a legislação do país, a Constituição nacional, considerada a
vontade do povo.

Eu não acho que a independência da Líbia ou do Iraque teria sido
destruída, sem a intervenção que houve lá. Na Líbia, a situação era
absolutamente diferente. De fato, Gaddafi escreveu seus livros lá, expôs
suas teorias – livros e teorias que não satisfaziam padrões específicos,
e seu trabalho prático não atendia às percepções europeias ou americanas
da democracia.

Aliás, o presidente da França disse recentemente que o modelo
democrático americano difere muito do modelo europeu. Implica dizer que
não há padrões democráticos comuns. E você – bem, não você, talvez, mas
nossos parceiros ocidentais, querem que uma região como a Líbia tivesse
os mesmos padrões democráticos que Europa e EUA? A região tem apenas
monarquias ou países com um sistema semelhante ao que existia na Líbia.

Mas tenho certeza de que, como historiador, você concordará realmente
comigo, no que importa. Não sei se você concordará publicamente com isso
ou não, mas é impossível impor padrões democráticos franceses ou suíços,
atuais e viáveis, aos moradores norte-africanos que nunca viveram em
condições de instituições democráticas francesas ou suíças. Impossível,
não é? E eles tentaram impor àqueles povos algo desse tipo. Ou tentaram
impor algo de que nunca tinham conhecido ou ouvido falar. Tudo isso
levou ao conflito e à discórdia intertribal. De fato, a guerra continua
na Líbia.

Então, por que devemos fazer o mesmo na Venezuela? Queremos voltar à
diplomacia de canhoneira? O que precisamos para isso? É necessário
humilhar tanto as nações latino-americanas no mundo moderno e impor
formas de governo ou líderes de fora?

A propósito, trabalhamos com o presidente Chávez porque ele era
presidente. Nós não trabalhamos com o presidente Chávez como indivíduo,
mas trabalhamos com a Venezuela. É por isso que canalizamos
investimentos no setor de petróleo.

E onde planejamos entregar petróleo venezuelano ao investir no setor de
petróleo? Como você sabe, a Venezuela tem um único óleo que é entregue
principalmente nas refinarias dos EUA. O que há de tão ruim nisso?
Queríamos que o setor venezuelano de petróleo e gás operasse de forma
constante, previsível e confiante e que fizesse entregas para as
refinarias dos EUA. Eu não entendo o que há de errado com isso.

Primeiro, eles enfrentaram problemas econômicos, seguidos por problemas
políticos internos. Deixe-os resolver as coisas sozinhos, e esses
líderes chegarão ao poder por meios democráticos. Mas quando uma pessoa
entra em uma praça, levanta os olhos para o céu e se proclama
presidente? Vamos fazer o mesmo no Japão, nos Estados Unidos ou na
Alemanha. O que vai acontecer? Você entende que isso causará o caos em
todo o mundo? É impossível discordar disso. Haverá caos, puro caos. Como
eles poderiam agir assim? Puseram-se a apoiar aquela pessoa [Guaidó].

Poderia ser excelente pessoa. Poderia ser maravilhoso, com planos bons.
Mas apareceu numa praça e proclamou-se presidente? O mundo inteiro
deveria apoiá-lo como presidente? Temos é de dizer que se inscreva,
concorra em eleições e vença. Depois disso, sim, trabalharíamos com ele
como líder do Estado.

*Lionel Barber:* Vamos falar sobre outra democracia na Europa, meu
próprio país. Vai haver uma reunião com a Sra. May, que será uma das
suas últimas reuniões antes de ela demitir-se do cargo de
primeira-ministra. O senhor acha que existe a possibilidade de alguma
melhora nas relações anglo-russas e que podemos sair de algumas dessas
questões que são obviamente de grande sensibilidade, como o caso
Skripal? Ou o senhor acha que vamos ficar presos em congelamento
profundo pelos próximos três, cinco anos?

*Vladimir Putin:* Ouça, todo esse alarido sobre espiões e contraespiões,
não vale o que custa em problemas para relações entre Estados. Esta
conversa de espionagem, como dizemos, não vale cinco copeques. E as
questões relativas às relações entre Estados são medidas em bilhões e
atingem o destino de milhões de pessoas. Como podemos comparar essas coisas?

