quinta-feira, 19 de novembro de 2015

De Pol Pot ao ISIS: O sangue nunca secou





por John Pilger

Em 1969, ao transmitir ordens do presidente Richard Nixon para um
bombardeamento "maciço" do Cambodja, Henry Kissinger, disse: "Qualquer
coisa que voe sobre tudo o que se mova". Quando Barack Obama trava a sua
sétima guerra contra o mundo muçulmano desde que recebeu o Prémio Nobel da
Paz e François Holland promete um ataque "impiedoso" sobre os escombros da
Síria, a histeria e as mentiras orquestradas fazem-nos quase nostálgicos
da honestidade assassina de Kissinger.

Como testemunha das consequências humanas da selvajaria aérea – incluindo
a decapitação de vítimas, com suas partes a engrinaldarem árvores e campos
– não fico surpreso pela reiteração do desprezo para com a memória e a
história. Um exemplo impressionante foi a subida ao poder de Pol Pot e do
seu Khmer Rouge, o qual tinha muito em comum com o actual Islamic State
in Iraq and Syria (ISIS). Também eles foram implacáveis medievalistas que
principiaram como uma pequena seita. Também eles foram o produto de um
apocalipse de fabricação americana, desta vez na Ásia.

Segundo Pol Pot, seu movimento consistia em "menos de 5000 guerrilheiros
fracamente armados inconstantes quanto à sua estratégia, tácticas,
lealdade e líderes". Uma vez lançados os bombardeiros B-52 de Nixon e
Kissinger, no âmbito da "Operação Menu", o supremo demónio do ocidente mal
podia acreditar na sua sorte. Os americanos despejaram o equivalente a
cinco Hiroshimas no Cambodja rural durante os anos 1969-73. Eles
arrasaram aldeia após aldeia, retornando para bombardear os escombros e os
cadáveres. As crateras deixaram gigantescos colares de carnificina, ainda
visíveis do ar. O terror foi inimaginável. Um antigo oficial do Khmer
Rouge descreveu como os sobreviventes "perambulavam em torno, mudos,
durante três ou quatro dias. Aterrorizadas e meio enlouquecidas, as
pessoas estavam prontas a acreditar no que lhes diziam... Foi o que tornou
fácil para o Khmer Rouge convencer o povo". Uma Comissão de Inquérito do
Governo Finlandês estimou que 600 mil cambodgianos morreram em
consequência da guerra civil e descreveu os bombardeamentos como a
"primeira etapa numa década de genocídio". O que Nixon e Kissinger
começaram, Pol Pot, seu beneficiário, completou. Sob as suas bombas, o
Khmer Rouge cresceu até se tornar um formidável exército de 200 mil
homens.

O ISIS tem um passado e presente semelhante. De acordo com a maior parte
das avaliações académicas, a invasão de Bush e Blair do Iraque levou à
morte pelo menos 700 mil pessoas – num país que não tinha antecedente de
jihadismo. Os curdos haviam feito acordos territoriais e políticos; os
sunitas e xiitas tinham diferenças de classe e sectárias, mas estavam em
paz; casamentos mistos eram comuns. Três anos antes da invasão, viajei de
carro extensamente pelo Iraque sem medo. No caminho encontrei pessoas
orgulhosas, acima de tudo, de serem iraquianas, herdeiras de uma
civilização que para eles parecia presente.

Bush e Blair explodiram tudo isto em bocados. O Iraque é agora um ninho
de jihadismo. A Al-Qaeda – como os "jihadistas" de Pol Pot – aproveitaram
a oportunidade proporcionada pela carnificina do "Pavor e Choque" ("Shock
and Awe") e da guerra civil que se seguiu. A Síria "rebelde" oferecia
ainda maiores prémios, com as linhas de abastecimento de armas, de
logística e de dinheiro da CIA e dos estados do Golfo a passarem pela
Turquia. A chegada de recrutas estrangeiros era inevitável. Um antigo
embaixador britânico, Oliver Miles, escreveu: "O governo [Cameron] parece
estar a seguir o exemplo de Tony Blair, o qual ignorou conselhos
constantes do Foreign Office, MI5 e MI6 de que a nossa política no Médio
Oriente – e em particular nossas guerras no Médio Oriente – haviam sido um
impulsionador importante no recrutamento de muçulmanos na Grã-Bretanha
para o terrorismo aqui".

O ISIS é a resultante daqueles em Washington, Londres e Paris que, ao
conspirarem para destruir o Iraque, a Síria e a Líbia, cometeram um crime
gigantesco contra a humanidade. Tal como Pol Pot e o Khmer Rouge, os ISIS
são as mutações do terrorismo de estado ocidental administrado por uma
elite imperial corrupta que não recua diante das consequências das suas
acções. Sua culpabilidade não é sequer mencionada nas "nossas" sociedades,
tornando-as cúmplices daqueles que suprimem esta verdade crítica.

