quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

«Os neomarxistas construíram um marxismo sem revolução, sem organização nem partido, sem programa nem estratégia, um Marx abstracto e esotérico»

 


    Andrés Piqueras [*]
    entrevistado por Salvador López Arnal

.
<https://www.bookdepository.com/De-la-Decadencia-de-la-Pol%C3%ADtica-en-el-Capitalismo-terminal-Andr%C3%A9s-PIQUERAS/9788418550980?ref=grid-view&qid=1673829251908&sr=1-1>
*

Tu dedicas o teu último livro “Aos milhões e milhões de comunistas que
deram as suas vidas ao longo do século XX, por um mundo sem exploração.
Também aos comunistas que dedicaram a sua vida a isto... e venceram”.
Uma reivindicação da tradição comunista... apesar do estalinismo e do
/Livro negro do comunismo/?

*

Claro. Diria que é a razão de ser do livro, tanto que entendo que o
movimento comunista da humanidade tem sido até hoje o expoente máximo da
evolução humana na busca de uma possibilidade de vida para a espécie que
permita a harmonia entre si e com a natureza. De fato, eventualmente,
somente um alto grau de coesão baseado em amplas condições de igualdade
poderá permitir-nos a existência como espécie.

O comunismo, como diziam Marx e Engels, não é senão o constante
movimento autoemancipador e autoconsciente da humanidade. A evolução não
é senão uma progressão não linear da complexidade dos organismos vivos
(sociais), daí Engels deduz que uma sociedade capaz de planificar sua
economia e sua interação com a natureza, de eliminar as contradições
inerentes às classes sociais, é necessariamente mais evoluída e está
melhor preparada para manter-se (sendo também mais coesa).

Não vou entrar num debate sobre o panfleto do Livro Negro, fiel a
propaganda capitalista desencadeada desde o último quarto do século XX
(um projeto sistemático de revisão da história e de amputação da memória
histórica, já praticamente seccionada para as novas gerações),
empenhadas em fazer-nos crer que “comunismo” e “nazismo” são parte do
mesmo (como se o nazismo não fosse uma excreção despótica do capitalismo
e como se, para começar, a humanidade houvesse chegado em algum momento
ao comunismo). Não vale a pena, em uma entrevista com espaço tão
limitado, contestar estes libelos difundidos a partir dos centros de
inteligência do sistema.

*Era uma pequena provocação entre amigos.*

Sim, vou dizer que a matança de comunistas e de pessoas acusadas de
sê-lo, somente no século XX, desencadeada pelo capitalismo, quer seja na
sua forma fascista, quer seja na sua forma “democrática” (liderada pelos
EUA) excede em muito qualquer pesadelo. O recente livro de Vincent
Bevins, /El método Yakarta/
<https://www.bookdepository.com/El-m-todo-Yakarta-Vicent-Bevins/9788412390247?ref=grid-view&qid=1674012319422&sr=1-5>, é um dos que começaram a revelar a magnitude desta matança.

*Seiscentas páginas, mais de trinta de bibliografia, extensas e
interessantes notas de rodapé (que recordam, em algumas ocasiões, as
notas não menos extensas e interessantes do /Capital/), prosa
substantiva, nada ligeira, argumentos que exigem cotovelos e
concentração... A quem é dirigido o livro?*

Àqueles que ainda têm gana de transformar o mundo e além disso
atrevem-se a pensar por si mesmos(as) (algo cada vez mais difícil a
partir de meios de formação e socialização concebidos para subordinar e
idiotizar, nossas vidas submetidas a contínuos bombardeios mediáticos
teledirigidos, com seus “whatsapps”, “twitters”, “instagrams”, etc, que
nos permitem orgulharmos de ser massa e seguir “blogueiros”,
“influencers” e qualquer outra ralé narcotizante semelhante).

Como dizia Labriola, este grande pensador precursor de Gramsci hoje tão
esquecido, “pensar é produzir”, implica um exercício quotidiano de
reconstrução do mundo e da nossa posição nele, de maneira que possamos
manejar melhor nossa vida. Ser comunista implica pensar, no seu sentido
mais profundo, “radical”, por fora da cosmovisão dominante, como pensar
em ação.