A lista de acusações e alegações recíprocas poderia continuar
indefinidamente. Eles dizem: “Você envenenou os Skripals.” Para começar:
nada disso foi provado. Em segundo lugar, o cidadão médio ouve e diz:
“Quem são estes Skripals?” Ora, Skripal estava envolvido em espionagem
contra nós [Rússia]. Então, o cidadão russo pergunta: “Por que você nos
espionou usando Skripal? A conversa é sem fim, as perguntas nunca
acabam. Importante é deixar que as agências de segurança lidem com isso.

Mas sabemos que as empresas do Reino Unido (a propósito, tive uma
reunião com nossos colegas britânicos nesta mesma sala) querem trabalhar
conosco, estão trabalhando conosco e pretendem continuar fazendo isso. E
nós apoiamos essa intenção.

Parece-me que a Sra. May, apesar de sua renúncia, não podia deixar de se
preocupar, porque que esses escândalos de espionagem empurraram nossas
relações para um impasse, que nos impede de desenvolver nossos laços
normalmente e de apoiar os empresários. Empresários são pessoas que
criam empregos e agregam valor, além de fornecerem receita em todos os
níveis do sistema tributário de seus países. É trabalho na maioria das
vezes sério e multifacetado, com os mesmos riscos que você mencionou,
incluindo os riscos relacionados às operações de negócios. Se se soma a
isso uma situação política imprevisível, empresários e empresas não
poderão mais trabalhar.

Entendo que tanto a Rússia quanto o Reino Unido estão interessados em
restaurar totalmente nossas relações. Pelo menos espero que se deem
alguns passos preliminares. Eu acho que seria mais fácil para a Sra.
May, talvez, porque ela está saindo e está livre para fazer o que acha
que é certo, importante e necessário sem ter de se preocupar com algumas
consequências políticas domésticas.

*Lionel Barber:* Algumas pessoas podem dizer que uma vida humana vale
mais que cinco centavos. Mas o senhor acredita, Sr. Presidente, o que
quer que tenha acontecido ...

*Vladimir Putin:* Alguém morreu?

*Lionel Barber:* Oh sim. O cavalheiro que tinha um problema com drogas
morreu depois de tocar o Novichok no estacionamento. Quero dizer, alguém
fez isso por causa do perfume. Foi mais do que uma pessoa que morreu,
não os Skripals. Eu sou apenas ...

*Vladimir Putin:* Mas... você acha que tudo isso é absolutamente culpa
da Rússia?

*Lionel Barber:* Eu não disse isso. Eu disse que alguém morreu.

*Vladimir Putin:* Você não pronunciou essas palavras, mas se nada tem a
ver com a Rússia ... Sim, um homem morreu, e isso é uma tragédia,
concordo. Mas o que os russos temos a ver com isso?

*Lionel Barber:* Deixe-me perguntar, e depois realmente quero falar
sobre a economia russa. O senhor acredita que o que aconteceu em
Salisbury enviou uma mensagem inequívoca para quem esteja pensando em
trair o Estado russo, de que o jogo é justo?

*Vladimir Putin:* De fato, a traição é o crime mais grave possível e os
traidores devem ser punidos. Não estou dizendo que o incidente de
Salisbury seja o caminho para isso. De modo nenhum. Mas os traidores
devem ser punidos.

Esse cavalheiro, Skripal, já havia sido punido. Ele foi preso, condenado
e cumpriu pena na prisão. Recebeu sua punição. Para esse assunto, ele
estava fora do radar. Por que alguém estaria interessado nele? Ele foi
punido. Ele foi detido, preso, condenado e passou cinco anos na prisão.
Depois foi libertado. Foi isso.

No que diz respeito à traição, é claro, deve ser punível. É o crime mais
desprezível que se pode imaginar.

