terça-feira, 30 de julho de 2019

A fraqueza da ilusão democrática: um ensaio político não sentimental




    O golpe de 2016 e a posterior eleição de Bolsonaro impõem um sério e
    profundo reexame da trajetória da esquerda brasileira nas últimas
    décadas. Não é mais possível depois dessa vergonhosa derrota
    política e moral continuar com "mais do mesmo", como, por exemplo,
ainda manter esperanças no STF ou em votações na Câmara dos Deputados.


O ano de 2016 foi emblemático na história política brasileira. O Partido
dos Trabalhadores (PT), organização política surgida no bojo da
resistência à ditadura empresarial-militar, originalmente com tendências
pronunciadamente socialistas, foi despojado da Presidência da República.
O PT tem que viver com a amarga experiência de redescobrir a existência
da luta de classes, do imperialismo, da não-neutralidade republicana dos
aparelhos do Estado etc. Marilena Chaui, lamentavelmente, também teve
que lembrar que o maior mal do mundo não reside na “classe média” paulista.

Aparentemente, a burguesia brasileira, em suas diversas frações, não
aprendeu o respeito bobbiano às regras do jogo. Já a esquerda
pós-comunista, como muitos queriam nos anos 1980 do século XX, aprendeu
o “valor da democracia”: as principais tendências da esquerda nos
últimos trinta anos respeitaram religiosamente os limites impostos pela
democracia burguesa no Brasil e, de tanto respeitarem, como prezam as
regras explícitas, mas não ditas do jogo, passaram a ser fiéis gerentes
do sistema.

As esperanças brasileiras no processo de redemocratização – que optamos
por chamar de otimismo democrático – foram derrotadas. Aliás, mais que
isso, esperava-se dos anos 1980 uma oportunidade única para combater o
“autoritarismo” e a “exclusão social” históricos da formação
socioeconômica brasileira.

Inegavelmente, o otimismo tinha uma razão de ser. Afinal não é em toda
conjuntura histórica que, depois de mais de duas décadas de ditadura,
emerge um pulsante movimento operário e popular. Tudo podia acontecer.
E, no que é essencial, nada aconteceu. O sistema político brasileiro
continuou fundamentado numa democracia restringida e com uso dilatado do
terrorismo de Estado por meio de uma política sistemática de extermínio
frente a segmentos da classe trabalhadora – notadamente, a população
negra das favelas brasileiras.

No ano do golpe parlamentar, pudemos constatar que o Estado brasileiro
mata, tortura e viola mais os direitos humanos que na época da ditadura
empresarial-militar. O extermínio sistemático – enquanto política de
Estado – segue firme e encontra até uma forma jurídica e constitucional
para sua reprodução: os autos de resistência (Zaccone, 2014). A
militarização da vida social não parou de crescer: um soldado do
Exército Brasileiro passa, em média, cem dias do ano em atividades
“internas” (policiamento) – ver a coletânea /Até o último homem/
<https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/ate-o-ultimo-homem-450>,
organizada por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira.

Ironicamente, Orlando Zaccone pergunta “o que resta da ditadura?” E
responde, ecoando Tales Ab’Saber, tudo, menos a ditadura! A democracia
burguesa é bem mais parecida com a ditadura militar burguesa do que
suspeitava o otimismo democrático dos anos 80. Porém, curiosamente, a
cada nova constatação de que a democracia e o famoso “Estado de Direito”
estão longe das ideias dos livros e dos discursos, os setores
hegemônicos da esquerda, ao invés de questionarem a própria ideia de
democracia abraçada, optam por reforçar suas convicções anteriores
insistindo que a democracia é pouco democrática e precisa ser
democratizada^1 <#_ftn1>. Num ciclo de imunidade auto-atribuída, o
problema da democracia se resolve com mais democracia e cada “regressão
democrática” deve ser respondida com uma defesa mais enfática da democracia.