*Um conceito que usas com frequência: materialismo. O que é o
materialismo do teu ponto de vista? Que há de singular no materialismo
de Marx e Engels?*

O materialismo busca conhecer as causas mais profundas que movem os
processos históricos e que se combinam sempre com a ação humana. Deixa
de ver as ideias como categorias abstratas, criadoras do mundo, para
entende-las como produtos do mesmo. Marx e Engels nos apresentaram um
padrão para entender o mundo e as criações intelectuais humanas, de tal
maneira que hoje podemos saber que as formas como nós seres humanos
conseguimos a produção e a reprodução da nossa vida trazem nossas
possibilidades sociais e ideológicas. Quer dizer, que o nó que contém a
maior fonte de explicação social é a produção e a reprodução da vida real.

Isto sim, a dialética enriquece e complementa o materialismo, dado que
entende que o concreto só é tal porque a concentração de infinitas
determinações, porque seu molde real nunca é permanente, mas sempre está
em um contínuo processo de modificação. A condição chave é não entender
as partes da sociedade de maneira separada; por isso que para Marx,
nunca ocorreu desenvolver uma teoria política nem uma teoria econômica,
por exemplo, mas o que fez foi elaborar uma crítica penetrante da
“economia política” dada, a qual opôs a análise dialética do todo e de
suas partes. Análises da totalidade, do capitalismo, que por sua vez não
é senão uma totalidade dentro de outra: a da espécie humana, que por sua
vez é uma totalidade dentro de outra, a da vida, que por sua vez é uma
totalidade dentro de outra, o Cosmos...

Por sua parte, o material acompanha o dialético enquanto que a matéria
precede a ideia, o organismo à consciência, a formação orgânica-química
da vida à evolução e ao Homo Sapiens, os processos para conseguir
energia aos momentos para se dedicar a arte e a filosofia. Mas uma vez
que estes processos cobram a existência, a ideia, a consciência, a
filosofia, entram também relação dialética com o todo. Deste modo, como
disse Felip a quem cito, o objeto do pensar não é mais a matéria oposta
a ideia, mas a unidade dialética da matéria e da ideia na forma de
processos de uma totalidade complexa, estruturada e contraditória.

É necessário seguir reivindicando Marx nesta terceira década do século
XXI? Quem duvida no dia de hoje, trabalhando e pensando de boa-fé, que
Marx e o marxismo, tem sido muito importantes para a compreensão da
composição e evolução das sociedades humanas e de suas transformações?

Isto é o que tentei expressar o tempo todo no livro. O marxismo
constitui até hoje a principal práxis da emancipação humana que foi
levantada pela humanidade, é a pedra angular de uma crítica da economia
política capitalista, de toda sua civilização; suporte de uma luta para
livrar a humanidade de estar submetida a leis e forças sociais
vinculadas a exploração, a dominação e a exclusão que de outra forma nos
seriam em grande medida desconhecidas ou camufladas sob as roupagens da
fetichização, a mistificação, a ilusão ou a naturalização das coisas que
esconde o capitalismo.

Naturalmente, o marxismo implica um novo projeto civilizatório em que
essas dinâmicas de exploração e domínio da espécie humana entre si
estejam erradicadas. Por isso é ao mesmo tempo, e irrenunciavelmente, um
método científico, uma projeção e um compromisso político e uma
compreensão do mundo. Em suma, um croquis que nos ajuda a por ele
caminhar para poder transformá-lo. O qual implica, indefectivelmente,
uma conduta ou uma síntese de práxis (precisamente a que os
“neomarxismos” querem suprimir).

*A respeito da segunda pergunta...*

A respeito da segunda pergunta, poderia te dizer, com as palavras de
Borón, que igual o que ocorreu com Copérnico na astronomia, a revolução
teórica de Marx lançou ao mar o saber convencional que havia prevalecido
durante séculos. Marx, e ressalto Engels, desencadearam na história e
nas ciências sociais, uma revolução teórica tão retumbante e
transcendente como a de Copérnico ou de Darwin em outros campos. “E
assim como hoje se converteu em uma chacota mundial, quem reivindicasse
a concepção geocêntrica de Ptolomeu, não teria melhor sorte (deveria
ter, corrijo Borón aqui) quem repreende alguém acusando-o de ser “marxista”.

