segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas distraídas




por Aldo Fornazieri

Se as esquerdas não tiverem senso de prioridade e não souberem travar a
luta no campo que lhes é favorável e desvantajoso para Bolsonaro terão
um segundo semestre de derrotas.


Insistir no tema da crise e defensiva das esquerdas não é uma
predileção. É uma necessidade, em face das derrotas alarmantes que elas
colheram no primeiro semestre e da tendência de não apresentarem uma
estratégia relevante no segundo semestre. Na próxima semana começa o
segundo semestre político do país. Não há nenhum sinal de que as
esquerdas estejam preparadas para enfrenta-lo, pois não apresentaram, ao
menos até agora, nenhuma agenda, nenhuma estratégia. Permanecem na
penúria e na sonolência que as caracterizaram no primeiro semestre.

No primeiro semestre Bolsonaro primou em distrair as esquerdas e as
esquerdas se esmeraram em ser distraídas por Bolsonaro. O fato concreto
é que Bolsonaro está na ofensiva e as esquerdas na defensiva. Lançando
uma profusão de temas diversionistas e secundários para o debate do que
interessa para o país, como armas, cadeirinhas de crianças, fiscalização
de motoristas nas estradas, declarações homofóbicas e machistas,
reverência a Trump e aos Estados Unidos e assim por diante, ele vai
conseguindo pautar as esquerdas com esses temas culturalistas,
ideológicos e moralistas. Não que este embate não deva ser feito, mas
ele não é o principal para uma estratégia de esquerda. Em sendo a
sociedade conservadora, debater esses temas pautados pela agenda
conservadora do Bolsonaro significa perder.

Bolsonaro promove o confronto ideológico porque sabe que este lhe é
favorável e porque é um dos poucos trunfos que tem neste momento. Com a
economia travada e com o Estado sem recursos este debate lhe é
conveniente: vai fincando estacas ideológicas, conservadoras e
moralistas esperando uma virada na economia. No momento em que esta
vier, ele recuperará popularidade perdida e terá erguido uma barreira de
avanço conservador na sociedade. A sociedade poderá assumir contornos
ainda mais conservadores se a economia se recuperar. Esta é a aposta de
Bolsonaro.

As esquerdas não conseguirão enfrentar de forma inteligente o
conservadorismo de Bolsonaro no terreno e nos termos que são favoráveis
a ele. A agenda culturalista e a política da moralidade não podem ser os
pontos prioritários de uma estratégia das esquerdas. A agenda
conservadora e a política de valores deve sempre ser acompanhadas pelos
interesses concretos da sociedade. A disputa da hegemonia não é só
cultural ou prioritariamente cultural.  Ela precisa partir do concreto
para o abstrato, do empírico para a ideologia, do desemprego de 15
milhões de trabalhadores para a noção de bem estar e de direitos, da
desigualdade e dos privilégios inaceitáveis para a ideia de uma
sociedade justa… e assim indefinidamente. A disputa pela hegemonia, como
ensinou Gramasci, envolve principalmente os interesses concretos.

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O fato é que se Bolsonaro sequer fala ou se preocupa com o desemprego e
a desigualdade, as esquerdas não têm esses pontos como prioridades em
sua agenda e não mobilizam em torno deles. Não têm os desmanches na
saúde e o meio ambiente como pontos cruciais no enfrentamento de
Bolsonaro. Não têm a dramática e trágica situação das periferias como
algo do seu interesse e de sua ação. Abandonaram a pauta da violência
nas mãos de Sérgio Moro.

As esquerdas estão distraídas com os temas diversionistas de Bolsonaro,
com Sérgio Moro, com o The Intercept, com a interminável incapacidade da
campanha Lula Livre, com o combate ao fascismo conceito que a maioria
esmagadora do povo sequer sabe o que significa. A tática das esquerdas
consiste exatamente no seguinte: esquecer-se do principal e transformar
o secundário em prioridade.

