quarta-feira, 13 de julho de 2016

América Latinada ficção à realidade




Miguel Urbano Rodrigues

Miguel Urbano debruça-se neste texto sobre a presente evolução daAmérica Latina,
desde a contestação ao neoliberalismo no início do milénio com a eleição
marcante de dois populistas com discurso anti neoliberal, Lula e Kirchner, para
a presidência do Brasil (2002) e Argentina (2003), até à presente frase de
recuperação de posições por parte do imperialismo norte-americano.
O início do que parece ser o termo do presente ciclo de governos progressistas
e das preocupações com o futuro de Cuba e das Farc-EP parecem estar a
«favorece[r] a reinstalação da contrarrevolução» na América Latina.
Mas se o presente panorama exige realismo na análise da dificil situação, é
igualmente importante constatar que o agudizar das contradições, acelerado pelo
imparável avanço da crise estrutural do sistema do capital, tornam necessário
que o movimento operário e sindical e os revolucionários clarifiquem as suas
posições e rompam com as influências ideológicas alheias aos seus interesses de
classe.
Miguel Urbano conclui: «Gostaria de ser otimista, mas a situação existente na
América Latrina, impõe-me o dever de ser realista».



América Latina, ou Amérique Latine são expressões geográfico-históricas
relativamente recentes.

Essas palavras foram utilizadas pela primeira vez em 1836 por um francês, Michel
Chevalier, e vulgarizadas por Napoleão III quando invadiu e ocupou o México em
1861. O objetivo do imperador foi excluir os povos da América que falavam
inglês.

Mas a expressão é enganadora. Com uma superfície de 21.070.000 km2, e uma
população de aproximadamente 620 milhões, a América Latina é um conjunto
heterogéneo de países.

De comum entre eles somente falarem idiomas latinos – apenas oficiais em alguns
- e terem sido colonizados e expoliados por potências europeias, e submetidos, a
partir da primeira guerra mundial, à dominação imperial dos Estados Unidos.

DIVERSIDADE

A composição étnica desses países é extremamente diversificada.

No Haiti (27.000 km2 e 9 milhões de habitantes), em Cuba (110.000 km2 e
11.300.000 habitantes), em Porto Rico (8.500 km2 e 4.000.000 de habitantes) e na
República Dominicana (48.000 km2 e 10.000.000 de habitantes) os povos autóctones
foram totalmente exterminados. O Haiti é hoje uns pais de afro-haitianos. No
Brasil (8.500.000 km2 e 202.000.000 de habitantes) os ameríndios são residuais
(menos de 0,5%). A população atual descende de europeus e africanos e, em
percentagem mínima, de asiáticos. Na Argentina (2.792.000 km2 e 43.000.000 de
habitantes) e no Uruguai (176.000 km2 e 3.500.000 habitantes) a quase totalidade
da população é hoje de origem europeia.

A diversidade de critérios adotados nos censos da população retira credibilidade
às estatísticas relativas à composição étnica.

Admite-se que no México (1.964.000 km2) 12 dos 120.000.000 de habitantes são
índios, dos quais uma elevada percentagem se expressa ainda em idiomas
anteriores à conquista espanhola. No Peru (1.285.000 km2 e 31.000.000 de
habitantes) e na Bolívia (1.09. 000 km2 e 11.000.000 de habitantes), o quéchua e
o aimará, línguas do Incário, são oficiais, ao lado do espanhol. No Equador
(243.000 km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria dos índios mantêm como língua
materna o quéchua.

No Paraguai (406.000 km2 e quase 7.000.000 de habitantes), o guarani é falado
pela maioria da população, embora esta descenda hoje sobretudo de emigrantes
europeus. A chacina foi tamanha durante a guerra genocida contra a Triple
Aliança (Brasil, Argentina e o Uruguai), que a poligamia foi autorizada porque
quatro quintos dos homens morreram durante o conflito, incentivado pela
Inglaterra.

No Chile (756.000 km2 e 18.000.000 de habitantes), os mapuches, descendentes dos
antigos araucanos, são aproximadamente 1.500.000.

Na Colômbia (1.140.000 km2 e 48.000.000 de habitantes) e na Venezuela (915.000
km2 e 30.000.000 de habitantes) os ameríndios são pouco numerosos, mas a
miscigenação foi intensa. No primeiro desses países existe uma importante
minoria de afro-colombianos (quase 5 milhões).