*Lionel Barber:* A economia russa. O senhor falou outro dia sobre o
declínio nos salários reais da força de trabalho russa, e o crescimento
da Rússia foi menor que o esperado. Mas, ao mesmo tempo, Senhor
Presidente, o senhor acumula reservas cambiais e reservas internacionais
em cerca de 460 bilhões. O que o senhor está economizando? Qual é o
propósito? O senhor não pode usar um pouco desse dinheiro para aliviar o
lado fiscal?

*Vladimir Putin:* Deixe-me corrigir alguns detalhes muito pequenos. Os
salários reais não estão em declínio na Rússia. Pelo contrário, eles
estão começando a crescer. Há queda na renda disponível para as
famílias. Salários e rendimentos são duas coisas ligeiramente
diferentes. O rendimento é determinado por muitos parâmetros, incluindo
os custos do serviço de empréstimo. As pessoas na Rússia tomam muitos
empréstimos ao consumidor e os pagamentos de juros são contabilizados em
despesas, o que diminui os indicadores de renda real. Além disso, a
economia paralela está passando por legalização. Uma parte substancial
dos trabalhadores independentes – creio que 100.000 ou 200.000, já
legalizaram seus negócios. Isso também afeta a renda real da população,
a renda disponível.

Essa tendência persistiu nos últimos quatro anos. No ano passado
registramos um pequeno aumento de 0,1%. Não é suficiente. Ainda está
dentro da margem de erro. Mas é um dos problemas sérios com os quais
temos de lidar e estamos lidando.

Os salários reais começaram a crescer recentemente. No ano passado houve
um aumento de 8,5%. Este ano, a taxa de crescimento dos salários reais
diminuiu significativamente devido a toda uma série de circunstâncias.
Quero dizer que no ano passado vimos um crescimento de recuperação e há
alguns outros fatores envolvidos. No entanto, continua. E nós realmente
esperamos que isso tenha um efeito sobre a renda real das famílias.

Ainda mais porque ultimamente adotamos uma série de medidas para
acelerar o crescimento das aposentadorias. No ano passado, a taxa de
inflação foi de 4,3% e, com base nesses resultados, no início deste ano,
as pensões foram ajustadas pela inflação em 7,05%. E estabelecemos um
objetivo, uma tarefa – que, estou certo, será cumprida: ajustar as
aposentadorias por uma porcentagem acima da taxa de inflação.

Agora, a renda real também foi afetada porque tivemos que aumentar o IVA
de 18 para 20%, o que afetou o poder de compra das pessoas, porque a
taxa de inflação ultrapassou 5%.

Em outras palavras, esperávamos que o impacto negativo do aumento do IVA
fosse de curto prazo, exatamente o que aconteceu. Felizmente funcionou,
e nossos cálculos se mostraram corretos. Agora a taxa de inflação está
caindo, a situação macroeconômica está melhorando; o investimento está
subindo ligeiramente. Podemos ver que a economia superou as dificuldades
causadas por choques internos e externos. Os choques externos foram
relacionados a restrições e queda nos preços de nossos produtos
tradicionais de exportação. A economia se estabilizou.

A situação macroeconômica no país é estável. Não é acidental e todas as
agências de /rating/ registraram isso. As três principais agências
elevaram nossa classificação de investimento. O crescimento econômico no
ano passado foi de 2,3 por cento. Não consideramos suficiente, e vamos,
é claro, trabalhar para acelerar o ritmo. A taxa de crescimento na
produção industrial foi de 2,9% e até mais alta, chegando a 13% em
algumas indústrias (indústria leve, indústrias de processamento e de
vestuário e várias outras). Portanto, no geral, nossa economia é estável.

Mas a tarefa mais importante que precisamos alcançar é mudar a estrutura
da economia e garantir um crescimento substancial da produtividade do
trabalho por meio de tecnologias modernas, Inteligência Artificial,
robótica e assim por diante. É exatamente por isso que aumentamos o IVA,
para aumentar os recursos orçamentários para executar determinada parte
desse trabalho que é responsabilidade do Estado, a fim de criar
condições para o investimento privado. Deixe-nos levar transporte e
outro desenvolvimento de infraestrutura. Quase ninguém além do Estado
está envolvido nisso. Existem outros fatores relacionados à educação e à
saúde. Uma pessoa que tem problemas de saúde ou não tem treinamento não
pode ser eficiente na economia moderna. A lista continua.