O objetivo dessa reflexão é debater a regressão democrática da
democracia, abordar o processo de retirada dos direitos democráticos da
classe trabalhadora no âmbito da democracia burguesa e o consequente
empobrecimento teórico e político dos setores majoritários da esquerda
brasileira e mundial na crítica à democracia realmente existente. A
chave analítica fundamental que guiará nossa análise é a /distinção
política e teórica/ entre /direitos democráticos/ e /democracia
burguesa/, buscando demostrar as diferenças e os desencontros entre
ambos e como a confusão entre as duas produziu nas últimas décadas um
enfraquecimento significativo na crítica e nas possibilidades
revolucionárias.


    *Somos todos democratas*

Na história de organização da classe trabalhadora, desde a gênese do
capitalismo, sempre houve concepções diferentes do que é democracia. Até
mesmo nas revoluções burguesas europeias, especialmente francesa e
inglesa, é possível identificar setores mais radicalizados que
apresentavam propostas avançadas do que chamaríamos hoje de soberania
popular e igualdade social – como o caso do jacobinismo, na França.

A primeira grande expressão da maturidade organizativa e política da
classe operária europeia, a socialdemocracia, continha um projeto de
democracia antagônico ao defendido pela classe dominante: o liberalismo,
expressão ideológica da burguesia, compreendia uma concepção
jurídico-formal e restritiva de democracia (igualdade jurídica e
direitos políticos apenas para os homens brancos, proprietários e
europeus) e descarta qualquer conteúdo “social” na dimensão do regime
político.

A socialdemocracia apresentava uma concepção ampla de democracia,
alargando a esfera dos iguais e dos portadores de direitos políticos e
exigindo, de forma indispensável, que a democracia tivesse um conteúdo
social: o fim da propriedade privada e da anarquia na produção,
compreendidos, à época, como os principais elementos do capitalismo,
eram determinantes fundamentais da realização da verdadeira democracia.

Durante boa parte do século XX, por matrizes diferentes, houve um
confronto entre concepções diferenciadas de democracia. Esse gigantesco
embate teórico e político foi esvaziado nos anos 1980. De 1917 até a
década de 1970 – entre grandes derrotas, como a Revolução Alemã e a
Guerra Civil Espanhola, e grandes vitórias, como as revoluções Russa,
Chinesa, Cubana e Coreana – o conflito entre capital e trabalho no
âmbito mundial encontrava-se numa situação de relativo equilíbrio.
Embora a maioria do mundo fosse capitalista, a distância entre, por um
lado, as forças do capital e, por outro, as forças dos povos coloniais e
da classe trabalhadora, não era tão discrepante e existiam ameaças reais
de superação do capitalismo.

Com a contrarrevolução neoliberal e neocolonial que avançou ao final dos
anos 1970, ganhou forças na década seguinte e foi finalmente vitoriosa
nos anos 90 – indo além dos sonhos mais otimistas da ordem dominante com
a derrubada da União Soviética e das democracias populares do Leste
Europeu –, instala-se uma situação social na qual a crítica radical do
existente, e, portanto, da democracia, não estava na ordem do dia e foi
banida do debate teórico. A despeito da valentia de intelectuais tomados
individualmente que se recusaram a capitular e a aceitar “o fim da
história”, formou-se um “consenso conservador sobre a democracia^2 <#_ftn2>.

A democracia em sua versão liberal parlamentar, tida apenas como uma
competição eleitoral regular entre partidos semelhantes, passou a ser o
sinônimo da única democracia possível e aceitável. O revezamento
sistemático do poder entre partidos da classe dominante, liberais ou
conservadores, socialdemocratas ou neoliberais, que executam basicamente
o mesmo programa e garantem que “não há alternativa”.

