terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A ordem mundial mudou já em 2022

 

 

Thierry Meyssan

É uma constante da História : as mudanças são raras, mas súbitas.
Aqueles que sofrem as consequências são geralmente os últimos a vê-las a
chegar. Só as percebem tarde mais. Contrariamente à imagem estática que
reina no Ocidente, as relações internacionais foram alteradas em 2022,
principalmente em detrimento dos Estados Unidos, do Reino Unido e da
França, muitas vezes em proveito da China e da Rússia. Com os olhos
fixos na Ucrânia, os Ocidentais não são capazes de ver a redistribuição
das cartas.


É raro que as relações internacionais sejam tão viradas do avesso como
foram em 2022. E isto não acabou. O processo que se iniciou não vai
parar, mesmo que alguns acontecimentos o venham perturbar e até
eventualmente interromper por alguns anos. A dominação do Ocidente, ou
seja, tanto dos Estados Unidos como das antigas potências coloniais
europeias (principalmente o Reino Unido, a França e a Espanha) e
asiática ( o Japão), chega ao seu fim. Já ninguém obedece a uma chefia,
incluíndo os Estados que permanecem vassalos de Washington. Todos
começam agora a pensar por si próprios. Não estamos ainda no mundo
multipolar que a Rússia e a China tentam fazer emergir, mas já o vemos a
ser erguido.

Tudo começou com a operação militar russa para fazer cumprir a Resolução
2202 do Conselho de Segurança e proteger a população ucraniana, no seu
todo, do seu governo « nacionalista integralista ». Claro, este
acontecimento não é, de forma alguma, o que é percebido nos Estados
Unidos, na União Europeia, na Austrália e no Japão. Os Ocidentais estão
convencidos que a Rússia invadiu a Ucrânia para mudar as fronteiras pela
força. Ora, isso não foi nem o que o Presidente Vladimir Putin anunciou,
nem o que o Exército russo fez, nem a maneira como os acontecimentos se
desenrolaram.

Deixemos de lado a questão de saber quem está certo e quem está errado.
Tudo depende de se saber se estamos conscientes da guerra civil que
dilacerava a Ucrânia desde a deposição do seu Presidente
democraticamente eleito, Viktor Yanukovych, em 2014. Os Ocidentais ao
esquecer os 20. 000 mortos dessa guerra não podem aceitar que os Russos
tenham querido parar este massacre. Como desconhecem os Acordos de
Minsk, pelos quais, portanto, a Alemanha e a França se tinham
constituído como garantes ao lado da Rússia, não podem aceitar que a
Rússia tenha posto em prática a « responsabilidade de proteger » que as
Nações Unidas proclamaram em 2005.

Ora a antiga Chancelerina alemã, Angela Merkel [1 <#nb1>], e o antigo
Presidente francês, François Hollande [2 <#nb2>], afirmaram ambos
publicamente que haviam assinado os Acordos de Minsk, não para por fim à
guerra civil, mas, pelo contrário, para ganhar tempo e armar a Ucrânia.
Estas duas personalidades gabam-se de ter armadilhado a Rússia ao mesmo
tempo que a acusam de ter a exclusiva responsabilidade pela guerra
actual. Não é de surpreender que estes dois antigos governantes se
orgulhem da sua duplicidade perante as suas opiniões públicas, todavia
as suas declarações quando escutadas em outras partes do mundo soam de
modo diferente. Para a maioria da Humanidade, os Ocidentais mostram-se
como realmente são : tentam sempre dividir o resto do mundo e armadilhar
aqueles que querem ser independentes; falam de paz, mas fomentam guerras.

É errado imaginar que o mais forte quer sempre impor a sua vontade aos
outros. Esta atitude ocidental raramente é partilhada pelos outros seres
humanos. A cooperação provou o seu valor mais do que a exploração e as
revoluções que ela suscita. É a mensagem que os Chineses tentaram
propagar, evocando para isso relações « ganhador-ganhador ». Não se
tratava para eles de falar de relações comerciais justas, mas de fazer
referência à forma como governavam os imperadores da China : quando um
imperador promulgava um decreto, devia velar para que tal fosse seguido
pelos governadores de cada província, inclusive por aqueles que não eram
destinatários dessa decisão. Ele mostrava-lhes que não os havia
esquecido, oferecendo a cada um um presente.