Chega a impressionar a incongruência das esquerdas: seguindo teses
equivocadas de Marilena Chauí e de outros sociólogos, elas se
especializaram em hostilizar as classes médias, mas as suas pautas
políticas são formadas prioritariamente por temas das classes médias. O
problema estratégico das esquerdas não está na hostilização e nem na
capitulação a temas das classes médias. O problema é ganhar e organizar
o povo pobre e as periferias e puxar as classes médias para uma aliança.
Nesta questão o Brasil caminha de forma esquizofrênica: FHC promoveu uma
aliança das classes médias com os ricos fazendo-as crer que poderiam ser
ricas. Lula e o PT promoveram uma aliança dos pobres com as elites
fazendo-os crer que eles haviam sentado na mesa da prosperidade para sempre.

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As esquerdas, especialmente o PT, se especializaram em se autovitimizar.
A responsabilidade por suas derrotas nunca são dos seus erros. Não fazem
autocrítica e mal aceitam críticas. Os culpados por suas derrotas são as
elites, a grande imprensa, as classes médias, os bancos, o império
americano, as conspirações internacionais etc. Tudo isto existe, é
claro, como sempre existiu. E tudo isto precisa ser levado em
consideração na definição de uma estratégia. Não dá para se aliar às
elites, aos bancos e depois culpa-los pelas próprias derrotas.

O fato é que essa lamúria autovitimizadora vai criando gerações de
derrotistas na militância. Cria-se a crença de que nunca será possível
vencer os poderosos. A ideologia do derrotismo e da impotência é uma
causa importante das derrotas das esquerdas. Mas aqui também há uma
esquizofrenia: a contraface da ideologia do derrotismo é a ilusão de
vitórias certas. Vitórias que não se sabe de onde virão, pois seriam
vitórias sem luta.

As esquerdas precisam compreender que o povo nunca avançará na
consolidação de conquistas e vitórias se a luta não for travada no
terreno da organização popular e da ação de massas. Qualquer luta
institucional só terá alguma consequência se houver força popular
organizada. Vitórias fora desse contexto serão epifenômenos, prelúdios
de novos retrocessos.  O capitalismo predatório que existe no Brasil não
lida com considerações civilizatórias, com princípios de direitos
liberais, com a consagração da institucionalidade democrática e do
Estado de Direito. Ou isto será garantido pela organização popular ou
estará sempre ameaçado por predadores inescrupulosos. Qualquer
estratégia consequente precisa ter como pressuposto a força social e
popular organizada.

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Os líderes partidários das esquerdas precisam ter enraizamento social e
legitimidade popular. Falam em Lula, mas não seguem Lula. Lula estava
onde o povo estava. Nunca foi general de gabinete. Os partidos precisam
abrir as portas para a juventude, para a renovação, se não quiserem se
estiolar no tempo. A militância precisa ser dirigida e orientada. Não
pode continuar nesta situação de abandono e sem moral para o combate. Os
lacrimosos argumentam que as esquerdas estão fracas no parlamento,
agregando apenas 131 deputados. Mas nunca pode ser esquecida a bancada
do PT na Assembleia Constituinte que tinha apenas 16 deputados e foi
capaz de grandes feitos, de grandes combates, ao mesmo tempo em que
tinha a sabedoria e a astúcia para negociar.

Se as esquerdas quiserem ter alguma relevância no segundo semestre
precisam dar prioridade à luta contra o desemprego, as desigualdades e
os privilégios; à luta por direitos; à luta contra a destruição da
educação e da saúde; à luta por moradia popular; à luta pela preservação
ambiental, dos territórios indígenas e das reservas ambientais, formando
uma grande frente para isto. A luta pela democracia, por Lula Livre,
pela reforma tributária com justiça fiscal, contra a violência, pela
defesa das instituições científicas e das universidades e as lutas das
políticas da moralidade devem vir adensadas àquelas lutas prioritárias.
Se as esquerdas não tiverem senso de prioridade e não souberem travar a
luta no campo que lhes é favorável e desvantajoso para Bolsonaro terão
um segundo semestre de derrotas.

*Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).*
In
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/as-esquerdas-distraidas-por-aldo-fornazieri/
29/7/2019


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