Esperamos realmente que, ao iniciar este trabalho em áreas-chave de
desenvolvimento, possamos aumentar a produtividade do trabalho e usar
essa base para garantir um aumento na renda e prosperidade de nossos
cidadãos.

Quanto às reservas, você também não está exatamente correto. Temos mais
de 500 bilhões em reservas de ouro e moeda estrangeira, não 460 bilhões.
Mas o entendimento é que precisamos criar uma rede de segurança que nos
faça sentir-nos confiantes, e usar o interesse em nossos recursos
existentes. Se tivermos mais 7%, podemos gastar esses 7%.

É isso que planejamos para o próximo ano, e há uma grande probabilidade
de termos sucesso. Não pense que esse dinheiro está parado na gaveta.
Não: no meio tempo, ele gera certas garantias para a estabilidade
econômica da Rússia.

*Lionel Barber:* O Banco Central fez um bom trabalho ao ajudar a
garantir a estabilidade macroeconômica, mesmo que alguns dos oligarcas
queixem-se do fechamento dos bancos.

*Vladimir Putin:* Para começar, como você certamente sabe, já não há
oligarcas na Rússia. Oligarcas são aqueles que usam sua proximidade com
as autoridades, para auferir super lucros. Temos grandes empresas,
privadas ou com participação do governo. Mas não conheço nenhuma grande
empresa que tenha tratamento preferencial por estar perto das
autoridades: não existem.

Quanto ao Banco Central, sim, ele está engajado em uma melhoria gradual
de nosso sistema financeiro: empresas ineficientes e de pequena
capacidade, assim como organizações financeiras semioficiais estão
deixando o mercado – trabalho em larga escala e complicado.

Mas a questão nada tem a ver com oligarcas ou grandes empresas. A coisa
é que isso afeta, infelizmente, os interesses do depositante, a pessoa
média. Temos leis regulatórias relevantes que minimizam as perdas
financeiras das pessoas e criam uma certa rede de segurança para elas.
Mas cada caso deve ser considerado individualmente, é claro.

Em geral, o trabalho do Banco Central, na minha opinião, merece apoio.
Está relacionado tanto com a melhoria do sistema financeiro, quanto com
a política calibrada em relação à taxa básica de juros.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, gostaria de voltar ao Presidente Xi
e à China. Como o senhor sabe, ele fez uma rigorosa campanha
anticorrupção para limpar o partido, manter a legitimidade e fortalecer
o partido. Ele também leu a história da União Soviética, o período em
que Gorbachev essencialmente abandonou o partido e ajudou a destruir o
país – a União Soviética. Acha que o Sr. Xi tem razão na sua abordagem
da questão chinesa? E que lições o senhor tira para a Rússia? Se puder
acrescentar: o senhor disse algo interessante há alguns anos sobre o
colapso da União Soviética, como a maior tragédia geopolítica do século XX.

*Vladimir Putin:* Esses dois problemas não estão conectados. Quanto à
tragédia relacionada com a dissolução da União Soviética, é óbvia. Quis
falar, em primeiro lugar, do aspecto humanitário. Parece que 25 milhões
de russos étnicos viviam no exterior, quando souberam, pela televisão e
pelo rádio, que a União Soviética deixara de existir. Ninguém perguntou
a opinião deles. A decisão foi tomada, e pronto.

O senhor sabe, estas são questões de democracia. Houve uma pesquisa de
opinião, um referendo? A maioria (mais de 70%) dos cidadãos da URSS
falou em favor de manter o Estado soviético. Tomou-se a decisão de
dissolver a URSS, mas ninguém perguntou ao povo. De repente, 25 milhões
de russos étnicos viram-se vivendo fora da Federação Russa. Claro que
foi uma tragédia! Uma grande tragédia! E relações familiares? Empregos?
Distâncias? Foi completo desastre, total desastre.