Em dez meses, o resto do mundo, quer dizer, a sua esmagadora maioria,
abriu os olhos. Se, em 13 de Outubro, havia 143 Estados a seguir a
narrativa ocidental e a condenar a « agressão » russa [3 <#nb3>], já não
mais seriam a maioria a votar assim hoje na Assembleia Geral das Nações
Unidas. A votação, em 30 de Dezembro, de uma Resolução pedindo ao
tribunal interno da ONU, O Tribunal (Corte-br) Internacional de Justiça,
para declarar a ocupação dos Territórios Palestinianos por Israel como
uma « ocupação » é a prova disso. A Assembleia Geral já não se resigna
diante da desordem ocidental do mundo.

Até agora na órbita da França, 11 Estados africanos fizeram apelo ao
Exército russo ou a uma empresa militar privada russa para garantir a
sua segurança. Eles não acreditam mais na sinceridade da França e dos
Estados Unidos. Outros ainda estão cientes que a protecção ocidental
contra os jiadistas anda de mãos dadas com o apoio oculto dos Ocidentais
aos mesmos jiadistas. Eles inquietam-se publicamente com a transferência
maciça de armas destinadas à Ucrânia para os jiadistas do Sahel ou para
o Boko Haram [4 <#nb4>], a ponto do Departamento de Defesa dos EUA
designar uma missão de acompanhamento para verificar o que acontece com
as armas destinadas à Ucrânia; uma maneira como outra qualquer de
enterrar o problema e prevenir uma imiscuição do Congresso nestas
manigâncias obscuras.

No Médio-Oriente, a Turquia, membro da OTAN, joga um jogo subtil a meio
caminho entre o seu aliado EUA e o seu parceiro Russo. Ancara
compreendeu há muito que nunca integraria a União Europeia e, mais
recentemente, que não era bem vista tentando restaurar o seu império
sobre os Árabes. Virou-se então para os Estados europeus (como os
Búlgaros, os Húngaros e os Kosovares) e asiáticos (como o Azerbaijão, o
Turcomenistão, o Usbequistão, o Cazaquistão e o Quirguistão) de cultura
turca (e não de língua turca como os Uígures chineses). De repente,
Ancara reconcilia-se com Damasco e se prepara para deixar o Ocidente
pelo Oriente.

A chegada da China ao Golfo, por ocasião da Cimeira (cúpula-br) de
Riade, virou o jogo nessa região do mundo. Os Estados árabes viram que
Pequim era razoável, que os ajudava a fazer a paz com seus vizinhos
persas. Ora, o Irão é um aliado milenar da China, mas esta defende-o sem
o deixar transbordar os seus excessos. Eles avaliaram a diferença para
os Ocidentais que, ao contrário, não cessaram desde 1979 de os dividir e
de os opor uns aos outros.

A Índia e o Irão trabalham no duro com a Rússia para edificar um
corredor de transporte que lhes permita comerciar apesar da guerra
económica ocidental (apresentada no Ocidente como « sanções », muito
embora elas sejam ilegais face ao Direito Internacional). Desde logo
Mumbai está ligada ao sul da Rússia e em breve a Moscovo (Moscou-br) e a
São Petersburgo. Isso torna a Rússia e a China complementares. Pequim
constrói na Euroásia rotas de Leste a Oeste, Moscovo segundo as longitudes.

A China, para quem esta guerra é uma catástrofe que perturba os seus
planos de construção das Rotas da Seda, jamais acreditou na narrativa
ocidental. Ela é uma velha vítima da Rússia que, no século XIX,
participou na ocupação de Tianjin e de Wuhan (Hankou), mas ela também
sabe que os Ocidentais tudo farão para explorar as duas. Ela rememora a
sua ocupação anterior para estar ciente que o seu destino está ligado ao
da Rússia. Ela não compreende muitos dos problemas ucranianos, mas sabe
que a sua visão da organização das relações internacionais só pode ver a
luz do dia se a Rússia triunfar. Ora, ela não tem nenhuma vontade de se
bater ao lado da Rússia, mas intervirá se esta for ameaçada.