*Apoio-me no teu “sublinho Engels”. Por que falamos tanto de Marx (o que
está muito bem) e tão pouco de Engels (o que é muito ruim, e além disso
é injusto)? Marx foi o grande diretor da orquestra e Engels um
interessante e fiel primeiro violino?*

Felizmente, depois de décadas de denegrimento de Engels, sobretudo por
parte dos “neo” e “pós” marxismos (no livro explico porque), está
criando força um movimento de recuperação de sua enorme figura dentro do
marxismo (aproveitando o recente bicentenário de seu natalício).

El Viejo Topo publicou recentemente, um grande trabalho de González
Varela, Friedrich Engels antes de Marx, onde se põe no lugar a
importância teórica, política e revolucionária deste colosso que se
empenhou em ser o “segundo violino” para dar lugar a Marx (como ele
mesmo escreveu a Mehring, “Se encontro algo a discordar é que você me
atribui mais crédito do que mereço, ainda que tenha em conta tudo o que,
com o tempo, possivelmente poderia ter descoberto por mim mesmo, com seu
coup d’oeil mais rápido, e sua visão mais ampla, descobriu muito mais
rapidamente. Quando se tem a sorte de trabalhar durante quarenta anos
com um homem como Marx, geralmente não se lhe reconhece em vida o que se
crê merecer. Se morre o grande homem, ao menor facilmente se
super-estima, e este parece ser justamente o meu caso na atualidade; a
história terminará por pôr as coisas no seu lugar”.

Engels tem uma dimensão impressionante, e foi o precursor e inspirador
de Marx em diferentes campos (o da luta pela igualdade entre mulheres e
homens, entre outros). De fato, como é mais sabido, é quem inicia Marx
no materialismo e quem abre a via que este materialismo se dialetizasse.
E sem dúvidas, parte de sua grandeza está em que ele mesmo se põe de
lado para permitir que fosse seu amigo quem ocupasse um primeiro plano,
porque apesar de que fosse Engels que o guiasse em várias ocasiões,
havia descoberto em Marx, um potencial que o superava intelectualmente
e, como bom revolucionário, decide colocar-se em segundo plano.

*“O capitalismo está em fase terminal”. Que indícios te levam a esta
conclusão? À primeira vista não é o que parece. Para alguns, que não são
poucos, segue mais vivo que nunca apesar de suas crises e tropeços.*

As razões principais que venho indicando e desenvolvendo em meus
trabalhos, nos últimos doze anos pelo menos, alguns dos quais você cita
na introdução. Também temos expostas nas elaborações coletivas da OIC.
Eu as resumo esquematicamente.

Neste momento histórico o capitalismo viola crescentemente os dois
principais elementos que constituem sua razão de ser:   a conversão do
dinheiro em capital e a conversão de seres humanos em força de trabalho
assalariada (inclusão real do trabalho ao capital), ou dito de outra
maneira, em uma mercadoria que realiza o trabalho abstrato.

Temos visto alguns dos problemas aos quais enfrenta o neoliberalismo
financeirizado como modelo de crescimento que se tem tentado por em
prática em escala quase planetária. Com a degeneração deste modelo, o
capitalismo em si mesmo enfrenta uma série de contradições cada vez mais
intransponíveis:

  * 1. Entre acumulação e regulação (forma em que se expressa hoje a
    contradição clássica entre desenvolvimento das forças produtivas e
    relações sociais de produção).
  * 2. Entre valorização e realização (dada que a escassa recuperação da
    taxa de lucro na produção se faz a custa de uma exacerbada depressão
    da demanda).
  * 3. Entre valor fictício gerado pela estrutura financeira e
    especulativa mundial e a mais valia real gerada, que responde a um
    estancamento da rentabilidade (o que denotou uma recuperação parcial
    das taxas de lucro sem acumulação proporcional do capital)
  * 4. Entre estancamento e endividamento, o qual como fator
    imprescindível do crescimento atual não tem contrapartida, nem
    produtiva, nem energética para possibilitar que uma acumulação
    hipotética futura possa satisfazer as dívidas do presente.
  * 5. Entre o valor capitalista e a riqueza social e natural, pois
    aquele depende cada vez mais da destruição destas.
  * 6. Entre o desenvolvimento das forças produtivas (a automatização) e
    as bases de sustentação do capitalismo: valor, trabalho assalariado,
    mais valia, lucro..., que resultam crescentemente deterioradas.

Põe-se a prova, além disso, a adaptação funcional do complexo
institucional e de dominação frente ao processo de ajustamento
capitalista. Ou o que é o mesmo, poderíamos apontar uma provável
contradição crescente entre legitimidade e formas unilaterais atuais de
“regulação social” (ou se se quiser, do que eles chamam de “governança”
em curso).

Para calibrar esta última contradição e ao mesmo tempo desafiá-la, é
preciso ter em conta que assistimos neste impasse – enquanto se produz
do declínio do neoliberalismo financeirizado (em que sempre sobreviveram
resquícios do keynesianismo) e não termina de coagular-se nenhum modelo
novo que o substitua – a uma profunda reestruturação da dominação de
classe e da concentração do poder entre as elites dominantes à escala
global. Mas a destruição social que implicam todas estas dinâmicas tem
uma correlação inescapável:   sem sociedade não há economia.

*Falavas do caráter ilusório da democracia capitalista. Por que? Não é
por acaso que muitas “conquistas democráticas” como o direito de greve e
de manifestação, a jornada (muitas vezes não cumprida) das 40 horas
semanais, são fruto de sacrificadas, arriscadas e as vezes heroicas
lutas dos trabalhadores e trabalhadoras?*

Os êxitos democráticos no capitalismo, isto é, conseguir decantá-lo até
a sua opção reformista ou social democrata (com uma relativa maior
distribuição do poder social, maior participação do conjunto da
sociedade nas decisões que a afetam; maior redistribuição do conjunto da
riqueza social), só puderam ser alcançadas historicamente, sempre
através das lutas de classe, quando coincidem três tipos de fatores:  
1) Quando a massa de ganho e com ela a taxa média de lucro se
desenvolvem satisfatoriamente para a classe capitalista.   2) Quando a
classe capitalista se vê com dificuldade de recolocar ou substituir a
força de trabalho; ou seja, quando se reduz muito o “exército laboral de
reserva”.   3) Quando a força de trabalho organizada adquire uma força
social e política relevante (as possibilidades desta condição estão por
sua vez profundamente vinculadas às duas anteriores).

Nesta fase do capitalismo não se dão nenhum destes fatores. Antes pelo
contrário, temos uma acumulação de capital estancada (gripada) e sem
sinais de superação; um “exército laboral de reserva” que hoje se tornou
global, com pelo menos 4.200 milhões de pessoas em situação de
“disponibilidade migratória”, para onde e quando o capital requerer. O
poder social de negociação (capacidade de fazer valer os próprios
interesses à escala social) da força de trabalho fica, com tudo isso,
reduzido ao mínimo.

Isso quer dizer que pretender melhorias sociais substanciais dentro do
capitalismo atual vai-se convertendo cada vez mais numa quimera (os
fatos históricos que vivemos há pelo menos 30 anos assim o atestam). O
avanço social cada vez mais claramente só poderá ser feito contra o
capitalismo, como parte de um projeto de construção de outra civilização.

*Uma de suas teses centrais: a não independência da política a respeito
do valor. Pode nos dar algum exemplo desta dependência?*

Pelas mesmas razões que acabo de expor, se o capitalismo vai mal, se tem
dificuldades para ampliar o valor ou realizar a mais valia, não pode
permitir aberturas democráticas. A política se fecha e se dirige em toda
sua amplitude e intensidade a tentar mitigar a queda do valor. Isto se
traduz em contrarreformas trabalhistas e fiscais, aumento exponencial da
exploração, degradação dos mercados de trabalho e militarização das
relações internacionais. Na ciência há bastante premissas mais difíceis
de comprovar que esta questão teórica que estou te enunciando. Já viemos
constatando em nossas experiências de vida desde os anos 70 do século XX.