Fiquei surpreso ao ver os comentários posteriores sobre o que eu disse,
em particular, na mídia ocidental. Precisariam, antes de falar, aprender
a viver tendo o pai, o irmão, qualquer parente próximo convertido em
estrangeiro e vivendo em um país diferente, onde foi preciso recomeçar a
vida, completamente, do zero. Falei sobre isso, algo que o ocidente não
sabe o que seja.

Quanto ao partido e à construção do partido na China, são questões que
competem ao povo chinês decidir; nós não interferimos. A Rússia de hoje
tem seus próprios princípios e regras de vida, e a China, com seus 1,35
bilhão de pessoas, tem as suas. Tente governar um país com essa
população. China não é o Luxemburgo, com todo o respeito a este
maravilhoso país. Portanto, é necessário dar ao povo chinês a
oportunidade de decidir como organizar a própria vida.

*Lionel Barber:* Novamente uma grande questão. No início da nossa
conversa, falei de fragmentação. Outro fenômeno hoje é que há uma reação
popular contra as elites e contra o /establishment./ O senhor viu isso –
o Brexit na Grã-Bretanha. Talvez o senhor estivesse falando sobre a EUA
de Trump. O senhor viu isso com a /AFD/ na Alemanha; o senhor viu na
Turquia; e o senhor viu isso no mundo árabe. Por quanto tempo o senhor
acha que a Rússia pode permanecer imune a esse movimento global de
reação contra o /establishment/?

*Vladimir Putin:* É preciso considerar as diferentes realidades, caso a
caso. Claro, existem algumas tendências, mas elas são apenas gerais. Em
cada caso particular, ao olhar para a situação e como ela se desenrola,
é preciso levar em conta a história do país, suas tradições e realidades.

Por quanto tempo a Rússia continuará sendo um país estável? Quanto mais,
melhor. Porque muitas outras coisas e sua posição no mundo dependem da
estabilidade, da estabilidade política interna. Em última análise, o
bem-estar das pessoas depende, possivelmente principalmente, da
estabilidade.

Uma das razões, a razão interna para o colapso da União Soviética, foi
que a vida era difícil para as pessoas, cujos salários eram muito
baixos. As lojas estavam vazias, e as pessoas perderam o desejo
intrínseco de preservar o Estado.

Achavam que as coisas não poderiam piorar, não importa o que
acontecesse. Acontece que a vida se tornou pior para muitas pessoas,
especialmente no início da década de 1990, quando a proteção social e os
sistemas de saúde entraram em colapso, e a indústria estava
desmoronando. Pode ser ineficaz, mas pelo menos as pessoas tinham
empregos. Depois do colapso, os empregos sumiram. É preciso examinar
cada caso em particular, separadamente.

O que está acontecendo no ocidente? Qual é a razão para o fenômeno
Trump, como você disse, nos Estados Unidos? O que está acontecendo na
Europa também? As elites dominantes se separaram do povo. O problema
óbvio é a diferença entre os interesses das elites e os interesses da
esmagadora maioria do povo.

Claro, devemos sempre ter isso em mente. Uma das coisas que precisamos
fazer na Rússia é nunca esquecer que o propósito da operação e da
existência de qualquer governo é criar uma vida estável, normal, segura
e previsível para o povo e trabalhar em direção a um futuro melhor.

Há também a chamada ideia liberal, que sobreviveu ao seu propósito.
Nossos parceiros ocidentais admitiram que alguns elementos da ideia
liberal, como o multiculturalismo, não são mais sustentáveis.

Quando o problema da migração chegou ao auge, muitas pessoas admitiram
que a política do multiculturalismo não é eficaz e que os interesses da
população central devem ser considerados. Embora aqueles que tiveram
dificuldades por causa de problemas políticos em seus países de origem
precisem de nossa ajuda também. Isso é ótimo, mas e os interesses de sua
própria população? Pergunto, na situação atual, quando o número de
migrantes que se dirigem para a Europa Ocidental não é apenas um punhado
de pessoas, mas milhares ou centenas de milhares?

*Lionel Barber:* Angela Merkel cometeu um erro.