Esta reorientação do mundo é muito visível nas instituições
governamentais. Os Ocidentais humilharam a Rússia no Conselho da Europa
até que Moscovo o deixou. Para sua grande surpresa, a Rússia não para
por aí. Ela deixa um a um todos os acordos concluídos no Conselho da
Europa, em todo o tipo de domínios, do Desporto à Cultura. Os Ocidentais
constatam de repente que se privaram de um parceiro generoso e culto.

Isso deverá prosseguir em todas as outras organizações
intergovernamentais, a começar pelas Nações Unidas. É a velha história
das relações ocidento-russas que remonta à exclusão de Moscovo da
Sociedade das Nações, em 1939. À época, os Soviéticos inquietos por um
possível ataque nazi contra Leningrado (São Petersburgo) pediram à
Finlândia para alugar o porto de Hanko, no entanto, tendo as negociações
se arrastado no tempo, invadiram a Finlândia, não para a anexar, mas
para colocar a sua marinha em Hanko. Este precedente é hoje mostrado
como um exemplo do imperialismo russo quando o próprio Presidente
finlandês Urho Kekkonen reconheceu que a atitude dos Soviéticos fora «
compreensível ».

Voltemos às Nações Unidas. Excluir a Rússia só poderá ser possível após
ter feito adoptar uma reforma da Carta pela Assembleia Geral. Era
possível em Outubro, mas já não o é mais hoje em dia. Este projecto
acompanha-se de uma reinterpretação da história e da natureza da ONU.

Garantem que aderir à Organização interdita a guerra. É absurdo. Aderir
à ONU obriga a « manter a paz e a segurança internacionais », mas sendo
os homens o que são, autoriza a fazer uso da força em certas condições.
Às vezes, esta autorização torna-se até uma obrigação em virtude da «
responsabilidade de proteger ». É isso exactamente o que faz a Rússia
pelas populações de Donbass e da Novorussia. Note-se bem que Moscovo não
é cega e recuou no que diz respeito à margem direita (parte Norte) da
cidade de Kershon. O Estado-Maior russo retirou-se para trás de uma
fronteira natural, o rio Dnieper, considerando impossível defender a
outra parte da cidade face aos Exércitos ocidentais e isso quando a
população de toda a cidade havia pedido por referendo a adesão à
Federação da Rússia. Jamais houve qualquer derrota russa em Kherson, mas
isso não impede os Ocidentais de falar na sua « reconquista » pelo
regime de Zelensky.

Acima de tudo, obscurece-se o funcionamento da ONU ao por em causa o
directório do Conselho de Segurança. Quando a Organização foi fundada,
tratava-se de reconhecer a igualdade de todos os Estados no seio da
Assembleia Geral e de dar às grandes potências da época a capacidade de
prevenir conflitos no seio do Conselho de Segurança. Este não é o lugar
da democracia, mas do consenso : nenhuma decisão pode ali ser tomada sem
o acordo de cada um dos seus cinco membros permanentes. Finge-se espanto
de não poder aí condenar a Rússia, mas alguém se espantou por não se ter
condenado lá os Estados Unidos, o Reino Unido e, por vezes, a França
pelas suas guerras ilegais no Kosovo, no Afeganistão, no Iraque e na
Líbia? Sem o direito de veto, a ONU irá tornar-se uma assembleia
absolutamente ineficaz. No entanto, esta ideia ganha terreno no Ocidente.

Além disso, seria absurdo pensar que a China, a primeira potência
comercial mundial, permanecerá numa ONU da qual a Rússia, a primeira
potência militar mundial, tivesse sido excluída. Pequim não dará caução
a uma operação contra o seu aliado, pois está persuadida que a morte
desta será o prelúdio da sua própria. É por isso que os Russos e os
Chineses preparam outras instituições que só irão apresentar se a ONU
for desnaturada, se ela se transformar numa assembleia monocromática e
perder assim sua capacidade de prevenir conflitos.

Percebemos que a única saída possível é que os Ocidentais aceitem ser
apenas aquilo que são. Mas, de momento, não são capazes disso. Eles
deformam a realidade esperando assim manter os seus séculos de
hegemonia. Este jogo terminou tanto porque eles estão fatigados, como,
sobretudo, porque o resto do mundo se transformou.

Thierry Meyssan <https://www.voltairenet.org/auteur29.html?lang=pt>
Tradução
Alva <https://www.voltairenet.org/auteur125500.html?lang=pt>
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10/1/2023

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