Nesse cenário, os poucos que se atreviam a debater os limites da
democracia burguesa – agora não mais adjetivada como tal – eram logo
tachados de autoritários ou totalitários. Três noções são fundamentais
para a hegemonia do consenso conservador em torno da democracia
burguesa. A primeira (talvez a que se mantém mais sólida nos dias
atuais) é que a esquerda revolucionária (sobretudo os comunistas) seria
antidemocrática, violadora dos direitos humanos e que sacrifica no altar
da igualdade social as liberdades individuais. Como consequência disso,
as experiências de transição socialista, chamadas em linguagem
jornalística de “países” ou “governos” comunistas, se resumiriam a
regimes autoritários ou totalitários – e a crítica/denúncia do
“stalinismo” evidentemente desempenha um papel central nessa narrativa^3
<#_ftn3>.

Se o principal problema das experiências de transição socialista foi a
ausência de democracia e o autoritarismo dos Partidos Comunistas, é
necessário compreender a importância do valor em si da democracia. Aqui
entramos na segunda noção. Os anos 1980 e 90 marcaram processos muito
importantes: o fim do apartheid na África do Sul e o término de várias
guerras de libertação nacional em África, a saída de cena do ciclo de
ditaduras militares do grande capital na América Latina e a
legalização/desarmamento de agrupamentos político-militares
revolucionários na América Central. Nesses processos, já numa correlação
de forças política e militar em âmbito mundial desfavorável e com a
hegemonia neoliberal consolidada, vários ex-revolucionários das mais
diversas matizes, aceitaram que não se tratava de pôr termo à
dependência, ao subdesenvolvimento e às democracias burguesas, mas
recuperar ou criar uma democracia liberal burguesa.

O desenrolar histórico é, por si só, expressivo, e podemos abordar
rapidamente como exemplo o caso da África do Sul. O regime
pós-apartheid, dirigido Nelson Mandela e seu partido (Congresso Nacional
Africano), garantiu a vigência de uma igualdade jurídico-formal, mas a
segregação étnico-racial nos seus vários determinantes (geográfico,
econômico, cultural, social e político) não só se manteve, como foi
ampliada. Em suma, na democracia pós-apartheid na África do Sul,
mantém-se intacto o Estado racialista^4 <#_ftn4>.

O complemento necessário desse violento desarme político e teórico é o
/banimento/ da tematização do imperialismo, do colonialismo e da máquina
de guerra operante em todos os cantos do planeta, mas em especial na
periferia do sistema – a terceira noção desse consenso democrático. A
derrota do movimento comunista no século XX foi acompanhada da derrota
da revolução anticolonial que marcou a América, a África e a Ásia
(revolução que politicamente teve várias expressões, como o movimento
terceiro-mundista, o nacionalismo revolucionário e a fusão entre
patriotismo e marxismo, como na Revolução Coreana e Chinesa); o
imperialismo, nos anos 90, retoma uma ofensiva neocolonial de proporções
assustadoras e, justamente nesse momento, some de cena a reflexão sobre
o imperialismo, o colonialismo e o complexo industrial-militar^5 <#_ftn5>.

Enquanto o neocolonialismo vivia seu melhor momento desde a ascensão do
nazifascismo, as modas acadêmicas do momento falam em micropoder,
disciplina, poder simbólico, fim do Estado Nacional e dominação burguesa
especialmente por meio da ideologia. Poucas vezes na história foi
possível achar um momento em que reflexões que se pretendiam críticas ao
/establishment/ (em aspectos totais ou parciais) se descolaram tanto da
realidade^6 <#_ftn6>. Como ciclos que se completam, a negação de
qualquer “aspecto positivo” nas experiências de transição socialista se
combina com a canonização “crítica” ou acrítica da democracia (burguesa)
e se fundem com o banimento de qualquer reflexão a respeito do
imperialismo, do militarismo e do colonialismo. Surge o melhor dos
mundos: um mundo em que não haveria mais espaço para ditaduras, golpes
militares ou o fascismo e todos serão beneficiados pela globalização. O
grande problema da ideologia dominante é que a realidade teima em
contradizê-la.