*Vladimir Putin:* Sim, erro grave. Pode-se criticar Trump por sua
intenção de construir um muro entre o México e os Estados Unidos. Pode
ter ido longe demais. Sim, claro que sim. Eu não estou discutindo esse
ponto. Mas Trump tinha de fazer alguma coisa quanto ao enorme fluxo de
migrantes e narcóticos.

Ninguém está fazendo nada. Eles dizem que isso é ruim, que também é
ruim. Diga-me então, o que é bom? O que deveria ser feito? Ninguém
propôs nada. Não quero dizer que um muro deve ser construído ou tarifas
aumentadas em 5% ao ano nas relações econômicas com o México. Não é isso
que estou dizendo, mas algo deve ser feito. O Sr. Trump está pelo menos
procurando uma solução.

O que estou querendo dizer é que quem está preocupados com isso,
norte-americanos comuns, olham para os movimentos do presidente e dizem:
OK. Ele pelo menos está fazendo alguma coisa, sugerindo ideias e
procurando uma solução.

Quanto à ideia liberal, seus proponentes não fazem coisa alguma. Eles
dizem que tudo está bem, que tudo é como deveria ser. Mas... como? Lá
estão, sentados em seus escritórios acolhedores, enquanto os que
enfrentam todos os dias a vida real no Texas ou na Flórida não estão
felizes, e logo terão problemas próprios. Quem está pensando nessas pessoas?

O mesmo está acontecendo na Europa. Discuti essa questão com muitos dos
meus colegas, mas ninguém tem a resposta. Eles dizem que, por várias
razões, não podem seguir uma política de linha dura. Por que exatamente?
Não dizem. Porque sim. Nós temos a lei, eles dizem. Nesse caso, então,
mude a lei!

Temos também alguns problemas próprios nesta esfera. Temos fronteiras
abertas com as antigas repúblicas soviéticas, mas as pessoas pelo menos
falam russo. Você entende o que quero dizer? Além disso, nós, na Rússia,
tomamos medidas para simplificar a situação nessa esfera. Estamos
trabalhando agora nos países de onde vêm os imigrantes, ensinando russo
em suas escolas, e também estamos trabalhando com eles aqui. Endurecemos
a legislação para mostrar que os migrantes devem respeitar as leis,
costumes e cultura do país ao qual chegam.

Em outras palavras, a situação também não é simples na Rússia, mas
começamos a trabalhar para melhorá-la. É mais do que fazem os liberais,
porque a ideia liberal pressupõe que nada precisa ser feito. Os
migrantes podem matar, saquear e estuprar com impunidade, porque seus
direitos como migrantes devem ser protegidos. Sim, mas desde que se
esclareçam quais são esses direitos. Ninguém tem direito de cometer crimes.

Assim sendo, a ideia liberal tornou-se obsoleta. Entrou em conflito com
os interesses da esmagadora maioria da população. Ou considere os
valores tradicionais. Não estou tentando insultar ninguém, porque fomos
condenados por uma suposta homofobia. Verdade é que os russos
absolutamente não temos problemas com pessoas LGBT. Deus nos livre! Que
todos vivam como quiserem. Mas algumas coisas parecem excessivas aos
olhos dos russos.

Eles alegam agora que as crianças podem desempenhar cinco ou seis papéis
de gênero. Eu não posso nem dizer exatamente quais são esses gêneros,
não tenho noção. Que todos sejam felizes, não temos problema com isso.
Mas não se deve permitir que esse ideário se sobreponha à cultura, às
tradições e aos valores familiares tradicionais de milhões de pessoas
que compõem a população principal.

*Lionel Barber:* Isso inclui – isso é muito importante, como o senhor
diz – o fim dessa ideia liberal, porque – o que mais o senhor disse –
imigração descontrolada, fronteiras abertas, definitivamente, como o
senhor diz, a diversidade como um princípio organizador na sociedade? Na
sua avaliação, que outras ideias liberais também terminaram? E o senhor
diria – se eu pudesse acrescentar – que a religião, portanto, deve
desempenhar papel importante em termos de cultura e coesão nacional?