Passaram-se 23 anos desde que um holocausto envolveu o Iraque,
imediatamente após a primeira Guerra do Golfo, quando os EUA e a
Grã-Bretanha sequestraram o Conselho de Segurança das Nações Unidas e
impuseram "sanções" à população iraquiana – reforçando, ironicamente, a
autoridade interna de Saddam Hussein. Foi como um cerco medieval. Quase
tudo o que sustinha um estado moderno estava, no jargão, "bloqueado" –
desde o cloro para tornar seguro o abastecimento de água até lápis
escolares, peças para máquinas de raios X, analgésicos comuns e drogas
para combater cancros anteriormente desconhecidos – decorrentes do pó dos
campos de batalha do sul contaminados com urânio empobrecido (Depleted
Uranium). Pouco antes do Natal de 1999, o Departamento do Comércio e
Industria em Londres restringiu a exportação de vacinas destinadas a
proteger crianças iraquianas contra a difteria e febre-amarela. Kim
Howells, sub-secretário de Estado parlamentar no governo Blair, explicou a
razão: "As vacinas infantis", disse ele, "poderiam ser utilizadas em
armas de destruição em massa". O governo britânico pôde escapar impune a
tamanho ultraje porque as reportagens dos media sobre o Iraque – grande
parte delas manipuladas pelo Foreign Office – culpavam Saddam Hussein por
tudo.

Sob um falsamente humanitário Programa Petróleo por Alimentos, foram
atribuídos US$100 a cada iraquiano para viver durante um ano. Este número
tinha de ser suficiente para pagar toda a infraestrutura da sociedade
civil e serviços essenciais, tais como energia e água. "Imagine",
contou-me o secretário-geral Assistente da ONU, Hans Von Sponeck,
"estabelecer aquela ninharia contra a falta de água potável e o facto de
que a maioria das pessoas doentes não tem recursos para tratamento e o
trauma absoluto de sobreviver dia a dia, eis um vislumbre do pesadelo. E
não se engane, isto é deliberado. No passado não quis utilizar a palavra
genocídio, mas agora é inevitável". Desgostoso, Von Sponeck demitiu-se da
Coordenação Humanitária da ONU no Iraque. O seu antecessor, Denis
Halliday, um igualmente qualificado alto responsável da ONU, também se
demitiu. "Fui instruído", disse Halliday, "a implementar uma política que
satisfaz a definição de genocídio: uma política deliberada que
efectivamente a definição de genocídio: uma política deliberada que matou
de facto bem mais de um milhão de indivíduos, crianças e adultos".

Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, descobriu
que entre 1991 e 1998, na altura do bloqueio, houve um "excesso" de 500
mil mortes de crianças iraquianas com menos de cinco anos de idade. Um
repórter da American TV perguntou a Madeleine Albright, embaixadora dos
EUA nas Nações Unidas: "Será que valeu a pena pagar este preço". Resposta
de Albright: "Nós pensamos que valeu a pena".

Em 2007, o alto responsável oficial britânico pelas sanções, Carne Ross,
conhecido como "Mr. Iraq", disse a um comité parlamentar de selecção: "[Os
governos dos EUA e Grã-Bretanha] efectivamente negaram meios de vida a
toda a população". Quando entrevistei Carne Ross três anos depois ele
estava consumido pelo arrependimento e a contrição. "Sinto-me
envergonhado", disse ele. Hoje é um dos raros que dizem a verdade sobre
como governos enganam e como os media aquiescentes desempenham um papel
crítico na disseminação e manutenção do engano. "Nós alimentávamos
[jornalistas] com factóides de inteligência desinfectada", disse ele, "ou
os congelávamos do lado de fora". No ano passado, uma manchete não atípica
no Guardian dizia: "Confrontados com o horror do ISIS, devemos actuar".
O "devemos actuar" é um fantasma que se eleva, uma advertência da
supressão da memória informada, dos factos, das lições aprendidas e dos
arrependimentos ou vergonhas. O autor do artigo foi Peter Hain, o antigo
ministro do Foreign Office responsável pelo Iraque no governo Blair. Em
1968, quando Denis Halliday revelou a extensão do sofrimento no Iraque
pelo qual o governo Blair partilhava a responsabilidade primária, Hain
maltratou-o no [programa] Newsnight da BBC como sendo um "apologista de
Saddam". Em 2003, Hain apoiou a invasão de Blair do Iraque já massacrado
com base em mentiras transparentes. Numa conferência posterior do Partido
Trabalhista, ele considerou a invasão como uma "questão marginal".

