sábado, 20 de julho de 2019

Por que o morro não desce?




por Fernando Horta

Resposta fácil e verdadeira nos dias de hoje, com sua força de atração
através da promessa do compartilhamento da violência dos intolerantes.
Vamos olhar para o “morro”.

Por
Fernando Horta

Um amigo me perguntou por que, afinal, o morro não desce?

A pergunta, em si, já é reveladora. Parcela da classe média progressista
reconhece a sua falta de capacidade de mobilização e pergunta como
aqueles que materialmente estão sendo mais prejudicados não se revoltam.
Não vamos falar da classe média, dos motivos da pergunta, da falta de
organização e etc. Não vamos apelar para o fascismo. Resposta fácil e
verdadeira nos dias de hoje, com sua força de atração através da
promessa do compartilhamento da violência dos intolerantes. Vamos olhar
para o “morro”.

Nasci e fui criado praticamente dentro de terreiro de umbanda. Comendo
pipoca com dendê, galinha com farofa e canjica. Perdi a conta de quantas
noites dormi em casa de Pais de Santo cujas camas, lá pelos anos 80,
eram partilhadas pelos filhos dos seus filhos de santo, enquanto as
celebrações aos orixás entravam até a madrugada. Um Terreiro era, antes
de mais nada, uma ode à diversidade, uma elegia ao acolhimento e um
símbolo de tolerância. Perdi a conta das vezes que me foi explicada a
fúria incontida de alguém ou sua sobriedade introspectiva pela Iansã ou
Oxalá “na cabeça”, respectivamente. O laranja de Ogum convivia com o
vermelho de Xangô como adversários respeitosos. Rivais tolerantes e
nunca inimigos. Reverenciados pelos seus filhos e respeitados pelas
diferenças.

O terreiro foi sempre parte do “morro”. E o terreiro é o termômetro da
resposta acima. O “morro” não desce, porque o “morro” não existe mais.

*O que é “o morro”?*

O “morro” é uma construção sócio-cultural de duas vias: uma advinda da
exclusão que sofre pela sociedade branca do “asfalto”, e outra pelo
constante incensar das relações de solidariedade locais que terminam por
criar uma comunidade cultural própria, vibrante, diversa e aguerrida. O
morro era o eterno adaptar-se às limitações materiais financeiras e de
espaço pela solução coletiva da celebração da comunidade. Não era nada
parecido com a romantização da pobreza que vemos hoje. Ninguém no
“morro” bate palma para pai de família que levanta três da manhã para
fazer pastel e vender numa caixa de isopor pendurada nas costas. Isto é
o normal.

O morro surge com o samba criminalizado nos séculos XIX e início do XX,
ao mesmo tempo que com as reformas elitistas que ocorrem em todo o
Brasil mas tem em Pereira Passos no RJ, um exemplo já estudado. É o
“malandro” violeiro que aprendia a colocar em versos a ginástica que
fazia para sobreviver na vida. O “morro” desenvolve linguagem própria.
Símbolos e sons oriundos tanto da exclusão quanto da solidariedade. O
“morro” exerce, para toda a sua comunidade, ao mesmo tempo, a noção de
segurança e pertencimento. Nos anos 80, bicheiros e traficantes eram as
“lideranças benevolentes”, a quem se dava respeito em troca segurança, e
alguma ajuda material.

Leia também:  Governo agora é do Centrão, por Helena Chagas
 <https://jornalggn.com.br/politica/governo-agora-e-do-centrao-por-helena-chagas/>

É importante salientar que o “bicheiro” e o traficante viviam no morro e
não “do” morro. Mesmo as celebridades que lá surgiam, no morro ficavam.
Ou ficavam ou faziam de tudo para voltar e se manter próximas. O jogador
Adriano é exemplar: “Rei de Roma”, e um milionário que só queria voltar
para sua comunidade. Muito diferente dos dias de hoje, até o início dos
anos 2000, todo morro era uma orgulhosa comunidade pobre. A pobreza
material era constituição subjetiva positiva e não mácula social insanável.

Hoje, ninguém mais quer ser visto como “comunidade pobre”. Que não se
queira ser “pobre” é compreensível, mas o problema é que não se quer
mais ser “comunidade”.

*As transformações em três eixos*

Desde o final dos anos 90, uma silenciosa e violenta transformação se
deu “no morro”. E, enquanto a transformação se dava, a classe média
aplaudia.

A revolução dos meios de comunicação não levou não somente “o
capitalismo” a todos os lugares do planeta, como também o levou para
dentro do morro. E, enquanto nos anos 2000, este sistema se associava ao
governo para perseguir expressões culturais locais (como as rádios
comunitárias, por exemplo) ele construía toda uma nova rede de imposição
simbólica. O morro hoje consome Felipe Neto e Anitta. Não mais os
personagens locais, que refletiam a sua linguagem, seus anseios e suas
esperanças, mas figuras estilizadas e caricaturizadas pelo marketing e
os valores do “asfalto”. A cantora negra que aparece quase sempre branca
e com cabelos alisados, e um “bad boy” estético, caricaturizado de “bom
mocinho” para “atingir mais público”. A diversidade do morro deu lugar à
máquina de homogeneização da internet capitalista. A destruição do
espaço cultural subjetivo que era “o morro” foi aplaudida pela classe
média como sinal de “civilização” e “desenvolvimento”. O preconceito
encruado não permitiu a percepção da alteração do equilíbrio social e
como isto influenciaria no jogo democrático.