*Vladimir Putin:* A religião deve desempenhar o papel que tenha em cada
momento. [A religião] não pode ser empurrada para fora deste espaço
cultural. Nós não devemos abusar de nada.

A Rússia é uma nação cristã ortodoxa e sempre houve problemas entre o
cristianismo ortodoxo e o mundo católico. Exatamente por isso tenho
algumas palavras sobre os católicos. Há aí algum problema? Sim, há, mas
os problemas não podem ser exagerados e usados para destruir a própria
Igreja Católica Romana. O que não se pode admitir.

Às vezes, tenho a impressão de que esses círculos liberais estão
começando a usar certos elementos e problemas da Igreja Católica como
ferramenta para destruir a própria Igreja. Aí é que está o que me parece
incorreto e perigoso.

Será que todos esquecemos de que todos nós vivemos em um mundo baseado
em valores bíblicos? Até os ateus e todos os outros vivem neste mundo.
Nós não temos que pensar sobre isso todos os dias, frequentar a igreja e
orar, mostrando assim que somos cristãos devotos ou muçulmanos ou
judeus. No entanto, no fundo, deve haver algumas regras humanas
fundamentais e valores morais. Nesse sentido, os valores tradicionais
são mais estáveis e mais importantes para milhões de pessoas do que essa
ideia liberal, que, na minha opinião, está realmente se esvaindo,
deixando de existir.

*Lionel Barber:* Então o senhor está dizendo que a religião não é o ópio
das massas?

*Vladimir Putin:* Não, não é. Mas tenho a impressão de que você esqueceu
os ensinamentos religiosos, porque já são 12h45, horário de Moscou, e
continua a me torturar. Como dizemos aqui, “Será que você não teme o
castigo divino?” (Risos)

*Lionel Barber:* Aqui estamos fazendo história. Esperei muito tempo por
essa oportunidade. Tenho uma última pergunta. E obrigado pelo seu
[interrupção] – continue por favor.

*Vladimir Putin:* Por favor, vá em frente.

*Henry Foy:* Senhor Presidente, estava pensando sobre o que o senhor
acabou de dizer: alguns dos temas a que se refere repercutiriam em
pessoas como Steve Bannon, o próprio senhor Trump e os grupos da Europa
que chegaram ao poder. O senhor acha que, se a ideia liberal acabou,
seria agora a vez dos ‘iliberais’ [ing. ‘/iliberals/’]? E o senhor vê
aumentar no mundo o número de novos aliados que veem a existência humana
como o senhor a vê hoje?

*Vladimir Putin:* Você sabe, parece-me que ideias puramente liberais ou
puramente tradicionais nunca existiram. Provavelmente, eles existiram
uma vez na história da humanidade, mas tudo muito rapidamente termina em
impasse, se não houver diversidade; de um modo ou de outro, tudo começa
a ficar extremo.

Várias ideias e várias opiniões devem ter a chance de existir e
manifestar-se, mas ao mesmo tempo os interesses do público em geral,
daqueles milhões de pessoas e suas vidas, nunca devem ser esquecidos.
Isso é o que não se pode negligenciar.

Então, parece-me, poderíamos evitar grandes transtornos e problemas
políticos. Isso também se aplica à ideia liberal. Não significa que
tenha de ser imediatamente destruída – e acho que está deixando de ser
um fator dominante. Esse ponto de vista, esta posição, também deve ser
tratada com respeito.

Mas os liberais não podem simplesmente ditar qualquer coisa para alguém,
como têm tentado fazer nas últimas décadas. O /diktat/ pode ser visto em
todos os lugares: tanto na mídia quanto na vida real. Até mencionar
alguns tópicos é declarado impróprio. Mas por quê?

Por essa razão, não sou fã de fechar, amarrar, fechar, desmanchar tudo,
prender todo mundo ou dispersar todo mundo. Claro que não. A ideia
liberal também não pode ser destruída; tem o direito de existir e deve
mesmo ser apoiada em algumas coisas. Mas ninguém tem qualquer
autorização para se apresentar como o fator dominante absoluto. Esse é o
ponto.

