terça-feira, 22 de dezembro de 2015



A defesa do capitalismo liberal

por Prabhat Patnaik [*]

A defesa liberal do capitalismo assume duas formas distintas na teoria
económica. Uma declara que o sistema capitalista opera de maneira a
assegurar o pleno emprego de todos os recursos e produz um conjunto de
bens com "eficiência", a qual é definida como um estado onde nada mais de
qualquer bem dentro deste conjunto pode ser produzido sem produzir menos
de algum outro bem. Esta afirmação do pleno emprego é tão palpavelmente
falsa – como mostra toda a história do capitalismo, marcada pela
sistemática coexistência de trabalho desempregado e equipamento ocioso –
que aqueles economistas liberais algo mais honestos recorrem a uma segunda
linha de argumentação.

Esta segunda linha, se bem que admitindo que o capitalismo realmente não
opera da maneira descrita na primeira e que, ao contrário caracteriza-se
sistematicamente pela coexistência de trabalhadores desempregados e
equipamento ocioso, afirma, entretanto, que a sua operação pode ser
rectificada através da intervenção do Estado a fim de fazer desaparecer
esta deficiência. Ela encara o Estado como uma entidade externa, a
posicionar-se do lado de fora do sistema e a intervir na sua operação
"espontânea" a fim de libertá-lo dos seus efeitos danosos.

A tradição keynesiana pertence obviamente a esta segunda linha. Ela
partilha com o marxismo a percepção de que o sistema entregue a si mesmo é
na verdade assolado por crises e é incompatível com a exigência de uma
sociedade humana, mas difere do marxismo na sua crença de que o Estado,
mesmo numa sociedade capitalista, pode intervir para libertar o sistema
dos seus males básicos. Como afirmou Keynes, não havia qualquer
necessidade de propriedade social dos meios de produção como queriam os
socialistas; pelo que pretendia a utilização de um conjunto de "controles
sociais" para assegurar que o nível de investimento fosse suficientemente
elevado a fim de impedir qualquer escassez de procura agregada com pleno
emprego. Isso era tudo o que seria necessário para ultrapassar a
deficiência básica do sistema capitalista.

Não discutirei aqui a crítica marxista desta posição. Ao invés disso
examinarei a lógica desta linha de argumentação nos seus próprios termos e
quão longe ela se adequa à realidade do capitalismo contemporâneo. Uma
questão óbvia que se levanta é: como pode o Estado intervir para alcançar
pleno emprego se os capitalistas se opõem a tal intervenção? A resposta a
esta pergunta, dada por Keynes, era que os capitalistas não se oporiam a
tal intervenção uma vez que dela também se beneficiariam. Ou seja, que a
intervenção do Estado para promover a procura agregada era um "jogo de
soma não zero", no sentido de que toda a gente podia sair-se melhor
através de tal intervenção: os trabalhadores através de emprego mais vasto
e os capitalistas através de maiores lucros que decorreriam da melhor
utilização da capacidade produtiva sob o seu comando. A ainda que os
proponentes desta segunda linha admitam que "pleno emprego" no verdadeiro
sentido da expressão teria a oposição dos capitalistas, devido ao receio
de que um desaparecimento do exército de reserva do trabalho significaria
que os trabalhadores ficariam "fora de controle", eles ainda assim
sustentavam que a intervenção do Estado pode pressionar um nível de
emprego muito mais alto do que se verificaria em economias capitalistas a
operarem "espontaneamente".

Mas então pode-se levantar a questão: se a intervenção do Estado para
manter altos níveis de actividade é um "jogo de soma não zero", isto é,
funciona também em benefício dos capitalistas, então por que não foi
tentada mais cedo? A resposta dada por Keynes a esta pergunta era que
havia uma falta de entendimento teórico entre os capitalistas, razão pela
qual os mesmos encaravam a intervenção do Estado com suspeição ou
hostilidade. Uma vez que desenvolvessem um entendimento correcto do que
produz deficiência da procura, o qual ele pensava que a sua teoria
providenciara, então desapareceriam os obstáculos contra a intervenção do
Estado na "administração da procura", que se levantavam devido à oposição
dos capitalistas.

Naturalmente, mesmo que estivessem armados com um tal entendimento, os
capitalistas, em termos individuais não poderiam ultrapassar a
deficiência da procura. Eles têm de actuar em conformidade com as
"racionalidade privada" (fazer tanto lucro quanto possível) porque é o que
o mercado os força a fazer. Ultrapassar a deficiência da procura exigiria
portanto o esforço de uma entidade supra-individual, o Estado capitalista.
E os capitalistas, embora incapazes de actuar contra a deficiência da
procura em termos individuais, não se oporiam a tal esforço por parte do
Estado uma vez que houvessem adquirido um entendimento correcto.
Capitalistas individuais, em suma, estavam necessariamente presos dentro
do âmago da "racionalidade privada", a única entidade que poderia actuar
de acordo com a "racionalidade social" seria o Estado.

O ESTADO COMO ENTIDADE EXTERNA

Isto entretanto significa necessariamente que o Estado tem de actuar não
de acordo com o que dita o mercado, não em conformidade com o critério
mercado, não a imitar os participantes do mercado, mas sim de modo
totalmente independente do mercado. Ele tem de ser, em suma, um
"observador externo" do mercado. E instituições apropriadas têm de ser
postas em vigor dentro do sistema para tornar isto possível. Durante
vários anos após a guerra o capitalismo teve tais instituições em vigor,
dentre as quais pelo menos três merecem ser mencionadas.

