quinta-feira, 11 de julho de 2019

Reforma da Previdência e precarização do trabalho aumentarão desigualdades, afirma Piketty



“Na prática, milhões não chegariam a se aposentar ou, com "sorte",
seriam transferidos para a assistência social, mas suas contribuições
não seriam nem devolvidas. Como são trabalhadores em empregos precários,
aumentar seu tempo de contribuição não significa combater privilégios,
mas aumentar a desigualdad", afirma o professor e economista Thomas
Piketty, um dos mais respeitados do mundo em seu campo de pesquisa



*247 - *“O Brasil discute uma reforma da previdência que tende a
aumentar desigualdades, embora sua propaganda aluda ao combate de
privilégios”, diz o professor e economista Thomas Piketty, um dos mais
respeitados mundialmente em seu campo de pesquisas em um artigo
publicado no jornal *Valor Econômico*. O artigo, feito em co-autoria com
os economistas Marc Morgan e Amory Gethin, pesquisadores da PSE, e pelo
professor e pesquisador Pedro Paulo Zahluth Bastos, da Universidade de
Campinas (Unicamp), demonstra que o aumento da idade mínima para a
aposentadoria, associada à precarização cada vez maior do mercado de
trabalho, deverá deixar milhões de brasileiros sem acesso à Previdência.

“Na prática, milhões não chegariam a se aposentar ou, com "sorte",
seriam transferidos para a assistência social, mas suas contribuições
não seriam nem devolvidas. Como são trabalhadores em empregos precários,
aumentar seu tempo de contribuição não significa combater privilégios,
mas aumentar a desigualdade. Significa retirar recursos de muitos
trabalhadores pobres e vulneráveis que não conseguirão se aposentar”,
dizem os autores.

Leia a íntegra do artigo

A quem interessa aumentar a desigualdade?

O Brasil discute uma reforma da previdência que tende a aumentar
desigualdades, embora sua propaganda aluda ao combate de privilégios. O
país também se prepara para debater uma reforma tributária de modo
independente da previdência. Se a redução das desigualdades fosse
finalidade das reformas, as mudanças na previdência deveriam ser outras.
E ambas as reformas deveriam ser debatidas conjuntamente.

A reforma da previdência proposta aumenta muito a desigualdade de acesso
à aposentadoria. Muitos brasileiros pobres começam a trabalhar muito
cedo, mas não conseguem contribuir pelos 20 anos exigidos para obter a
aposentadoria parcial, para não falar dos 40 anos para a aposentadoria
integral.

Nas regras atuais, a primeira alternativa para aposentadoria é somar um
tempo mínimo de contribuição (30 anos para mulheres e 35 para homens)
com sua idade para alcançar um período de 86 anos para mulheres e 96
para homens, que aumentará a cada dois anos até chegar à soma 90/100 em
2027. A segunda opção é alcançar a idade mínima de 60 anos para mulheres
e 65 para homens, com pelo menos 15 anos de contribuição. A desvantagem
é o desconto do valor da aposentadoria pelo "fator previdenciário" que
varia com a idade, o tempo de contribuição e a expectativa de sobrevida.

A proposta atual elimina a primeira opção. Aumenta a idade mínima
feminina para 62 anos (com os mesmos 15 anos de contribuição) e mantem
65 anos para homens, mas exige 20 anos de contribuição. Também reduz a
aposentadoria integral (obtida com 40 anos de contribuição) e aumenta o
desconto da aposentadoria parcial (entre 20 e 39 anos de contribuição).

O problema é que os cidadãos que só conseguem se aposentar hoje por
idade são trabalhadores precários que estão longe de alcançar o tempo de
contribuição exigido nas novas regras: 56,6% dos homens e 74,82% das
mulheres não alcançam. Em média os homens só conseguem contribuir 5,1
vezes por ano, e as mulheres 4,7 vezes, segundo estudo de Denise Gentil
(UFRJ) e Claudio Puty (UFPA) para a Anfip.

Se precisarem contribuir mais 60 meses, supondo que continuem empregados
e consigam contribuir no mesmo ritmo na velhice (o que é uma proposição
absurda), a idade mínima real de aposentadoria parcial seria 74,8 anos
para mulheres e 76,8 para homens, na média. Na prática, milhões não
chegariam a se aposentar ou, com "sorte", seriam transferidos para a
assistência social, mas suas contribuições não seriam nem devolvidas.

Como são trabalhadores em empregos precários, aumentar seu tempo de
contribuição não significa combater privilégios, mas aumentar a
desigualdade. Significa retirar recursos de muitos trabalhadores pobres
e vulneráveis que não conseguirão se aposentar.

De nada adianta reduzir a alíquota mensal de contribuição para os pobres
se a contribuição se alonga por mais 60 meses e, no fim, nem garante a
aposentadoria. O incentivo é para que não contribuam, o que coloca em
risco até o pagamento das atuais aposentadorias.

O risco ao sistema advém igualmente do fim da contribuição fiscal dos
empregadores, como a Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL). Com o PIS-Pasep, somam cerca de metade das receitas da
Seguridade Social.

