segunda-feira, 4 de julho de 2016

Brexit: Uma revolta contra a hegemonia da finança globalizada





por Prabhat Patnaik [*]

Quase todos os comentaristas que dissertaram acerca do voto do eleitorado
britânico a favor do abandono da União Europeia, quer da direita quer da
esquerda, deixaram de captar o ponto essencial do mesmo: que se trata de
uma revolta maciça contra a hegemonia da finança globalizada. Na verdade,
o facto de não terem percebido este ponto é em si mesmo indicativo da
omnipresença desta hegemonia entre os literati, dos quais o eleitorado
britânico, de modo interessante, parece ter-se libertado substancialmente.

Sem dúvida, alguns, incluindo o presidente Barack Obama, foram
suficientemente antecipativos para ver o Brexit como uma rejeição da
globalização. Mas eles atribuíram-na a um medo ilegítimo da globalização,
o qual precisa ser apaziguado, ao invés de uma cólera legítima contra ele,
resultante daquilo que a hegemonia da finança globalizada fez à economia
britânica. Eles em suma defendiam a globalização, a qual sustentam ser
benéfica, enquanto ignoravam sua principal característica, nomeadamente a
globalização do capital financeiro, cujas consequências perniciosas
preferiram ignorar.

ATITUDE DA ESQUERDA EUROPEIA

Esta tendência de destacar os benefícios da globalização ("traz maior
aproximação à espécie humana"), enquanto se minimizam as implicações da
hegemonia do capital financeiro sobre este processo, caracteriza,
infelizmente, a atitude de grande parte da própria esquerda europeia.
Grande parte desta esquerda tem sido uma forte apoiante da União Europeia,
como corporificação da transcendência de conflitos "nacionais" que
infestaram a Europa na primeira metade do século XX, muito embora a
própria UE tenha sido dominada pelo capital financeiro alemão. A referida
esquerda procurou ultrapassar esta contradição óbvia com a esperança
irreal, a qual não é senão uma mera suposição, de que dentro da UE a
hegemonia do capital financeiro alemão pode ser neutralizada (negated)
através de pressão democrática.

Esta suposição foi aceite pelo Syriza na Grécia e sua invalidade foi
revelada no caso da própria Grécia, deixando o Syriza sem outra opção
dentro da UE senão a de aceitar ainda outro lancinante pacote de
"austeridade" imposto pelo ministro alemão das Finanças Wolfgang Schauble,
a actuar como representante do capital financeiro. Este processo também
incapacitou a esquerda como um todo de se tornar uma força coerente,
deixando assim o caminho aberto para partidos de extrema-direita,
racistas, fascistas ou semi-fascistas aproveitarem o descontentamento do
povo com a crise engendrada pela globalização sob a hegemonia do capital
financeiro.

Isto também ficou claramente evidente no caso da Grã-Bretanha. Jeremy
Corbyn, o líder do Labour que é um acérrimo oponente da "austeridade" que
o capital financeiro impôs à UE, e portanto à Grã-Bretanha, ao invés de
liderar a luta contra uma UE dominada pelo capital financeiro, pediu ao
povo que votasse pela "permanência" na UE, reflectindo portanto o
primeiro-ministro Tory David Cameron e seguindo alinha da "City of
London" (o sítio do capital financeiro britânico). Embora um segmento da
esquerda (a chamada "Lexit") fizesse campanha por uma saída britânica da
UE, ela naturalmente foi enfraquecida pela fragmentação da esquerda. A
iniciativa de exprimir a cólera popular nesta situação foi capturada pela
ultra-direita do United Kingdom Independent Party (UKIP) e uma secção dos
Tories liderada pelo antigo presidente da municipalidade de Londres, Boris
Johnson.

O facto de o voto "exit" ter sido aparentemente influenciado pela
retórica contra a imigração (as regras da UE impõem que todos os países
membros aceitem imigrantes dos outros países membros) e portanto tingida
por uma visão racista do mundo, foi mencionado pelos seus oponentes como
argumento para rejeitar a opção da "saída". Não está claro em que medida
esta acusação é verdadeira. Mas, qualquer que tenha sido o matiz racista
atado ao campo do "exit" ele verificou-se precisamente porque a esquerda e
o centro-esquerda (incluindo acima de tudo o Partido Trabalhista)
preferiram ignorar a cólera do povo contra o alto desemprego e a crise
imposta pelo capital financeiro e pediram-lhe que votasse pela
"permanência".

A cólera popular, ao invés de assumir implicações racistas, podia ter
sido dirigida conscientemente contra a hegemonia do capital financeiro e a
sua dominação sobre a UE – e um cenário de acção alternativa podia ter
sido apresentado se a esquerda se houvesse empenhado seriamente para
pressionar por um "desligamento" de uma globalização dominada pela
finança. Mas ao invés disso foi permitido que a votação fosse explorada
pelas forças da ultra-direita (não irrevogavelmente, esperemos) devido à
pusilanimidade da esquerda ao não pressionar pelo "desligamento". Os
motivos da esquerda para não actuar assim, baseados sem dúvida num desejo
de transcender o passado "nacionalista" destrutivo da Europa, podem ser
louváveis. Mas a sua suposição para não actuar desse modo, nomeadamente
de que alguém pode controlar o capital financeiro mesmo sem o
"desligamento" do fenómeno da globalização financeira, foi claramente
errado. No caso, o voto Brexit representou uma revolta não
auto-consciente contra a hegemonia da finança, com aqueles que sozinhos
podiam ter conduzido a uma revolta auto-consciente, a optarem por não
desempenhar tal papel.

A sua culpabilidade é ainda maior do que sugeri. Tenho até agora
utilizado a palavra "povo", mas claramente o grosso do voto anti-UE veio
da classe trabalhadora inglesa. Segundo um relatório, até 63 por cento dos
eleitores do Labour votaram contra a permanência na UE. Uma vez que o
grosso dos eleitores do Labour, mesmo nos dias de hoje apesar dos anos de
blairismo, pertencem à classe trabalhadora, claramente a classe
trabalhadora inglesa rejeitou esmagadoramente a UE, na qual, tristemente,
o grosso da esquerda e centro-esquerda aconselhava a votar. Dificilmente
se pode imaginar um caso mais rematado de desconexão (disjunction) entre
uma classe e aqueles que afirmam representá-la. Enquanto a classe
revoltava-se contra a hegemonia do capital financeiro, aqueles que
supostamente a lideravam seguiam a linha da finança.

Quando digo revolta contra o capital financeiro, não me refiro apenas ao
capital alemão. Quero dizer acima de tudo contra o próprio capital
financeiro britânico. (Para dizer de modo diferente, é o capital
financeiro globalizado, não importa quais as suas origens nacionais, o
qual opunha-se ao Brexit). A City sempre foi resolutamente a favor da
Europa, a fim de frustrar a ambição de Frankfurt de substituir Londres
como centro financeiro do continente, o que seria o caso se a Grã-Bretanha
se afastasse. A City foi instrumental na promoção da entrada da
Grã-Bretnha na Europa. Ela também foi instrumental em livrar-se de
Margaret Thatcher como primeiro-ministro quando ela começou a exprimir
sentimentos anti-europeus. Mesmo neste referendo, a City fez campanha
vigorosa contra o Brexit. E não deveria ser surpresa que além da Escócia e
Irlanda do Norte, onde sentimentos pró-europeus podem ter sido
fortalecidos por um nacionalismo anti-inglês (o que mais uma vez
testemunha uma leitura totalmente errada da situação por parte da
esquerda que de outra forma poderia ter acalmado suas preocupações), a
única outra região do país que apoiou a "permanência" fosse a cidade de
Londres (apesar de Boris Johnson). Sem dúvida o facto de Londres ter uma
população imigrante apreciável que estaria inclinada a opor-se ao Brexit
foi um factor por trás da sua votação no "remain". Mas a influência do
capital financeiro britânico também desempenhou um papel significativo.

IMPLICAÇÕES CRUCIAIS

Os próximos tempos vão ser extremamente difíceis para o povo britânico,
por várias razões. A primeira é que qualquer "desligamento" da hegemonia
do capital financeiro globalizado acarreta necessariamente sérios
problemas de transição. Estes incluem fuga de capitais, um colapso da
divisa, um agravamento da balança de pagamentos e uma aceleração da
inflação, todos os quais prejudicam o próprio povo que optou pelo
"desligamento". Isto no momento devido afectará a Grã-Bretanha e com
particular severidade porque é uma economia altamente aberta.

Em segundo lugar, a Grã-Bretanha já tinha problemas sérios antes do
referendo do Brexit devido a um grande défice em conta corrente (que monta
até a 7 por cento do PIB). Sustentar um tal défice é extremamente difícil,
mesmo nos melhores tempos. Mas fazer isso num período de antagonismo em
relação à finança globalizada é duplamente difícil.

Em terceiro lugar, o capital financeiro está em vias em tomar todos os
passos concebíveis para tornar difícil a vida do povo britânico devido ao
seu voto pelo Brexit. Tendo perdido a batalha, o que nunca esperara, ele
tentará agora vencer a guerra pela manipulação da situação de um modo que
o povo desobediente será forçado a prostrar-se diante dele.

E em quarto lugar, no preciso momento em que o povo provavelmente
enfrentará imensas dificuldades, ele está destituído de lideranças das
forças de esquerda. Os Nigel Farages (chefe do UKIP) e os Boris Johnsons
do mundo são particularmente incapazes de liderá-los em qualquer luta
contra a finança globalizada (de facto, como todos os fascistas, o UKIP
estaria à espera de ser cortejado pelo capital financeiro e o mesmo seria
verdadeiro em relação a Johnson). A esquerda sozinha tinha a visão de
assim fazer mas preferiu abandoná-lo. O povo está, em suma, empenhado numa
luta de classe contra a hegemonia da finança em que as probabilidades de
êxito acumulam-se contra si e foi abandonado pela sua liderança
tradicional.

A menos que o Labour Party (actualmente sob uma liderança supostamente de
esquerda) rectifique o seu erro e aprenda a ouvir e respeitar a voz da sua
própria base de apoio, o povo descobrirá ser difícil sustentar uma luta
que lançou contra a finança. O Labour Party deve cumprir o resultado do
referendo (o que foi feito mesmo por David Cameron), pedir novas eleições
gerais imediatas e abordar o eleitorado com um programa novo crível. Tal
programa deve incluir o fim da "austeridade", a conexão a outras formações
de esquerda como o Podemos que estão à beira do poder [NT] e a tomada
disposições imediatas para financiar o défice em conta corrente de maneira
a que isso não implique "austeridade" e simultaneamente passos para
reduzir este défice através de, se necessário, de medidas directas.

Mas aconteça o que acontecer na Grã-Bretanha no futuro próximo, o voto
britânico para abandonar a UE tem duas implicações cruciais para a
economia capitalista mundial como um todo. Primeiro, ele sublinha e agrava
a crise na qual o capitalismo mundial está actualmente submerso: a revolta
contra essa crise assinalada pela votação britânica só solapará ainda mais
o "estado de confiança" dos capitalistas e, mais uma vez, desmentirá todas
as afirmações superficiais de uma recuperação iminente. Segundo, este
mesmo facto por sua vez encorajará ainda mais outros países a seguirem o
exemplo dos britânicos e isto acontecerá mesmo que as dificuldades
transicionais da economia britânica se demonstrarem formidáveis.
Permanecer fincado numa crise, em suma, doravante será inaceitável para o
povo trabalhador. Agora que a primeira pedra foi lançada contra o ninho de
vespas, voltar ao status quo ante será impossível. Estamos portanto a
testemunhar um descarrilamento do fenómeno da globalização que
caracterizou o mundo até agora.


03/Julho/2016

[NT] O Podemos espanhol é tão de "esquerda" quanto o Syriza grego pois
ambos os partidos defendem a submissão dos seus países à UE e à NATO,
assim como o apoio a agressões imperialistas a outros povos. As últimas
eleições espanholas desmentem que o Podemos esteja "à beira do poder".

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/... . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/brexit_03jul16.html
1/7/2016

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