    *A regressão democrática da democracia*

Domenico Losurdo, no seu livro /Contra-história do liberalismo/,
demostra que o pensamento liberal, desde o seu surgimento, foi uma
ideologia que buscou compreender a liberdade como um direito da
comunidade dos livres: homens brancos, proprietários e europeus (dos
países centrais da Europa). Os trabalhadores eram considerados
não-humanos, como máquinas falantes, os escravos e os povos coloniais
apareciam como essência da inumanidade, e as mulheres recebiam a
qualificação de seres inferiores.

Nunca houve dúvidas para a burguesia de que era necessário construir um
sistema político que tivesse como objetivo primeiro a defesa da
propriedade privada e da riqueza fruto da exploração: o mecanismo de
câmaras legislativas para os lordes, o voto censitário, a proibição da
montagem de partidos operários e sindicatos, a negação de votos para
analfabetos e mulheres, a perseguição à imprensa operária, o terrorismo
estatal etc. exemplificam esse momento histórico.

Portanto, a burguesia nunca confundiu a democracia política (isto é,
liberdade de organização partidária, imprensa, reunião, manifestação,
etc.) para a classe trabalhadora (ou seja, a imensa maioria da
população), com seu regime constitucional-parlamentar. A primeira é
criação /da classe trabalhadora nos seus enfrentamentos contra o
capital/, enquanto o último é criação da burguesia sob o liberalismo. A
relação entre regime burguês e democracia política em tempo algum foi
harmoniosa. Ao aceitar pela força a participação da classe operária no
“jogo” democrático-burguês, a classe dominante nunca deixou de buscar
mecanismos de exclusivismo no exercício do poder: a lógica é permitir a
participação política da classe trabalhadora negando sua incidência nos
centros de controle do poder político.

Não é nosso objetivo nesta coluna detalhar os mecanismos mobilizados
pela classe dominante a fim de esvaziar qualquer possibilidade mínima de
incidência da classe trabalhadora no poder por meio da participação
política institucional. O fato importante é o seguinte: para a ordem do
capital sempre foi clara a distinção entre os direitos democráticos e
seu regime constitucional.

Contudo, há que se considerar um fenômeno importante já brevemente
pontuado: durante a fase de ascensão das lutas proletárias e dos povos
coloniais, a tensão entre regime burguês e direitos democráticos chegou
a tal ponto que condicionou várias rupturas democráticas, ensejando
soluções fascistas, ditaduras militares e/ou invasões militares
neocoloniais. /Houve, efetivamente, momentos em que a burguesia não
suportou a sua democracia burguesia/, porém, ao mesmo tempo em que a
democracia política sob o Estado burguês era um impedimento temporário
para seguir num padrão de acumulação de capital desejável, era um
limitador da ação das classes subalternas contra a ordem do capital;
exemplo significativo é o Chile da Unidade Popular^7 <#_ftn7>.

Durante a contrarrevolução neoliberal e neocolonial, ganhou força um
fenômeno novo em sua proporção: /a gigantesca regressão dos direitos
democráticos da classe trabalhadora sem precisar de rupturas
institucionais./ Um dos exemplos mais significativos desse processo é a
chamada “onda punitiva” e a formatação do Estado penal nos países
centrais do capitalismo (ver as obras do sociólogo francês Loïc
Wacquant, em especial /As duas faces do gueto /
<https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/as-duas-faces-do-gueto-171>e
/As prisões da miséria/).

Todo esse processo de regressão democrática dos direitos da classe
aconteceu com uma inestimável contribuição dos aparelhos de repressão e
espionagem do Estado burguês. A narrativa de uma “sociedade ocidental”
na qual a repressão cede lugar progressivamente à luta pelo consenso na
dominação burguesa, perde de vista que, frente ao aumento da densidade
da rede associativa das classes em luta na disputa ideológica, a classe
dominante respondeu com a criação de aparelhos de
repressão/controle/vigilância herméticos a qualquer controle popular ou
público. Esses aparelhos atuam numa permanente “guerra suja” contra os
movimentos e organizações das classes subalternas: sequestros,
assassinatos, infiltrações, roubos, sabotagens, apoio a golpes de
Estado, falsificação de eleições, promoção de determinadas vertentes
culturais e guerra econômica estão entre algumas atividades promovidas
pela CIA e o FBI – paradigmas maiores desse tipo de aparelho estatal
burguês, que se generalizou e profissionalizou nos países centrais do
capitalismo no pós Segunda Guerra^8 <#_ftn8>.