Por isso, precisamente o que proponho no livro é que a política dentro
dos canais do capital está praticamente fechada. É cada vez mais um mero
instrumento do (moribundo) valor. Repito, hoje somente contra o capital,
novas conquistas sociais podem ser alcançadas. Então é preciso começar a
repensar projetos e estratégias a partir destas considerações, em vez de
olhar para trás, como fazem as esquerdas do sistema (ou esquerdas
integradas) em todos os lados, para ver se o capitalismo volta ou
recupera sua fase keynesiana. Como se isso fosse possível.

*

E não é, em sua opinião, claro. Duas das questões centrais que
desenvolve na primeira parte do livro: a teoria do valor-trabalho e da
lei tendencial da queda da taxa de lucro. Pergunto-te sobre elas.

*

SEGUNDA PARTE DA ENTREVISTA

*Duas das questões centrais que desenvolves na primeira parte: a teoria
do valor-trabalho e a lei tendencial da queda da taxa de lucro. Por que
são tão essenciais na sua interpretação do marxismo?*

Efetivamente, dedico toda a primeira parte do livro a tentar
explicá-los. De novo, tento resumi-los. O valor é relação social de
produção que ganha corpo nas mercadorias, de onde resulta o nexo social
elementar do qual derivam as formas de ser e a consciência na sociedade
capitalista.

O valor torna-se uma forma de riqueza que mede a si mesma através do
gasto de (tempo de) trabalho abstrato (um trabalho social, médio)
empregado na produção de mercadorias, e que se expressa como valor de
troca ou preço. Se o trabalho concreto de cada um gera produtos para
satisfazer necessidades, o trabalho abstrato produz mercadorias para
aumentar o ganho de quem o possui (e não de quem o exerce), uma vez que
aqueles passaram pelo mercado (ou seja, quase nunca estas mercadorias
estão destinadas àqueles que as produzem).

Mas a forma mercadoria não alude somente aos produtos humanos destinados
ao mercado (como em outros modos de produção) e sim estrutura toda a
produção, distribuição e consumo, em suma, em conjunto das relações
sociais no capitalismo.

Como querem que as mercadorias estejam diretamente ligadas ao valor ao
invés de vincular-se à riqueza material, o importante no capitalismo não
é a geração de riqueza enquanto produtos ou bens que satisfazem
necessidades (valores de uso) e sim a obtenção incessante e ampliada de
valor. Porém, nem tanto em si mesmo, mas como mais-valor (mais-valia),
ou o valor novo que os seres humanos geram com o seu trabalho e que não
lhes é pago.

Marx descobriu que ao ir substituindo trabalho humano (trabalho vivo)
por máquinas (trabalho morto), a fonte do ganho, o mais-valor, decai
necessariamente. No livro pretendo mostrar porque Marx acertou com esta
previsão e a importância substancial que tem para explicar as crises
capitalistas, assim como a sua doença crónica, da qual não pode escapar
por mais que a evite: a superacumulação de capital (cada vez mais
máquinas em vez de força de trabalho, para dizer de forma mais simples).
E já o faço não somente contra os teóricos clássicos e neoclássicos que
a negam, mas também contra alguns “neo” marxistas que também a põem em
causa.

A segunda parte do seu livro foi dedicada as escolas neomarxistas que,
segundo afirma, tem, de fato, apagado a práxis. Por isso, fala de seu
caráter parcial e impolítico. Não é uma contradição falar de escolas de
inspiração marxista que tenham abandonado a práxis política?

Para mim sim. Sem projeção política traduzida em programas ou linhas de
ação e de intervenção sobre a realidade não há marxismo. Poderia haver
materialismo e poderia haver dialética, mas não marxismo. De todas as
formas alguns dos autodenominados neomarxistas renegam também o
materialismo e a dialética e inclusive as vezes a ambos.