A proposta atual retira as contribuições fiscais do financiamento das
aposentadorias (mantendo-as na Seguridade). O financiamento tripartite
da aposentadoria acabaria, no sentido em que a reforma deixaria apenas o
contrato de trabalho formalizado entre o trabalhador e seu empregador
como fonte de recursos (através da contribuição previdenciária sobre a
folha salarial).

Isto tudo provavelmente já inviabilizaria o sistema, mas para completar
o governo Bolsonaro promete reforma tributária que libera o empregador
de contribuir para a Previdência com uma percentagem da folha salarial,
além de abolir a Cofins e a CSLL.

Em um país tão desigual, deixar apenas os trabalhadores e, a depender da
reforma tributária, talvez os empresários como responsáveis por um
sistema contributivo de aposentadoria é condenálo, especialmente nas
circunstâncias atuais. A crise e o desemprego levaram 6,2 milhões de
trabalhadores e milhares de empresas a deixaram de contribuir para o
sistema, contraindo as receitas em cerca de R$ 230 bilhões entre 2014 e
2017 em termos reais.

Para completar, o desvio das contribuições sociais da Seguridade Social
para o Tesouro aumentou de 20% para 30% em 2016, saltando da média de R$
alta 63,4 bilhões entre 2013-2015 para nada menos que R$ 113 bilhões em
2017.

Foi a crise econômica que contribuiu para o déficit, e não o contrário.
Quando a crise for superada, porém, não é provável que as receitas se
recuperem o suficiente caso o emprego do futuro venha sem contribuição
empresarial sobre a folha salarial.

Se, como hoje, a solução proposta para a insuficiência de receitas no
futuro for elevar de novo a idade mínima, a alíquota média e o tempo de
contribuição, qual segurança jurídica terão os trabalhadores para serem
incentivados a contribuir para a previdência pública mesmo que tenham
empregos estáveis?

Em suma, trabalhadores com emprego e renda precários não terão
capacidade de alcançar o tempo de contribuição requerido para se
aposentar, enquanto trabalhadores com emprego estável e maior renda não
terão incentivos para contribuir para um sistema insustentável.

É por isso que, se o objetivo for realmente combater privilégios e
reduzir desigualdades, a proposta deveria, primeiro, explicar em detalhe
as projeções atuariais e demográficas que justificam atrasar e até
inviabilizar a aposentadoria de milhões de brasileiros pobres. Segundo,
deveria focar no topo do funcionalismo público e não nos trabalhadores
pobres e precários.

Nas projeções do governo para a proposta original, no entanto, a suposta
"justiça fiscal" com o aumento das alíquotas de contribuições de
funcionários públicos representa 1% da economia, enquanto 91% (R$ 4,1
trilhões em 20 anos) viria da assistência social e do regime geral, onde
90% dos aposentados recebem até 2 salários mínimos.

Terceiro, a reforma previdenciária deve ser necessariamente
complementada pela reforma tributária, mantendo o financiamento
tripartite da Previdência, mas combatendo os privilégios na tributação.
Afinal, o Brasil parece um paraíso fiscal para detentores de capital e
para a elite de profissionais de alta renda.

Quase metade da receita de impostos (49,19% em média entre 2008 e 2017)
vem embutida em bens e serviços que não distinguem o consumidor
miserável do endinheirado. Como o pobre consome tudo ou quase tudo o que
ganha, paga proporcionalmente mais impostos que o rico.

Por sua vez, a alíquota máxima do imposto de renda (27,5%) captura tanto
o assalariado de R$ 5 mil quanto o de R$ 10 milhões. Já o detentor do
capital simplesmente não paga imposto pessoal sobre sua renda em lucros
e dividendos. Profissionais que prestam serviços como pessoas jurídicas
têm o mesmo privilégio. Outra jabuticaba brasileira é que as empresas
deduzem o "pagamento" de juros sobre seu "capital próprio", o que
aumenta os lucros distribuídos sem impostos.

Combater estes privilégios pode levantar bem mais de R$ 100 bilhões ao
ano como quer o governo. Ademais, a sonegação se aproximou de R$ 620
bilhões em 2018, segundo nova estimativa do Sinprofaz. Isto é muito mais
que a economia com o corte de aposentadorias e pensões proposto pelo
governo Bolsonaro. Isto sem falar de outras isenções e das dívidas
tributárias.

Ainda é tempo de debater com honestidade como combater privilégios e
reduzir desigualdades. Porém, levar adiante a reforma da previdência nos
termos atuais tornaria o Brasil um exemplo mundial de como destruir um
sistema solidário de previdência e aumentar a desigualdade.

Thomas Piketty é diretor da l´Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales (EHESS) e professor da Paris School of Economics (PSE).

Marc Morgan e Amory Gethin são pesquisadores do World Inequality Lab da
PSE.

Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor do IE-Unicamp e pesquisador do
Cecon-Unicamp.


In
BRASIL247
https://www.brasil247.com/economia/reforma-da-previdencia-e-precarizacao-do-trabalho-aumentarao-desigualdades-afirma-piketty
11/7/2019

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