A primeira foi o controle estatal sobre fluxos de capital
transfronteiriços, o qual assegurava que o Estado podia actuar sem medo
de disparar fugas de capital (outflows) , isto é, sem preocupação com
aquilo que financeiros "irritados", os quais de outra forma retirariam os
seus fundos, pensassem das suas acções. O sistema de Bretton Woods
permitia aos países terem controles de capitais e todos eles tiveram tais
controles em vigor.

A segunda era que a contracção de empréstimos pelo Estado para financiar
o défice orçamental não estava necessariamente dependente de "sentimentos
do mercado". O banco central do país, na sua capacidade de subscritor e
administrador da dívida pública, obtinha qualquer porção da dívida pública
que não fosse subscrita pelo mercado. Isto significava que o governo tinha
liberdade de acção para incidir em défices orçamentais sem se preocupar
com o que o "mercado" pensasse acerca da dimensão do seu défice.

A terceira era que a despesa do Estado era comprometida em muitas esferas
prescindindo do critério aplicado para julgar a validade de despesas
aplicado pelo sector privado. Muitas destas esferas em qualquer caso,
tais como educação e saúde, estavam primariamente dentro do domínio
público, de modo que mesmo a questão de comparar os desempenhos dos
fornecedores de serviço público e privado não se levantava. E a ideia de
fornecedores públicos terem de fazer lucros, ou levantar seus próprios
recursos, nunca foi acolhida. A liberdade do Estado para gastar sem ser
constrangido pelo "mercado" dava-lhe uma certa liberdade de movimento para
despender como quisesse.

Todas estas instituições agora desapareceram. Agora a globalização da
finança significa que o Estado é constrangido em relação às políticas que
segue por medo de perder a "confiança" de "investidores internacionais". E
uma vez que tais "investidores", como o capital financeiro,
tradicionalmente prefere "finanças sãs", isto é, orçamentos equilibrados,
ou no máximo incidindo num pequeno défice orçamental (tipicamente 3 por
cento do PIB), a maior parte dos países agora tem legislação de
"responsabilidade orçamental" que limita a dimensão do défice. Além disso,
a "autonomia" do banco central, não apenas de jure mas de facto,
significa que a contracção de empréstimos públicos tem de obedecer a
"sentimentos do mercado". Na verdade, em agrupamentos como a Eurozona, o
facto de que o próprio banco central está completamente fora do alcance do
Estado-nação, reforçou ainda mais esta dependência do Estado em relação
aos "sentimentos do mercado" para os seus empréstimos. E com a
privatização de serviços, ela própria resultante das restrições à despesa
do Estado, fornecedores de serviços públicos agora têm de se defender por
si próprios e estão portanto em competição com os privados.

PRISIONEIRO DO MERCADO

O que tudo isto significa é que o Estado, longe de ser um "observador
externo" do mercado, longe de ser uma corporificação da "racionalidade
social" que poderia intervir para rectificar o funcionamento do mercado o
qual constitui o domínio da "racionalidade privada", como os teóricos
económicos liberais da segunda linha haviam imaginado, tornou-se ele
próprio um prisioneiro do mercado. Ele foi tão absorvido como
participante do mercado ao ponto de a [agência] Moody's ter mesmo
degradado a classificação de crédito do Estado americano. Em suma, nos
termos da perspectiva liberal o Estado foi incorporado dentro do mercado e
já não é mais uma entidade externa que possa impor uma "racionalidade"
diferente sobre o sistema.

Se a primeira linha de teorização económica liberal fosse na verdade
correcta, isto é, não houvesse necessidade da intervenção do Estado e que
o capitalismo operasse de um modo que assegurasse pleno emprego e
eficiência, então esta "incorporação do Estado dentro do mercado", ou uma
"anexação do Estado pelo mercado" (a qual, de uma perspectiva marxista, é
nada mais do que o capital financeiro internacional a pressionar o Estado
para que actue exclusivamente de acordo com as suas exigências), não
importaria. Mas esta afirmação, a qual é realmente avançada como defesa
ideológica da "anexação do Estado pelo mercado" é obviamente absurda. A
prolongada crise capitalista que ainda hoje mantém pelo menos 11 por cento
da força de trabalho desempregada nos EUA (a posição é pior na Eurozona e
no terceiro mundo) testemunha o absurdo da afirmação.

Uma vez que a primeira linha da teoria económica liberal em defesa do
capitalismo está errada e uma vez que a segunda linha da mesma é
infrutífera, porque não se pode recorrer à intervenção do Estado para
rectificar os males do sistema – em que deposita suas esperanças – devido
à "incorporação do Estado dentro do mercado", segue-se que hoje não há
qualquer argumentação liberal contra o socialismo.

O socialismo certamente tem de actualizar a sua própria teoria; e o
movimento socialista ainda tem de ganhar impulso. Mas no ambiente no
interior do qual ele tem de cuidar destas tarefas já não existe qualquer
oposição teórica crível ao socialismo.


20/Dezembro/2015

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/1220_pd/liberal-defence-capitalism . Tradução de
JF.

IN
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_20dez15.html
22/12/2015

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