*Lionel Barber:* O senhor está na mesma página, que Donald Trump. Senhor
Presidente, o senhor está no poder há quase 20 anos.

*Vladimir Putin:* 18 anos.

*Lionel Barber:* O senhor já viu muitos líderes mundiais. Quem o senhor
mais admira?

*Vladimir Putin:* Pedro, o Grande.

*Lionel Barber:* Mas ele está morto.

*Vladimir Putin:* Ele viverá enquanto sua causa estiver viva. Também
vale para nós e a causa de cada um de nós. (Risos) Nós viveremos
enquanto nossa causa viver.

Se você quer dizer algum líder atual, das pessoas com as quais podia me
comunicar, fiquei muito seriamente impressionado com o ex-presidente da
França, o Sr. Chirac. Um verdadeiro intelectual, verdadeiro professor,
homem muito equilibrado e muito interessante. Quando era presidente,
tinha sua própria opinião sobre cada assunto, sabia como defendê-la e
sempre respeitava as opiniões de seus parceiros.

Na história moderna, tendo uma visão mais ampla, há muitas pessoas boas
e muito interessantes.

*Lionel Barber:* Pedro, o Grande, o criador da Grande Rússia. Precisa
dizer mais alguma coisa? A minha última pergunta, Senhor Presidente.
Grandes líderes sempre preparam a sucessão. Lee Kuan Yew
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lee_Kuan_Yew> preparou a sucessão. Então,
compartilhe conosco qual seria o processo pelo qual seu sucessor será
escolhido.

*Vladimir Putin:* Posso dizer sem exageros que sempre penso sobre isso,
desde 2000. A situação muda e certas demandas sobre as pessoas também
mudam. No final – e digo-o isso sem teatralidade ou exagero –, no final,
a decisão deve ser tomada pelo povo da Rússia. Não importa o que e como
o líder atual faz, não importa quem ou como ele representa, é o eleitor
que tem a palavra final, o cidadão da Federação Russa.

*Lionel Barber:* Então a escolha será aprovada pelo povo russo em uma
votação? Ou através da Duma?

*Vladimir Putin:* Por que através da Duma? Por meio de voto secreto,
direto, universal. Claro, é diferente do que você tem na Grã-Bretanha.
Nós somos um país democrático. (Risos)

Em seu país, um líder foi embora, e o segundo líder, que é para todos os
efeitos, a principal figura do Estado, não é eleito pelo voto direto do
povo, mas pelo partido no poder.

É diferente na Rússia, pois somos um país democrático. Se nossos altos
funcionários saírem por algum motivo, porque querem se aposentar da
política como Boris Yeltsin, ou porque seu mandato termina, realizamos
uma eleição por meio de voto secreto direto universal.

O mesmo acontecerá neste caso. É claro que o líder atual sempre apóia
alguém, e esse apoio pode ser substancial, se a pessoa apoiada tiver o
respeito e a confiança das pessoas, mas no final, a escolha é sempre
feita pelo povo russo.

*Lionel Barber:* Eu resisto a apontar que o senhor assumiu como
presidente antes da eleição.

*Vladimir Putin:* Sim, isso é verdade. E daí? Eu estava atuando como
presidente e, para ser eleito e me tornar o chefe de Estado, tive que
participar de uma eleição, o que fiz.

Sou grato ao povo russo por sua confiança naquela época e depois disso,
nas eleições seguintes. É uma grande honra ser o líder da Rússia.

*Lionel Barber:* Senhor Presidente, obrigado pelo tempo que dedicou ao
/Financial Times/, em Moscou, no Kremlin.

*Vladimir Putin:* Obrigado por seu interesse nos eventos na Rússia e seu
interesse no que a Rússia pensa sobre os atuais assuntos internacionais.
E obrigado por nossa interessante conversa hoje. Pareceu-me muito
interessante. Muito obrigado.

In
BRASIL 247
https://www.brasil247.com/mundo/putin-ao-financial-times-elites-dominantes-se-separaram-do-povo
29/6/2019

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