O avanço da classe dominante em seus objetivos de fazer regredir os
direitos democráticos dentro da democracia burguesa é sempre facilitado
pela própria posição de classe das personificações do capital.
/Democracia política não é a mesma coisa que dominação burguesa, mas,
sob o Estado burguês, toda democracia política é uma forma de dominação
burguesa./

Isso ocorre porque: a) Os centros decisórios estratégicos do Estado
estarão sempre subordinados ao interesse geral de acumulação do capital
(o que não se confunde com o interesse de um capitalista ou um de grupo
deles tomado como exemplo “empírico”); b) são tomados como fato dado,
natural de um ponto de visto ideológico, político e jurídico, a
propriedade privada dos meios de produção, a apropriação privada da
riqueza e a mercantilização da força de trabalho; c) por ter o poder
econômico concentrado, a burguesia em suas diversas frações está
estruturalmente em vantagem na disputa pelo controle dos diversos
aparelhos do Estado e, quando perde aparelhos centrais, como um Governo
Federal, dispõe de uma rede de aparelhos de hegemonia privados que
conseguem com relativa facilidade paralisar ou destruir a ação incômoda
do aparelho estatal que se tornou disfuncional.

Dito de maneira mais simples: /sobre a base capitalista, toda democracia
é burguesa, embora os direitos democráticos sejam conquistas da classe
trabalhadora/. Cabe, portanto, a pergunta: qual é o fator determinante
que permite em determinadas conjunturas a classe trabalhadora impor
conquistas democráticas ou tornar disfuncional a democracia burguesa?
Resposta: a ação de classe com radicalidade na defesa não da democracia
em si, mas dos direitos democráticos da classe^9 <#_ftn9>. Em todos os
momentos históricos em que a classe trabalhadora avançou em conquistas
democráticas se deu em um horizonte onde se pretendia muito mais que
melhorar o Estado burguês. Isto é, foi criticando agudamente os limites
da democracia burguesia e buscando radicalmente superá-la que foi
possível impor uma relativa democratização do Estado burguês.

No caso brasileiro, o Partido dos Trabalhadores, em sua origem advoga a
conquista do poder político. O PT dizia, numa formulação de clara
inspiração leninista clássica, que não existe exemplo de transição
socialista iniciada sem os trabalhadores tomarem o poder do Estado (ver
as obras de Mauro Iasi, em especial, /As metamorfose da consciência de
classe/ e /Estado, política e ideologia na atual trama conjuntural/).

A não aliança com partidos da ordem, independência financeira e
política, o foco na luta de massas e não na disputa institucional e o
programa político radical foi o principal vetor de resistência à
transição conservadora da ditatura empresarial-militar à democracia
burguesa. Por uma série de determinantes históricos que não cabe
aprofundar nesse momento, o PT progressivamente suavizou a radicalidade
do programa, abrandou a independência de classe financeira e política,
centrou-se na luta institucional e passou a defender como sinônimo de
“caminho democrático ao socialismo” a atuação nos marcos da democracia
(burguesa) brasileira.