Agora Hain estava a pedir "ataques aéreos, drones, equipamento militar e
outros apoios" àqueles que "enfrentavam o genocídio" no Iraque e na Síria.
Isto era, mais uma vez "o imperativo de uma solução política". No dia em
que o artigo de Hain foi publicado, Denis Halliday e Hans Von Sponeck por
acaso estavam em Londres e foram visitar-me. Eles não estavam chocados
pela hipocrisia mortal de um político, mas lamentavam a quase
inexplicável ausência de diplomacia inteligente na negociação de uma
aparência de trégua. Por todo o mundo, da Irlanda do Norte ao Nepal,
aqueles que encaravam o outro como terroristas e heréticos confrontaram-se
um ao outro numa mesa. Por que não agora no Iraque e na Síria? Ao invés
disso, há um insípido, quase sociopático, palavreado de Cameron, Hollande,
Obama e sua "coligação das vontades" quando prescrevem mais violência
despejada a partir de 9 km de altura sobre lugares onde o sangue de
aventuras anteriores nunca secou. Eles parecem saborear tanto a sua
própria violência e estupidez quanto querem derrubar o seu único aliado
potencial válido, o governo da Síria.

Isto não é nada de novo, como ilustra o seguinte dossiê escapado da
inteligência do Reino Unido-EUA:

"A fim de facilitar a acção das forças liberativas (sic)... deveria ser
feito um esforço especial para eliminar certos indivíduos chave [e]
prosseguir com perturbações internas na Síria. A CIA está preparada e o
SIS (MI6) tentará montar incidentes de sabotagens menores e um coup de
main (sic) dentro da Síria, trabalhando através de contactos com
indivíduos... um grau necessário de medo... fronteira e choques de
fronteira (encenados) proporcionarão um pretexto para intervenção... a CIA
e o SIS deveriam utilizar... capacidades tanto no campo psicológico como
da acção a fim de aumentar a tensão".

O texto acima é de 1957, embora pudesse ter sido escrito ontem. No mundo
imperial, nada muda no essencial. Em 2013, o antigo ministro francês dos
Negócios Estrangeiros, Roland Dumas, revelou que "dois anos antes da
primavera árabe", disseram-lhe em Londres que uma guerra à Síria estava a
ser planeada. "Vou contar-lhe algo", disse ele numa entrevista ao canal
LPC da televisão francesa, "dois anos antes da violência na Síria fui à
Inglaterra por outras razões. Encontrei altos responsáveis britânicos, os
quais me confessaram estarem a preparar algo na Síria... A Grã-Bretanha
estava a preparar uma invasão de rebeldes para dentro da Síria. Eles
perguntaram-me mesmo, embora eu já não fosse ministro dos Negócios
Estrangeiros, se gostaria de participar... Esta operação tem antecedentes.
Ela foi preparada, concebida antecipadamente e planeada".

Os únicos oponentes eficazes do ISIS são demónios reconhecidos do
ocidente – a Síria, Irão, Hezbollah e agora a Rússia. O obstáculo é a
Turquia, um "aliado" e membro da NATO, a qual tem conspirado com a CIA,
MI6 e os feudais do Golfo para canalizar apoio para os "rebeldes" sírios,
incluindo aqueles que agora se auto-denominam ISIS. Apoiar a Turquia na
sua ambição antiga de dominação regional pelo derrube do governo Assad
acena a uma grande guerra convencional e ao horroroso desmembramento do
estado com maior diversidade étnica do Médio Oriente.

Uma trégua – ainda que difícil de negociar e alcançar – é a única saída
deste labirinto. Do contrário, as atrocidades em Paris e Beirute serão
repetidas. Juntamente com uma trégua, os principais perpetradores e
supervisores da violência no Médio Oriente – os americanos e europeus –
devem eles próprios "desradicalizar-se" e demonstrar boa fé a comunidades
alienadas de muçulmanos por todo o mundo, incluindo aquelas domésticas.
Deveria haver uma cessação imediata de todos os embarques de materiais de
guerra para Israel e reconhecimento do Estado da Palestina. A questão da
Palestina é a ferida aberta mais supurante da região e a justificação
frequentemente declarada para a ascensão do extremismo islâmico. Osama
bin Laden deixou isso claro. A Palestina também representa esperança.
Faça-se justiça aos palestinos e começar-se-á a mudar o mundo em torno
deles.

Mais de 40 anos atrás, o bombardeamento do Cambodja por Nixon-Kissinger
desencadeou uma torrente de sofrimento do qual aquele país nunca se
recuperou. O mesmo é verdadeiro em relação ao crime de Blair-Bush no
Iraque e aos crimes da NATO e da "coligação" na Líbia e na Síria. Com
sentido de oportunidade impecável, o mais recente livro de auto-louvação
de Henry Kissinger foi divulgado com o seu título satírico, "World
Order". Numa revista bajulatória, Kissinger é descrito como um "artífice
chave de uma ordem mundial que permaneceu estável durante um quarto de
século". Digam isso aos povos do Cambodja, Vietname, Laos, Chile,
Timor-Leste e todas as outras vítimas deste "estadista". Só quando "nós"
reconhecermos os criminosos de guerra em nosso meio e deixarmos de negar a
verdade para nós próprios o sangue começará a secar.

In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/pilger/pilger_16nov15.html
20/11/2015

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