Na Guatemala (109.000 km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria da população é
ameríndia, descendente dos antigos maias, Nas Honduras (110.000 km2 e 8.700.000
habitantes; na Nicarágua (148.000 km2 e 5.000.000 de habitantes); em El Salvador
(21.500 km2 e 6.500.000 de habitantes); e no Panamá (78.000 km2 e 3.000.000 de
habitantes, a maioria é mestiça, mas a percentagem de ameríndios pequena. Na
Costa Rica (51.000 km2 e 5.000.000 de habitantes) a maioria tem aspeto europeu,
mas isso resultou do genes ibérico ter prevalecido sobre o dos autóctones,
porque a miscigenação foi intensa.

A quase totalidade da população das Antilhas Francesas (2.835 k2 e 850.000
habitantes) e da Guiana Francesa (83.000k2 e 250.000 habitantes) é de origem
africana.

A MESTIÇAGEM E AS INTERAÇÕES CULTURAIS

Dois franceses, Carmen Bernand e Serge Gruzinski, escreveram a obra mais
importante que conheço sobre os processos de miscigenação na América*.

Esses historiadores analisam exaustivamente os processos de mestiçagem no
Hemisfério, que diferiram muito consoante as regiões.

Chamam nomeadamente a atenção para uma realidade pouco estudada. No México e no
Peru, os conquistadores espanhóis massacraram sistematicamente as elites que
detinham o poder e o saber. Mas os capitães peninsulares pouparam as mulheres
das classes altas de Tenochtitlan e do Incário e em muitos casos casaram com
elas.

Os filhos dessas uniões foram educados como espanhóis e muitos deles
destacaram-se como pioneiros de uma nova cultura que fundia os valores da
asteca, da inca e da europeia.

É conhecido o caso de Garcilaso de la Vega, autor de uma obra clássica da
historiografia espanhola. Sua mãe era uma princesa inca e seu pai um capitão
espanhol.

Martin, o filho de Hernan Cortês e de Dona Marina, uma asteca de origem nobre,
também se distinguiu pela sua intervenção na História.

O México gerou um notável historiador mestiço, Fernando Alva Ixtlixochitl,
descendente dos reis de Tenochtitlan e Texcoco.

A partir de meados do século XVI o nauhatl – a língua mais falada no planalto
central mexicano – passou a ser escrito no alfabeto latino. As elites indígenas
tiveram acesso à cultura do Renascimento no século de ouro espanhol.

No México surgiu uma geração de escritores, músicos e pintores mestiços cujas
obras, pela criatividade e imaginação, expressavam uma nova cultura, síntese e
fusão das autóctones e da introduzida pelos conquistadores. E isso ocorreu
tambem no Peru, berço de outra das grandes civilizações do Novo Mundo, a dos
incas.

Os historiadores dedicaram escassa atenção às consequências sociais, económicas
e politicas da tragédia que do Canadá à Patagónia resultou das doenças vindas da
Europa.

No México, um século após a conquista, a população do país era aproximadamente
de um milhão de habitantes, um décimo da existente quando Cortés entrou em
Tenochtitlan. No Peru, na Bolívia e no Equador, o despovoamento foi similar
porque os índios não tinham defesas contra epidemias como a da varíola e a da
gripe.

Transcorreu quase um quarto de século desde a publicação do importante livro de
Carmen Bernand e Serge Gruzinski. Estudos genéticos recentes encaram a
problemática das mescigenações num período curto e sob uma perspetiva mais
cultural do que étnica.

LUZ E SOMBRAS

No início do século XIX as lutas pela independência foram sobretudo lideradas
por crioulos de grandes famílias. Miranda, Bolivar, San Martin, Sucre,
Santander, O’Higgins, José Artigas descendiam de europeus.

Mas no México as insurreições armadas foram dirigidas por dois sacerdotes,
Miguel Hidalgo e José Maria Morelos, este um mestiço.

O sonho de Bolivar – uma América Latina unida, democrática, progressista e
verdadeiramente independente – foi rapidamente desmentido pelo rumo da História.
As oligarquias que assumiram o poder governaram despoticamente em benefício da
classe dominante, descendente de europeus. No Brasil, o príncipe D. Pedro, filho
de D João VI, proclamou-se imperador e a monarquia durou até 1889.

