segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Rumo ao domínio corporativo global






por Prabhat Patnaik [*]

Os Estados Unidos estão a implementar uma nova arquitetura de domínio
empresarial global através duma série de tratados de investimento que,
neste momento, estão a negociar com vários países. Quando todos esses
tratados entrarem em vigor, a extensão da sua jurisdição cobrirá 80% do
PIB global, ou seja, praticamente toda a economia mundial. Estes tratados
incluem um conjunto de Tratados Bilaterais de Investimento (TBIs), a
Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e a Parceria
Trans-Pacífico (TPP). Como a Índia está a ser pressionada para aderir a
estes tratados, é importante que estudemos cuidadosamente a sua
arquitetura.

Três características significativas

Há, pelo menos, três características significativas nestes tratados.
Dessas três, a mais significativa é o mecanismo ISDS , o mecanismo de
resolução de conflitos investidor-estado. Segundo ele, os investidores
privados poderão processar um estado soberano num tribunal arbitral
privado. Por outras palavras, o estado soberano prescinde do seu direito
de agir livremente no interesse público para restringir as operações dum
investidor estrangeiro. Caso o faça, não será levado a um tribunal que
esteja situado no seu país e que funcione de acordo com a sua
Constituição; será levado a um tribunal que funcione de acordo com o
tratado em questão e esteja mandatado para “proteger” o investidor privado
de ser prejudicado pelo estado.

Vejamos o que isto significa. Na Índia, no início dos anos 70, foi
aprovada a Lei Regulamentadora do Mercado Cambial (LRMC), que estipulava
uma série de restrições às empresas estrangeiras. Se a Índia tivesse
assinado nessa altura este tratado de investimento, as empresas
estrangeiras poderiam ter levado o governo a um tribunal privado, com
poderes de jurisdição sobre o e Estado, e acima da Constituição, para
contestar qualquer redução dos seus direitos e, muito provavelmente,
teriam ganho o processo. E, claro, dada essa hipótese muito provável, o
governo nem se atreveria a aplicar a LRMC, porque teria visto a
inutilidade de o fazer.

O que se segue, portanto, é que qualquer governo que suceda ao que entrou
num contrato destes, fica preso ao que o governo anterior assinou; e o
tribunal que decide sobre a propriedade de qualquer ação desse governo
posterior não está obrigado a cumprir a Constituição desse país, ou seja,
de acordo com o espírito a ela subjacente (o que certamente levaria a
decidir a favor do governo, com base em que estava a servir o interesse
público, de acordo com a Constituição), mas com a letra instituída no
tratado. Por outras palavras, um tratado de investimento destes não só
representa uma grosseira intromissão na soberania do estado-nação, mas
impede em princípio a capacidade de o Estado cumprir o seu mandato
constitucional.

Nem é preciso dizer, representa também uma grosseira violação do
princípio da soberania do povo que é o fundamento da democracia. O povo
pode eleger um governo que tome medidas para melhorar as suas dificuldades
económicas, mas o governo ficará impossibilitado de tomar essas medidas,
se elas colidirem, seja por que forma for, com os interesses dos
investidores estrangeiros. É difícil imaginar qualquer medida económica
significativa que não tenha nenhuns efeitos, quer imediatamente quer
potencialmente, nos investidores estrangeiros. Até a redistribuição de
terras ficará excluída com um tratado destes, porque provavelmente
significará uma apropriação de terras de investidores estrangeiros que as
possuam, ou, no mínimo, a impossibilidade de eles poderem adquiri-las.

Os investidores sempre pretenderam que o Estado não coloque restrições à
“proteção” dos seus interesses, atenuando a possibilidade da afirmação
democrática do povo. Encurralar o país no vórtice dos fluxos financeiros
globalizados tem sido uma forma óbvia de garantir isso; porque qualquer
Estado que tome ação contra investidores estrangeiros corre o risco da
fuga de capitais. Mas esta “salvaguarda” não parece ser suficiente para os
investidores estrangeiros. Vale a pena assinalar que, em 2004, quando o
governo de Vajpayee foi derrubado, The Wall Street Journal comentou que
a decisão de escolher um governo não devia ser deixada apenas ao
eleitorado do país, mas a todo o grupo de “acionistas” desse país,
incluindo os investidores estrangeiros. Os tratados fomentados pelos EUA
destinam-se a garantir que, mesmo que o eleitorado escolha um novo
governo, os investidores estrangeiros estão protegidos de quaisquer
possíveis efeitos adversos dessa mudança.

A segunda característica destes tratados é que se por acaso o governo
recuperar a propriedade de investidores estrangeiros fica obrigado a dar
uma compensação “imediata, adequada e eficaz”. Os tratados normalmente
especificam que essa compensação deve ser feita à taxa preponderante do
mercado, e não apenas a uma taxa “justa”. Mesmo que o investidor
estrangeiro tenha inicialmente obtido uma faixa de terreno a um preço de
saldo, se esse terreno tiver que ser entregue ao governo, a compensação
terá que ser feita à “taxa do mercado”.