*E qual seria sua principal crítica aos neomarxismos que você analisa no
seu livro?*

Muito próxima da que lhes dedicou Bensaid. Construiram (ou pelo menos
tem tentado apresentar-nos) um Marx sem comunismo nem revolução, sem
organização nem partido, sem programa nem estratégia, um Marx abstrato e
“esotérico” desprovido de qualquer vertente programática e incapaz de
articular ou de mobilizar sujeitos coletivos reais. Uma teoria
in-política que proclama o apoliticismo (como faz a Nova Crítica do
Valor), faz propostas que posteriormente resultam inócuas para o sistema
(como o “marxismo aberto”, o “autonomista” ou a Nova Leitura de Marx).

Não há em suas elaborações, análises da correlação de forças nem da
incidência nela, tampouco estudo da fase ou da etapa do capitalismo.
Estão sustentadas, no geral, em abstrações sem tradução
empírico-política ou no melhor dos casos, se detêm na necessária análise
de certos elementos nucleares do capital, mas sem oferecer jamais uma
tradução política, sem dar um salto à práxis.

*Pelo mesmo caminho que a pergunta anterior. Por que o populismo de
esquerda tem tido tanto êxito em algumas ocasiões? Por que, como afirma,
é o fundamento de todos os pós marxismos?*

Faz parte da dotação in-política do capitalismo degenerativo atual, que
impregna a esquerda integrada, a esquerda do sistema. Isso o explica.

O problema para as diferentes frações do capital foi desde o princípio
como manejar, ainda que continuando sua luta por um lucro minguante, a
decomposição da civilização industrial-fossilista, a destruição da
sociedade e a metamorfose das relações de classe. O neoliberalismo
esteve planificado desde o início para reprimir e desativar
politicamente a sociedade.

Na medida em que, além disso, torna mais tangível a pobreza, sujidade e
a corrupção da política de classe do capital, provoca, crescentemente,
um desinteresse generalizado pela política e “os políticos” (de fato,
com isso se consolidaria o divórcio entre a tradição liberal e a
democrática). Por isso, enquanto que é fragmentária, por vezes
contraditória e inclusive conflituosa, é, em todo caso a incompleta
“revolução passiva” das elites, o pós neoliberalismo no qual entramos
afunda na “in-política” e, dentro dela, na construção populista da
política (tal como o pós-modernismo que se continua a servir no âmbito
acadêmico-cultural).

O primeiro passo para isso consistiu em criar uma fronteira política
capaz de agrupar uma boa parte das demandas sociais de um determinado
momento em um campo comum e definir ao mesmo tempo um inimigo que se
situa do outro lado dessa fronteira. Neste sentido, uma das estratégias
recorrentes de contenção do descontentamento social por parte das elites
reside no que Marx chamou de personificação das relações sociais de
produção, isto é, a criação de um inimigo concreto que absolva da ira
popular, o próprio Sistema. Aqui as possibilidades estão abertas: os
banqueiros, os políticos corruptos, as transnacionais, a “casta” ...
Abre-se caminho assim para as dicotomias “nós”/”eles”, o “povo”/os
“ricos”, os 99%/o 1%, etc. É desta maneira que, pouco a pouco começam a
levantar-se os fundamentos do neopopulismo.

*Seria um populismo sem povo?*

Exato, um populismo sem povo. Um passo seguinte, segundo os próprios
Laclau e Mouffe é que uma destas demandas, a que seja mais capaz de
preencher os “vazios significantes” em que se traduzam as reivindicações
de uns e outros setores da população, aglutine as restantes (nisto
consiste também, aproximadamente, sua noção de “hegemonia”).

Para completar o processo, ainda resta definir o “nós”, o “povo”, que já
não pode estar marcado pelas construções antagonistas do capitalismo
industrial. Agora já pode ser o resultado da sobredeterminação
hegemônica de uma demanda democrática particular que preencha ou dá
sentido a um “vazio significante”. Mas como querem que o neoliberalismo
não somente desfez a sociedade, como também diluiu as classes, dessa
forma decreta-se o fim da luta da classe trabalhadora contra a classe
que personifica o capital, têm portanto que buscar uma nova “comunidade”
(uma vez descartadas as organizações políticas de classe) que seja capaz
de levar a cabo as aspirações individuais.

O neo-povo (como somatório dos indivíduos que buscam seu assento na
decadência sistêmica) está pensado para deixar de lado as classes, de
fato, virá substituí-las. Será posicionado contra a ideias “velhas” da
política e levantar-se-á contra os efeitos do mercado e as consequências
visíveis da redefinição do papel do Estado como impulsor da rapina
neoliberal contra a sociedade (precarização dos mercados de trabalho,
desmonte dos serviços sociais, aproveitamento crescente do trabalho não
pago, a apropriação do público e do comum, deriva de fundos públicos a
empresas privadas, corrupção enraizada e generalizada...).

A cereja no topo do bolo é a necessidade de uma liderança forte que guie
o neo-povo, a coisa mais próxima de um líder bonapartista que articule
de maneira vertical (estatal) as demandas populares. Então, o
neopopulismo necessita de um vínculo direto das massas em torno da
figura de um/a líder carismático/a; o qual permite a substituição de um
programa político estratégico por um rosário de ideias-força ou
palavras-de-ordem suscetíveis de dar vida a uma organização de elites,
mas com um predicado interclassista na realidade pouco democrático.

*Quais seriam as suas principais críticas ao que chama de “pós”
feminismo? Inclui a obra de Silvia Federici nesse feminismo?*

Claro, de fato ponho-a como exemplo. O qual não vai contra sua grande
obra teórica em numerosos aspectos. O que me preocupa são as propostas
práticas, a união da teoria com a capacidade de transformar o mundo,
isto é, a práxis. Brilham aqui, por sua ausência, os programas, as
estratégias, as análises (uma vez mais) da correlação de forças, os
passos a curto, médio e logo prazo de tudo isso carece também boa parte
do feminismo de hoje, o feminismo não marxista.

*Pergunto o mesmo sobre o decrescentismo de orientação socialista.
Exemplo, não te parecem convincentes, os argumentos utilizados por um
dos seus máximos defensores na Espanha, o muito ativo e incansável amigo
Jorge Reichmann?*

Claro que “decrescer” em certos aspectos é certamente necessário, agora
bem, no que, em razão de que, com que objetivos finais, como o fazemos.
Grande parte do ecologismo hoje se dá de forma amorosa, bondosa,
compartilha a ingenuidade de pensar que os fundamentos do capitalismo
podem inverter-se ou reverter-se e que a ditadura da taxa de lucro é
suscetível de deixar de funcionar para salvar a Terra, ao mesmo tempo
que o capitalismo pode continuar existindo.

Por isso, nos fala tão pouco de revolução político e social nem de lutas
de classe, nem de massas organizadas com programas políticos
altersistêmicos, tomadas de poder, etc. Não, o que propõem, como digo no
livro seguindo Alfredo Apilánes, é uma espécie de transição tranquila e
serena até a “sociedade da convivência”. Claro, com essas premissas
vemos para onde vai realmente o sistema.

Quanto ao Jorge, tenho um grande respeito pelo seu trabalho. O problema
é que, como tantos outros no seu campo, foi deixando de lado a política
para substituí-la por algo parecido com uma pregação (e digo-o como
crítica fraterna). Às vezes, ao ouvir muitos desses autores e ativistas
tenho a impressão de estar assistindo a admoestações ou a sermões a
partir dos púlpitos. Tudo parece resumir-se em adquirir consciência, se
arrepender, centrar-se em conseguir “revoluções pessoais” e em esperar
que os poderes se convertam ao “decrescentismo”, tal como o Império
Romano se converteu ao cristianismo. E certamente por esse caminho no
final haverá decrescimento, mas será na forma de catástrofe.

*Não creio que Jorge tenha deixado de lado a política. Deixou-me mais de
mil perguntas no arquivo. Algo mais que queiras acrescentar?*

Sim. A grave encruzilhada civilizatória que atravessamos, com seus
enormes desafios ecológico-climáticos, econômico-demográficos e sociais,
não pode ser enfrentada a partir dos princípios básicos do modo de
produção capitalista (competição, individualismo, ditadura da taxa de
lucro, interesses curto-prazistas, pilhagem da riqueza social e natural,
desigualdade crescente abissal, guerra permanente...), mas somente
através da cooperação, da comunidade e da planificação.

Nenhuma delas pode verificar-se em escala satisfatória num modo de
produção baseado na feroz competição entre interesses privados e na
tomada de decisão por parte do capital particular. A coesão social,
imprescindível para aqueles objetivos, tão pouco pode ser alcançada sem
nivelamento de partes. Isto é, sem ao menos um considerável grau de
igualdade social tanto local quanto mundial.

Tais condições só têm alguma possibilidade de serem alcançadas através
de um modo de produção em que os meios de produção e de vida estejam
socializados, onde se possa planificar, portanto, a partir do interesse
comum e para o bem comum. Talvez a máxima clássica do “Socialismo ou
barbárie” tenha que dar lugar a outra ainda mais peremptória, a de
“Revolução ou extinção”.


        13/Setembro/2022


    [*] Professor titular de sociologia e antropologia social na
    Universidad Jaume I de Castellón (Espanha) e membro do Observatório
    Internacional de la Crisis (OIC), no qual estuda há quinze anos a
    crise civilizatória do capitalismo.   O seu livro mais recente é /De
    la decadencia de la política en el capitalismo terminal/
    <https://www.bookdepository.com/De-la-Decadencia-de-la-Pol%C3%ADtica-en-el-Capitalismo-terminal-Andr%C3%A9s-PIQUERAS/9788418550980?ref=grid-view&qid=1674009724012&sr=1-1>. Dentre os anteriores pode-se mencionar /Las sociedades de las personas sin valor: cuarta revolución industrial: des-substanciación del capital, desvaloración generalizada <https://www.bookdepository.com/Las-sociedades-de-las-personas-sin-valor-cuarta-revoluci%C3%B3n-industrial-des-substanciaci%C3%B3n-del-capital-desvaloraci%C3%B3n-generalizada-Andr%C3%A9s-Piqueras-Infante/9788416995882?ref=grid-view&qid=1674010031188&sr=1-2>; La tragedia de nuestro tiempo : la destrucción de la sociedad y la naturaleza por el capital <https://www.bookdepository.com/La-tragedia-de-nuestro-tiempo-la-destrucci%C3%B3n-de-la-sociedad-y-la-naturaleza-por-el-capital-Andr%C3%A9s-Piqueras-Infante/9788416421695?ref=grid-view&qid=1674010105521&sr=1-3>; Capital, migraciones e identidades : inmigracion y sociedad en el Pais Valenciano: El caso de Castellon <https://www.bookdepository.com/Capital-Migraciones-E-Identidades-Andr%C3%A9s-Piqueras-Infante/9788480216180?ref=grid-view&qid=1674010174052&sr=1-4>; El colapso de la globalización: la humanidad frente a la gran transición; La opcion reformista; Entre el despotismo y la revolucion; Capitalismo mutante, crisis y lucha social en un sistema en degeneración; La tragédia de nuestro tiempo; La destrucción de la sociedad y la naturaleza por el capital; De la decadencia de la política en el capitalismo terminal. /


    O original encontra-se em
    observatoriocrisis.com/2022/09/13/profesor-piqueras-los-neomarxistas-han-construido-un-marxismo-sin-revolucion-sin-organizacion-ni-partido-sin-programa-ni-estrategia-un-marx-abstracto-y-esoterico/ <https://observatoriocrisis.com/2022/09/13/profesor-piqueras-los-neomarxistas-han-construido-un-marxismo-sin-revolucion-sin-organizacion-ni-partido-sin-programa-ni-estrategia-un-marx-abstracto-y-esoterico/>. Tradução de JACG.

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/piqueras_13set22.html
18/1/2023

Nenhum comentário:

Postar um comentário