sábado, 21 de novembro de 2015

A aula dos "secundas" ***





Jorge Luiz Souto Maior

O Brasil vive um momento bastante complexo, que nos dificulta a compreensão dos
fatos, também porque muito do que se sabe pela grande mídia não são os fatos
propriamente ditos, mas versões, tantas vezes deturpadas, sentimental ou
propositalmente construídas.

O resultado é o imobilismo, porque fica bem difícil saber para onde ir, o que e
a quem defender.

Em meio a tudo isso, eis que os estudantes secundaristas, pessoas de 13 a 16 de
idade – alguns com 17 ou 18 –, resolvem mostrar que é possível ter boas e
certeiras causas pelas quais lutar e saem às ruas em defesa das escolas públicas
nas quais estudam.

E não o fazem por mera farra. Agem com convicção, com consciência em torno da
importância do ensino público. Defendem as escolas não apenas para si, mas por
princípio. Sabem bem do descaso em que, estruturalmente, foi deixada a coisa
pública. Sofrem, em inúmeras situações, com a precariedade das acomodações e com
a redução de material. Mas não acolhem, de forma radical, ou seja, sem titubear,
a ideia do governo do Estado de fechar escolas, de aumentar o número de alunos
por sala, de separar o ensino fundamental do ensino médio e, consequentemente,
de transferir de forma arbitrária estudantes de uma escola para outra,
dificultando o acesso à educação.

Os estudantes, ao saírem em defesa de “suas escolas”, demonstram, para todo o
país, que o Brasil não é só corrupção, não é só desmandos administrativos, não é
só favoritismo, não é só egoísmo, individualismo e busca de sucesso pessoal por
meio de ganhos financeiros e de “status”, como a grande mídia insiste em
divulgar. Aliás, para essa gente destruidora da moral da população brasileira
todas as pessoas são iguais a ela e, segundo tenta difundir, os jovens são
alienados, drogados, descomprometidos, preguiçosos e, consequentemente,
ignorantes.

Mas o que se tem em concreto na mobilização dos “secundas”, como se intitulam,
são jovens levantando a bandeira da defesa da educação pública de qualidade. São
jovens, portanto, que querem estudar, mas que também se preocupam em defender a
instituição responsável por isso, mesmo reconhecendo as deficiências estruturais
das escolas, sendo que isso, ao mesmo tempo, representa o reconhecimento da
qualidade de ensino que os professores e professoras, com todas as dificuldades,
ainda conseguem lhes transmitir.

Então, era para que todas as pessoas sérias e que se consideram minimamente
preocupadas com a melhora do país estivessem na frente das escolas aplaudindo os
estudantes, porque, afinal, estão dando uma aula, que, inclusive, serve à
redenção de todos nós. Os estudantes estão dando uma aula de cidadania, de
compreensão, de comprometimento, de consciência, de organização e de luta. Uma
aula que deixa uma grande e essencial mensagem: o Brasil tem jeito!

No entanto, bem ao contrário, o que se vê é um esforço midiático muito grande
para desconsiderar a importância “revolucionária” do movimento, que está
refletido em ocupações em 20 (vinte) escolas, mas que, obviamente, não se reduz
a isso. De fato, a defesa coletiva e consciente das escolas públicas reflete a
situação de que os estudantes compreendem bem a sociedade em que vivem e que não
pretendem ficar ali parados, seguindo um destino que lhes foi traçado de serem,
no futuro, força de mão-de-obra desqualificada para alimentar um sistema que
reforça as desigualdades.

Aliás, é bem isso, ou seja, o risco da perda da mão-de-obra desqualificada, para
a realização de serviços que, embora dignos, foram socialmente reduzidos a uma
condição subalterna e impregnados de submissão, que incomoda tanto à classe
economicamente dominante, que vai às ruas defender um Brasil melhor, mas que
olha com desdém a mobilização dos secundaristas.

É também por isso, aliás, que o governo do Estado não apenas tenta implementar
uma política para a escola pública que visa punir os professores e as
professoras pela sua atuação politicamente consciente, como também trata os
estudantes, não como adolescentes, que de fato são, mas como rebeldes que não
querem seguir os seus desígnios, chegando a enxergá-los como “operários” que se
recusam a trabalhar, sendo por essa razão, ademais, que se interligam as pautas
dos estudantes, dos professores e dos trabalhadores.

E a cena extremamente deprimente que se vê é a da escola pública transformada em
uma prisão, cercada de policiais, fortemente armados e cegamente preparados,
fazendo parecer que os estudantes que ocupam a escola, em ato político, já estão
presos e sob a ameaça de males ainda maiores, chegando a situações de gravidade
e dramaticidade como se verifica na EE José Lins do Rego, na zona sul, e na EE
Salvador Allende, na zona leste de São Paulo, e na EE CEFAM, em Diadema.

E alguém pode se perguntar: que Estado é esse que enfrenta com força bruta
estudantes adolescentes de escolas públicas que defendem a sua escola e o seu
direito constitucional de estudar?

A resposta é simples: é um Estado que protege interesses do poder econômico e
que não quer permitir a ocorrência das transformações sociais possibilitadas
pela melhora do ensino que, provoca, inclusive, a diminuição das diferenças de
oportunidades. Um Estado que é capaz de transformar o ato político de
adolescentes que querem estudar em caso de polícia, sob o falso argumento da
defesa do patrimônio público, afinal, estamos falando de um patrimônio que o
Estado nunca cuidou e que, portanto, se fosse para punir juridicamente a
depredação do patrimônio público das escolas os governantes já deveriam estar
presos há muito tempo.