Isto torna muito difícil para o governo adquirir quaisquer terras ou
propriedades, visto que, habitualmente, não tem os recursos para pagar
uma compensação elevada. Recuperar terras de plantações de estrangeiros
para redistribuição entre os sem-terra, por exemplo, será impossível em
qualquer país amarrado a um tratado destes, porque os recursos financeiros
para pagar as compensações dificilmente estarão dentro das
disponibilidades do governo.

Para além disso, qualquer redistribuição de ativos, pela própria
definição, deve significar apropriar-se dos ativos de uns com o objetivo
de os distribuir por outros. Por outras palavras, tem que significar uma
redução na posse dos ativos de uns e um aumento na posse dos ativos
por outros. Se todas as situações de apropriação de ativos tiverem que ser
acompanhadas por uma compensação ao valor do mercado, não há redução na
posse dos ativos para os abastados, mas apenas uma mudança na forma da
posse do ativo: um ativo sob a forma de terras converte-se em dinheiro,
sem que o seu proprietário sofra qualquer redução no seu valor. Em resumo,
a redistribuição de ativos fica excluída, pelo menos no que se refere ao
capital estrangeiro, em qualquer país que assine um tratado destes.

A terceira característica destes tratados, que, por exemplo, caracteriza
o TPP, é que os investidores estrangeiros devem ser tratados em pé de
igualdade com os investidores nacionais, sob todas as formas, incluindo a
questão da posse de terras e de recursos minerais de um país. Como o termo
“investidores estrangeiros” aqui também inclui os investidores do setor
público, isso significa que, nestes tratados, fica excluída qualquer
tentativa de fomentar a autonomia, dando preferência às unidades do setor
público. Um país não pode exprimir preferência pela tecnologia
desenvolvida internamente, em relação à que o investidor estrangeiro tem;
não pode atingir a autonomia tecnológica; não pode fazer qualquer
tentativa para preservar as divisas estrangeiras, restringindo a
repatriação de dividendos para os donos duma empresa estrangeira, de
pagamentos de juros a credores estrangeiros, ou de pagamento de royalties
e emolumentos à companhia mãe das filiais estrangeiras que funcionam no
país.

Serve para perpetuar a desigualdade

Dado o facto de que o mundo já se caracteriza pelo controlo monopolista
da tecnologia pelos países capitalistas avançados; por uma tendência por
parte dos ricos na periferia para enviar a sua riqueza para a metrópole; e
pelas relações de poder desigual entre os países metropolitanos, por um
lado, e a periferia, por outro; o que esta condição significa basicamente
é que a dicotomia entre os dois segmentos do mundo será perpetuada.

Em resumo, os tratados que estão a ser impostos pelos EUA a uma série de
países do terceiro mundo, insistindo na igualdade de tratamento entre
investidores nacionais e estrangeiros, servem na verdade para perpetuar a
desigualdade que existe entre os dois segmentos do mundo.

O capital exige, sempre que funciona, o apoio e a proteção do Estado.
Quando o capital funciona globalmente, normalmente exige uma proteção
global. Mas os estados-nações individuais não estão em posição de
proporcionar essa proteção global. Nem mesmo o mais poderoso dos
estados-nações, os Estados Unidos, estão numa posição de proporcionar
essa proteção, porque isso acarretaria empenhar níveis de mão-de-obra e de
recursos extremamente altos, por todo o mundo, o que não se pretende. Não
há no horizonte nenhum estado-nação, nem sequer um consórcio de estados
capitalistas avançados, que possam assumir o papel de proteção do capital
globalizado. Além disso, mesmo que existisse esse consórcio, seria
necessário para os seus objetivos um qualquer aparelho legal, um qualquer
quadro de regulamentações acordadas, para poder atuar.

Os tratados de investimento que estão a ser implementados pelos EUA
destinam-se a criar esse aparelho; representam uma transição para um
conjunto de instituições acima dos estados-nações que servirão as
necessidades do capital globalizado, oferecendo a sua “proteção” onde quer
que funcionem. Mas o que é de assinalar é o facto de que não são
instituições de qualquer consórcio de estados-nações (como, por exemplo,
o Tribunal Internacional de Justiça); são instituições privadas . Por
outras palavras, não estamos a assistir a uma transição para instituições
governamentais acima de estados-nações; estamos a assistir, por
intermédio destes tratados, ao nascimento de um conjunto de instituições
privadas acima dos estados-nações. A globalização do capital está a gerar
atualmente uma tendência para o domínio empresarial global.

In
RESISRTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_15nov15_p.html
30/11/2015

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