A consequência é o esvaziamento da ação de classe dos subalternos como
vetor de resistência ao fortalecimento da autocracia burguesa, e a
conversão do PT em operador político do sistema, deixando “legados”
perfeitos à dominação de classe, como a lei antiterrorismo, as Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) e o apassivamento dos explorados. Nas
palavras de Mauro Iasi:

“As mudanças que se verificam não se operam aleatoriamente, mas no
sentido de recolocar a consciência que se emancipava de volta nos
trilhos da ideologia. Não é, em absoluto, certas palavras-chaves vão
substituindo, pouco a pouco, alguns dos termos centrais das formulações:
ruptura revolucionária por rupturas, depois por democratização radical,
depois por democratização e finalmente chegamos aos “alargamento das
esferas de consenso”; socialismo por socialismo democrático, depois por
democracia sem socialismo; socialização dos meios de produção por um
controle social do mercado; classe trabalhadora, por trabalhadores, por
povo, por cidadãos; e eis que palavras como revolução, socialismo,
capitalismo, classes, vão dando lugar cada vez mais marcante para
democracia, liberdade, igualdade, justiça, cidadania, desenvolvimento
com distribuição de renda”.

^Mauri Luis Iasi, Mauro Luis Iasi, /As metamorfose da consciência de
classe: o PT entre a negação e o consentimento/ (São Paulo: Expressão
Popular, 2006), p. 435.

Em resumo, o consenso conservador em torno da democracia é o norte de
uma época histórica de brutal regressão da democracia política, e as
respostas hegemonicamente formuladas pela esquerda (a perspectiva de
democratizar a democracia) não estão conseguindo fazer frente a esse
fenômeno. O desarme teórico está imbricado com a derrota política num
processo de retroalimentação.


    *Conclusão*

O adversário de classe não está retrocedendo na democracia. Esta
conclusão não impõe posturas esquerdistas e mecanicistas que não
conseguem apreender, para as classes dominadas, a diferença entre lutar
sob uma democracia burguesia ou sob uma ditadura fascista. A mudança de
rota que deve ser operada pelas forças de esquerda empenhadas em
derrubar a ordem capitalista tem como prisma primeiro encarar a
democracia burguesa como ela realmente é: na democracia realmente
existente, a violência, o terrorismo estatal, a negação de direitos
básicos (como liberdade de imprensa e organização sindical), os
massacres no campo, os autos de resistência e a história de milhares na
mesma situação de Rafael Braga não constituem um desvio, uma perversão,
do ideal do Estado democrático de Direito – são o seu funcionamento
concreto, são a sua essência de classe em movimento.

O confronto da democracia realmente existente deve andar casado com a
defesa intransigente, estratégica, dos direitos democráticos da classe
trabalhadora. A democracia política sempre carregou altíssimo potencial
de contradição com a ordem burguesa. A novidade, contudo, é que nesse
momento de crise estrutural do capital e ofensiva neocolonial, tal
contradição é aguçada. O golpe parlamentar de 2016 e a posterior eleição
de Jair Bolsonaro, enquanto particularidades da conjuntura brasileira,
impõem, igualmente, um sério e profundo reexame da trajetória da
esquerda brasileira nas últimas décadas.

Não é mais possível depois dessa vergonhosa derrota política e moral
continuar com “mais do mesmo”, como, por exemplo, ainda manter
esperanças no STF ou em votações na Câmara dos Deputados.

A conclusão que se impõe, portanto, é/máximo combate à democracia
burguesa e máxima defesa dos direitos democráticos da classe
trabalhadora/. Dentro desta perspectiva temos um norte de atuação para
uma retomada crítica da luta política no âmbito da “questão
democrática”. Democratizar a democracia é a forma política do reformismo
burguês. Tal como as ideologias do crescimento econômico com a
distribuição de renda
<https://blogdaboitempo.com.br/2019/06/27/chegou-a-hora-da-revolucao-brasileira-critica-a-ideologia-da-industrializacao-e-do-crescimento-economico/>,
democratizar o Estado burguês retira do horizonte a luta pelo poder
popular, isto é, pela derrubada do Estado burguês e a construção de uma
verdadeira democracia fundada na propriedade social com economia
planificada e democracia operária. Não há futuro fora da luta pelo poder
popular.


In
BLOGO DA BOITEMPO
https://blogdaboitempo.com.br/2019/07/17/a-fraqueza-da-ilusao-democratica-um-ensaio-politico-nao-sentimental/
17/9/2019

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