Estado que, ao mesmo tempo, é totalmente incapaz de tratar com o mínimo rigor,
no que se refere ao menos ao cumprimento das leis, grandes empresas, que, a cada
dia, poluem, exploram, quando não matam, como se viu, agora, na região de
Mariana/MG, e como está impregnado em tantos monumentos, da transamazônica aos
estádios da Copa, passando por usinas, hidroelétricas e pontes.

É um Estado, portanto, que quer manter a ocupação de doméstica para a filha da
doméstica.

Mas a brutalidade não vence a consciência e, portanto, o que os governantes de
plantão pretendem é, de fato, uma grande ilusão, pois as mudanças sociais no
Brasil, sobretudo a partir de junho de 2013, já estão em curso irreversível, até
porque a mudança em termos de compreensão de mundo não é um fenômeno exclusivo
do ensino público.

Também no ensino privado, nas consideradas melhores escolas do país, por obra de
competentes gestores e valorosos professores e professoras, o economicismo cede
espaço ao humanismo, à solidariedade, à naturalização quanto à equiparação das
oportunidades e a repartição da riqueza, à tolerância, à condenação aos
preconceitos, sobretudo, de raça e de etnia, ao respeito às diversidades, às
opções de sexualidade e à igualdade de gênero, fazendo com que a distância de
mentalidade entre os jovens de classes sociais diversas seja cada vez menor, o
que favorece à superação de um conflito tão estimulado em gerações passadas.

Essa mudança é tão sentida que adeptos do “status quo”, impregnados pelo
escravismo, pelo racismo, pelo machismo, pela discriminação e pela intolerância,
financiam campanhas contra o que chamam de “doutrinação marxista” nas escolas.
Gente que nunca leu as obras de Marx e que nem de longe sabe o que é marxismo.
Gente que despreza, inclusive, os Direitos Humanos e que, no fundo, tem medo do
conhecimento, porque conhecer a realidade das coisas pode ser doloroso e
incômodo.

Outro dia li em uma mensagem de Facebook: “São esses Direitos Humanos que impede
(SIC) o desenvolvimento do país”. Mas como já dizia o personagem de Mário
Tupinambá, na Escolinha do Professor Raimundo, “a ignorança é que astravanca o
progréssio!”

Fato é que a escola, pública e privada, não pode deixar de cumprir o seu papel
essencial de transmitir o conhecimento, não se reduzindo, pois, a formar
mão-de-obra para o mercado, sendo inevitável, por conseguinte, que assumamos o
“risco” de sermos seres humanos dotados de consciência e conhecimento.

E que ninguém se iluda, esse não é um caminho fácil e a reação policial aos
jovens estudantes demonstra bem isso, assim como as diversas formas de opressão,
criadas nos regimes ditatoriais brasileiros, que ainda estão vigentes,
sobressaindo a reprimenda moral e jurídica às greves dos trabalhadores, sendo
que se alia a tudo isso, para conter os avanços, a forte campanha que se tem
difundido “a favor” da crise econômica, cuja função é a de instaurar o medo e,
com isso, inibir as lutas políticas pela consagração e efetivação de direitos
sociais.

Ainda assim as mudanças em torno da diminuição das desigualdades sociais,
políticas e econômicas estão ocorrendo e continuarão em curso e se os políticos
e governantes não sabem disso seria de todo conveniente que aproveitassem o
momento em que os estudantes os chamam para o diálogo e se dignassem de ir às
escolas não só para conversar com os secundaristas, mas para aprender com eles,
como, aliás, de forma exemplar, fez o membro do Ministério Público, João Paulo
Faustinoni e Silva, que, após comparecer à ocupação da EE Fernão Dias e
compreender o que estava de fato acontecendo no local, pediu a revogação da
liminar de reintegração de posse e conseguiu, com o reforço argumentativo da
APEOESP, que o juiz da causa, Luis Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara de Fazenda
Pública, adotasse a grandiosa postura de rever seu posicionamento e proferisse
belíssima e importantíssima decisão sobre o caso (Processo n.
1045195-07.2015.8.26.0053).

Eu também fui ao local, onde passei toda a tarde e o início da noite de
sexta-feira, dia 13, e posso garantir que se aprende muito com os estudantes,
notadamente quanto à sua capacidade de organização e à sua compreensão de mundo.

Ou seja, uma boa forma para acelerar o processo de mudanças, tornando-o menos
traumático, seria a de uma espécie de retorno dos políticos e governantes à
escola, para terem uma aula de cidadania com os estudantes.

Enfim, quero deixar consignado aqui um manifesto de apoio à defesa das escolas
públicas, contra, portanto, o projeto de reestruturação apresentado pelo governo
do Estado de São Paulo, transmitindo toda a força aos “secundas” e aos
professores e professoras pela sua luta, não porque, de fato, precisem de mim,
mas porque todos nós, cidadãs e cidadãos brasileiros, precisamos muito de uma
aula como essa!

São Paulo, 15 de novembro de 2015.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP.

In
Intersindical
http://www.intersindicalcentral.com.br/jorge-souto-maior-a-aula-dos-secundas/
16/11/2015

*** A luta pelo controle dos locais de trabalho é uma tema histórico, clássico, do movimento operário e popular. No Brasil, a busca desse controle tem sido uma das razões de ser do MST.Talvez seja um sintoma bem significativo dos tempos atuais que esse tipo de ação tenha chegado agora à educação.

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