A ditadura foi, com poucas exceções, a forma de governo mais comum nas
repúblicas latino-americanas.

O recurso permanente a empréstimos, resultantes do desgoverno e da estagnação
económica, foi determinante para o endividamento galopante desses países. A
Inglaterra foi a potência dominante na Região até final da I Guerra Mundial. Na
Argentina e no Chile a sua influência económica e política foi hegemónica. A
partir de 1920, o imperialismo norte-americano dominou o Continente e
multiplicou as intervenções militares em países que não se submetiam às suas
exigências (México, Nicarágua, Haiti, República Dominicana, Panamá, Granada,
entre outros).

DA REVOLUÇÃO CUBANA À CRISE DO PROGRESSISMO

A vitória da Revolução Cubana em 1958 gerou uma grande esperança na América
Latina. A década de 60 ficou assinalada pela convicção de que era possível tomar
o poder através da luta armada e implantar o socialismo em países de capitalismo
dependente, semi colonizados pelos EUA. Na Venezuela, no Peru, na Argentina, na
Guatemala, na Nicarágua, em El Salvador organizações revolucionárias
pretensamente marxistas, inspiradas pela experiência de Cuba, recorreram à
guerrilha rural, como estratégia de combate ao imperialismo. A trágica morte do
Che na Bolívia sepultou duramente essa ilusão romântica. As guerrilhas foram
derrotadas militarmente na maioria desses países. Em El Salvador um compromisso
patrocinado pelos EUA pós fim ao conflito armado. Na Nicarágua a Frente
Sandinista de Libertação Nacional chegou ao poder em 1979, derrubando a ditadura
de Somoza, mas perdeu-o em 1990 pela via eleitoral.

A grande e inesperada exceção teve a Colômbia por cenário. A sobrevivência há
mais de meio seculo das Forças Armadas Revolucionarias da Colombia-Exército do
Povo demonstrou que em condições históricas, politicas e económicas excecionais
era possível desencadear e manter a luta armada contra o Exército mais numeroso
e bem armado da América Latina. As FARC-EP são aliás uma guerrilha-partido que
se assume como marxista-leninista.

Com a derrota norte-americana no Vietnam e da França na Argélia acentuou-se o
desprestígio do imperialismo em escala mundial. A solidariedade da URSS aos
movimentos de Libertação na África e na Ásia afetou também duramente a
estratégia de dominação norte-americana.

A eleição de Salvador Allende no Chile, o advento no Peru e na Bolívia dos
governos progressistas dos generais Velasco Alvarado e Juan José Torres e a
resistência vitoriosa da Revolução Cubana renovaram a esperança nos países a sul
do Rio Bravo.

Mas o imperialismo norte-americano, que alcançara uma grande vitória no Brasil
com o golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, retomou a
iniciativa na América Latina. Washington contribuiu decisivamente para a
preparação e o êxito da contrarrevolução chilena; Kissinger confirmou-o nas suas
memórias.

No resto do Hemisfério, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas permitiu a
consolidação de uma série de ditaduras, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no
Paraguai, na Bolívia, nas Honduras, no Haiti, na Guatemala, na Nicarágua.

Os EUA apoiaram esses regimes que se submeteram docilmente às exigências do
Banco Mundial e do FMI, adoptando políticas neoliberais ortodoxas, inspiradas no
modelo chileno imposto por Pinochet.

O resultado foi desastroso. Para as economias latino-americanas os anos 80 foram
«a década perdida».

Não há em qualquer país da Região com condições subjetivas para um choque
frontal dos povos com o imperialismo estadounidense.

Mas o aumento torrencial da contestação social ao neoliberalismo do México à
Argentina alarmou Washington. Gradualmente retirou o seu apoio às ditaduras,
consciente de que esses regimes não favoreciam já os seus interesses. Mudou de
tática.

No Brasil e no Chile foram eleitos presidentes que condenaram os regimes
militares. Na Argentina, o povo insurgiu-se contra a política de Menem, o país
entrou em bancarrota e, após prolongada crise, Nestor Kirchner sobiu à
presidência e iniciou uma política populista com um discurso anti neoliberal.

Mas foi na Venezuela que, inesperadamente, um militar, o coronel Hugo Chávez,
venceu com ampla maioria as eleições em 1999. Derrotou um golpe de estado em
2002 (apoiado e financiado pelos EUA) e um lock-out contrarrevolucionario,
venceu sucessivas eleições e morreu como presidente em 2013.

Inspirado em Bolivar, desenvolveu uma política que gradualmente o confrontou com
os EUA, sobretudo a partir do momento em que declarou a opção socialista da
Revolução Bolivariana.

Mas apesar da nacionalização real do petróleo – fonte principal do PIB – e da
reforma agrária, a Venezuela continuou a ser uns pais capitalista com o sector
privado a controlar áreas chaves da economia e dos serviços.

A ideologia do regime, o chamado Socialismo do século XXI, foi mais um slogan do
que uma realidade, até porque o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) é
uma organização heterogénea, distanciada do marxismo.

Nicolas Maduro, o atual presidente, carece do carisma de Chávez. A oposição
venceu as eleições legislativas, conta com ampla maioria no parlamento, e a
situação económica degrada-se a cada semana. O futuro da Revolução Bolivariana é
muito preocupante.

Dificilmente o regime progressista da Bolívia – que se caracteriza por
contradições complexas – poderia sobreviver a um regresso ao poder da direita em
Caracas.

Os Estados Unidos encontram-se no momento na ofensiva em toda a América Latina.
James Petras tem chamado insistentemente a atenção para essa realidade,
criticando o otimismo irresponsável de muitos intelectuais progressistas.

O Brasil atravessa uma crise muito profunda de desfecho imprevisível. Na
Argentina, Macri, o sucessor de Cristina Kirchner, executa uma política de
direita de submissão total aos Estados Unidos.

Washington renunciou aos golpes de estado tradicionais, promovidos por
militares. A tática agora é outra. Obama – o presidente dos EUA mais perigoso
para a humanidade das últimas décadas – incentiva e financia golpes
institucionais através dos parlamentos para afastar presidentes incómodos.

Isso aconteceu nas Honduras e no Paraguai.

As próprias FARC-EP que desafiam há 60 anos numa luta épica, a oligarquia
colombiana, tutelada pelo imperialismo americano, enfrentam hoje problemas que
suscitam legitimas interrogações quanto ao desfecho dos Diálogos de Paz com o
governo de Juan Manuel Santos. O Acordo de Cessar fogo foi assinado por ambas as
partes. Mas será viável na prática a chamada «reconciliação» nos termos em que
foi discutida, com o aval do secretariado do Estado-Maior Central da organização
revolucionária? Mas seja qual for o desfecho do processo de paz, o combate épico
das FARC-EP será recordado como exemplo maravilhoso da eterna luta do homem pela
liberdade.

Cuba é hoje o último baluarte revolucionário que detém o poder na América
Latina. Mas o restabelecimento de relações diplomáticas com os EUA ao nível de
embaixadores justifica apreensões. O bloqueio persiste, assim como a lei do
ajuste cubano, e a entrada de capitais americanos no país e de centenas de
milhares de turistas é encarada com compreensível temor por muitos dirigentes do
Partido, tal como as medidas mercantis aprovadas pelo último congresso do PC de
Cuba.

Não exagera o Partido Comunista do México num documento do seu Comité Central
datado de Fevereiro p.p. ao afirmar
(http://www.odiario.info/america-crise-do-capitalismo-crise-do/) que na América
Latina «temos um panorama no qual a crise do progressismo favorece a
reinstalação da contrarrevolução e, além disso, em que o progressismo, auxiliado
por partidos comunistas de prestígio, está à condenar a crítica revolucionária».

Os Acordos de Havana, assinados pelo comandante chefe das FARC e pelo presidente
da Colômbia são preocupantes. Significativamente foram festejados pela direita
na Europa e na América Latina.

Gostaria de ser otimista, mas a situação existente na América Latrina, impõe-me
o dever de ser realista.

Vila Nova de Gaia, Julho de 2016

* Carmen Barnand e Serge Guzinski, Histoire du Nouveau Monde-Métissages,
Ed.Fayard,Paris, 1993

In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/america-latinada-ficcao-a-realidade/
11/7/2016

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