A destruição dos terreiros é a destruição do morro. Economicamente, um
terreiro de umbanda ou candomblé era um ponto de atração de recursos de
fora para dentro do morro. Os participantes da casa, seus filhos de
santo e ajudantes, realizavam o trabalho físico, mas o retorno
financeiro era provido em maioria pela peregrinação social que cada
terreiro fazia realizar. Hoje, além da intolerância, do ódio e do falso
moralismo religioso, as igrejas neopentecostais da teologia da
prosperidade vivem “do morro”. É extraindo riqueza do morador mais pobre
que estas igrejas sobrevivem, num processo de concentração tão violento
quanto o de dominação simbólica. Qualquer terreiro do “povo de santo”,
em qualquer lugar do Brasil, é imensamente mais tolerante à diversidade
social de gênero, de cor, de credo e de classe que a mais progressista
igreja neopentecostal. Sumiram os despachos nos “cruzeiros” e sobram as
mortes pelo preconceito.

Leia também:  Estatuto da Criança e do Adolescente completa 29 anos sob
ameaça de esvaziamento
 <https://jornalggn.com.br/noticia/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-completa-29-anos-sob-ameaca-de-esvaziamento/>

Toda comunicada geograficamente marginal no Brasil vive uma tensão com
as forças repressivas do Estado. Isto é “lei” para qualquer estudo de
sociologia da violência. Contudo, até o início dos anos 90, o “pacto” de
legitimidade de espaços geográficos diminuía a violência dentro deles.
Hoje, aumenta.

O crescimento da população urbana no Brasil e a grave crise econômica do
final dos anos 90 acirraram a violência tanto dentro do “morro”, quanto
“no asfalto”. As guerras entre grupos criminosos rivais, incitadas pelo
aumento do consumo de drogas nas cidades viu como resposta do Estado o
acirramento da violência policial. A polícia passou a matar tanto quanto
o crime, no Brasil. Ao invés de criar um clima de ordem e respeito à
lei, as medidas policiais tomadas nos anos 90 e início dos anos 2000
fizeram explodir a criminalidade, a violência e a exclusão. O “morro”
antes um lugar romantizado e culturalmente auto-identificado, tinha se
tornado “uma chaga” na visão branca e elitista dos governantes. O
tráfico era “tolerado” pelas populações locais, na narrativa das
autoridades de segurança. E não demorou muito para que os moradores de
periferia virassem “bandidos”. Nesta criminalização, o morro virou
“favela”. A “favela” virou sinônimo de poder paralelo e núcleo de todo o
mal nas cidades brasileiras. Entre a dominação por “traficantes”
oriundos da comunidade, ou o controle destas regiões por “milicianos”,
que têm um passado associado ao poder público, a classe média e mesmo o
Estado brasileiro preferiram os crimes das milícias.

O “morro” morreu a golpes de capitalismo. Uma comunidade que tinha na
sua estrutura cultural a coletividade, a solidariedade, a diversidade e
a exclusão, foi demolida. A internet, as igrejas neopentecostais e as
milícias não resolveram o problema da pobreza ou da exclusão. Passaram a
lucrar com elas. E para lucrarem mais precisaram reificar e fortalecer
estas condições. Ao mesmo tempo, o morro passou a ser parasitado
financeira e culturalmente. Qualquer comunidade pobre no Brasil “fatura”
mais do que algumas das maiores empresas do país. E este dinheiro vai
sendo centralizado fora dos morros, gerando relações de poder e
submissão externas, enquanto homogeneízam o tecido social.

Leia também:  Violência e banalidade do mal, por Odílio Alves Aguiar
 <https://jornalggn.com.br/politica/violencia-e-banalidade-do-mal-por-odilio-alves-aguiar/>

No processo de tornar todos muito parecidos, o capitalismo deu ao
asfalto uma parte do morro, e deu ao morro uma parte do asfalto. Se hoje
sabemos o que é uma “popozuda”, fica claro que há uma apropriação
simbólica e cultural da periferia, mas apenas por meio comercial. Seria
de se esperar que o mesmo movimento fosse feito também em sentido
contrário. O “asfalto” deu ao morro as noções de “empreendedorismo”, a
intolerância social e o ódio pela política. Tudo por meio das mãos dos
vetores do “mercado” nestas comunidades.

Não nos enganemos. Hoje o “morro” é a cara de Bolsonaro. É moralista,
intolerante, violento e ignorante. Vive cultivando um ódio de si porque
teve seus valores invertidos. Vive achando que a violência que aprendeu
a suportar é ferramenta com a qual deve conformar o mundo. O morro se
convenceu que é pobre porque não “se esforçou o suficiente”, porque não
“acredita suficientemente em Deus” ou porque “alguém lá em cima roubou”.

Retomando o argumento inicial, a cada terreiro que é destruído, o morro
morre um pouquinho. E ele tem morrido sem ninguém se preocupar com isto
desde o final dos anos 90.

Neste estado de coisas, não há por que sair às ruas para protestar. A
política, neste viés, é causa dos males sociais, e não ferramenta de
transformação.

In
GGN
https://jornalggn.com.br/noticia/por-que-o-morro-nao-desce/
19/9/2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário