terça-feira, 15 de novembro de 2016

      O derrube do muro de Berlim



       por Daniel Vaz de Carvalho 

             
             A queda da RDA atingiu-me duramente, mas, tal como muitos outros
            companheiros de luta, não perdi a convicção de que o socialismo é a
            única alternativa para uma sociedade mais humana e mais justa. Desde
            a existência do capitalismo que os comunistas pertencem aos
             perseguidos neste mundo, mas não pertencem aos sem futuro.
             Hoje é considerado moderno etiquetar comunistas íntegros de
             estalinistas.
             Erich Honecker,  Memórias da Prisão  [1] 

       1 – Uma idiótica euforia 
       Em 30 de setembro de 1938, o primeiro-ministro francês Daladier regressa
       a Paris, vindo de Munique, após ter celebrado o acordo que entregava aos
       nazis uma parte da Checoslováquia. Ao sair do avião uma multidão espera-o
      com cartazes que festejavam o acordo: "a paz tinha sido salva". Daladier
      olha-os espantado, esperava ser vaiado, e murmura: "Idiotas…se eles
      soubessem."
       Esta cena faz evocar a euforia, com raias de histerismo, que percorreu as
       hostes anti-marxistas desde a extrema-direita a uma dita extrema-esquerda
      (do anarquismo ao trotsquismo) juntando-os num triunfalismo inconsequente.
      Na realidade, tal como em Munique se preparou a entrega aos nazis do
       domínio sobre a Europa, o derrube do Muro de Berlim preparou a entrega
       aos EUA, como líder do grande capital transnacional, do domínio mundial.
       Se a direita exultava com a derrota do seu arqui-inimigo, a
      social-democracia acompanhava-a fantasiando o enterro definitivo do
      "comunismo" propagandeando "um socialismo de rosto humano". Na sua
      cegueira acreditavam que afastado o "espectro do comunismo" (Marx) que os
       afligia: as massas populares pertenciam-lhe política e sindicalmente. Era
      o "fim da História" e a "paz social" através da colaboração de classes.
       Sem o mínimo de contraditório as massas foram submersas pela propaganda
      que prometia a "economia social de mercado" ou a "economia de mercado com
      justiça social".
       Contudo, o derrube do Muro de Berlim e o fim da URSS vieram
      exaustivamente confirmar as teses marxistas-leninistas: o capitalismo
      humanista não existe. Os avanços sociais e civilizacionais conquistados
      pelos povos foram somente obtidos à custa de duras lutas e sacrifícios,
       contra capitalismo.
       O que se passou a seguir demonstra, por um lado a incapacidade de a
       social-democracia, presa nos seus preconceitos e calúnias, e incapaz de
       avaliar as consequências das suas orientações para os povos, os Estados,
      para a própria democracia. Por outro lado, mostra como a sua degradação
      ideológica levou a cedências quase inimagináveis e compromissos com a
      exploração mais desbragada, a corrupção, a agressão imperialista, até com
      ditaduras fascizantes.
       Nos países ex-socialistas toda uma série de oportunistas, de
       especialistas neoliberais, ONGs ao serviço do imperialismo, de indivíduos
      educados nos EUA, alguns obtendo dupla nacionalidade, apossarem-se desses
      países, tal como o crime organizado. Foi então imposta a democracia
      oligárquica que se traduziu numa inaudita regressão civilizacional.
       A devastação em termos de direitos humanos foi silenciada pela incessante
      propaganda de calúnias contra a realidade socialista. Milhões de
      desempregados foram deixados sem apoio, jovens desesperados abandonaram os
      seus países para irem trabalhar no estrangeiro em condições muitas vezes
      humilhantes e de exploração brutal, quando não à mercê das máfias. Os
       indicadores de saúde e esperança de vida da URSS caíram quase de imediato
      para valores do chamado terceiro mundo.
       O neoliberalismo devastou instituições culturais e artísticas, escolas e
      universidades, submetidas aos critérios da mercantilização neoliberal.
      Vários dos países ex-socialistas, são hoje dominados por demagogos da
      extrema-direita e neofascistas que, com a cumplicidade e apoio da UE e dos
      EUA, se aproveitam da miséria criada pela instauração do capitalismo.
       Por detrás do derrube do Muro de Berlim, está patente a atitude de
      traição de Gorbatchov, citando Lenine para melhor destruir o seu partido,
      assumindo-se depois como social-democrata e confessando serem aquelas
      citações uma estratégia. No seu discurso do 70º aniversário da Revolução
      de Outubro, Gorbatchov caracterizou a industrialização socialista, a
       colectivização da agricultura e a revolução cultural como acontecimentos
      de dimensão histórica para o reforço da potência soviética. Mais tarde
      denegriu e renegou o que dizia defender. [1]
       Gorbatchov, desprezado no seu país, publicou recentemente, um livro "New
      Russia", fazendo coro com o "ocidente" (leia-se NATO) contra Putin. Aí
      cita Lenine: "não se pode ultrapassar o povo". Foi o que ele e outros como
      ele fizeram.
       Quando a URSS foi dissolvida e o socialismo liquidado, de 70% a mais de
      80% da população (conforme as Repúblicas) desejavam a manutenção da URSS;
      85% o socialismo. Também o povo da RDA não foi consultado sobre a anexação
      da sua pátria pela RFA, que Gorbatchov acordou nas costas do povo e dos
      órgãos soberanos da RDA.
       Quando se entra na via da traição não se para... A "perestroika" acabou
      rendida ao neoliberalismo e ao imperialismo. Exemplo, foi a figura
      patética de Chevarnadze (último ministro dos Negócios Estrangeiros da
      URSS) que acabou afundando-se numa guerra civil na Geórgia de que se
      tornara presidente, alimentada pelos seus amigos da NATO.
       Vivemos hoje as consequências do que aconteceu então. A social-democracia
      está morta rendida ao neoliberalismo fascizante e ao imperialismo. O mundo
      enfrenta intermináveis guerras de agressão, crises económicas, tragédias
      sociais e humanitárias. O perigo de uma confrontação global é uma
      realidade eminente.
       O imperialismo impôs um intolerável totalitarismo pretendendo aplicar a
      todos os povos o mesmo modelo económico, social e político ao serviço dos
      interesses oligárquicos, a globalização capitalista, sem qualquer
      consideração pela vontade e interesses dos povos. Um modelo imposto pelo
      poder militar (agressões, invasões), político (conspirações, ingerências)
      e económico (sanções).
       Na fronteira de Berlim foram mortas 74 pessoas, cidadãos aliciados nas
       redes organizadas pelos serviços secretos ocidentais para fugirem, por
       razões políticas ou por delitos comuns. E. Honecker lamentou-o até ao
      fim. Porém quantos trabalhadores, estudantes, etc, foram mortos pelas
      polícias em manifestações na Europa Ocidental? Nos EUA foram mortas 500
      pessoas só em 2015, alegadamente por não acatarem ordens da polícia. (  US
      Police Killed Over 500 People This Year ). Quantos foram e são mortos ao
      tentar passar a fronteira entre os EUA e o México? Isto, sem contar com os
      milhões de vítimas do colonialismo, das guerras de agressão, ditaduras,
      para impor o capitalismo.
       O socialismo não é uma sociedade perfeita, nunca o marxismo o afirmou,
      representa a natural evolução e progresso da sociedade humana. É
      construído por homens imperfeitos em circunstâncias muitas vezes
      dramáticas. De facto, em parte alguma é possível uma democracia perfeita
      enquanto houver imperialismo.
       2 - As "Memórias da Prisão" de Erich Honecker 
       Após o fim da RDA Honecker, foi preso, simbolicamente regressando à mesma
      prisão, Berlim-Moabit, onde em 1935 os nazis o tinham encarcerado.
       A felonia do imperialismo manifestou-se desde logo na criminalização da
      RDA, e de militantes íntegros. Isto apesar de em 1987 Honecker, a convite
      do chanceler Kohl, ter visitado a RFA, tendo sido tocado o hino da RDA e
      rendida homenagem à sua bandeira. De seguida, Kohl fez uma vista não
      oficial à RDA.
       Doente, com cancro, em Moscovo, o traidor Ieltsin revelou mais um traço
       da baixeza do seu carácter ao extradita-lo para a Alemanha. Pretendia-se
       apresenta-lo, debilitado e vergado ao infortúnio, perante o capitalismo
       triunfante.
       Tal não aconteceu, Honecker em 1993 perante o tribunal que o julgava,
       fiel aos ideais pelos quais lutou desde a juventude, assumiu todas as
       responsabilidades pela defesa da RDA como Estado soberano, demonstrou a
       superioridade do socialismo e denunciou o julgamento como mais um
       episódio nos "quase 190 anos de perseguições da burguesia alemã aos
      comunistas, a todos os lutadores pela paz e pelo socialismo"; transformou
      os acusadores em réus.
       Os objetivos da direita e da social-democracia falhavam, optaram por
       silencia-lo e o julgamento terminou com a alegação do seu estado de
      saúde, como se tal não estivesse evidenciado desde o início. Faleceu em
      1994 no Chile (pátria do seu genro) na companhia deste, da mulher e da
      filha.
       Face aos conspiradores e traidores, Honecker fica como um exemplo do
       revanchismo e da perseguição aos comunistas que se seguiu e prossegue nos
      países ex-socialistas. Os textos seguintes são baseados nas "Memórias da
      Prisão", de Erich Honecker. [1]
       Acerca do socialismo 
       A RDA não pode ser apagada da História. As realizações da RDA ficarão na
      memória do povo e influenciarão no futuro. A comparação com a democracia
       burguesa também devia ser abertamente discutida a partir dos exemplos da
       RDA e da RFA. Na RDA não havia desemprego em massa, mas sim pleno
       emprego, não havia sopa dos pobres, mas sim comida para todos, não havia
      falta de vagas na formação profissional ou na educação.
       Na RDA havia 9,5 milhões de postos de trabalho. A desindustrialização
      destruiu metade. Foram vítimas do lucro que encheu abundantemente os
      bolsos do grande capital. Muitas pessoas encontraram-se na pobreza e em
      situação de necessidade em consequência desta barbaridade. Depois da
      anexação pela RFA, desapareceu o que era querido aos trabalhadores da RDA:
      a segurança em matéria social garantida pelo socialismo.
       A RDA era um país com uma indústria e uma agricultura modernas, dispondo
      de uma ampla rede de proteção social. A agricultura da RDA conseguia
      assegurar o abastecimento alimentar interno e exportar alimentos.
       Não há nenhuma razão nem ninguém tem o direito de denegrir as realizações
      dos trabalhadores, por muitos erros e insuficiências que tenham afectado o
      socialismo e que foram objecto de debates. Como os desequilíbrios no
      desenvolvimento económico, os problemas quanto a produtos de consumo, a
      escassez de matérias-primas, a incapacidade da indústria ligeira dar
      resposta às necessidades, os problemas de abastecimento de bens de
      consumo, a política de preços, a qualidade dos produtos.
       Foi um erro não se ter dado rápido seguimento às propostas apresentadas
      no Plenário realizado em 1988, no sentido de uma maior participação das
      pessoas na gestão direta da sociedade, das empresas, dos bairros. Contudo,
      pretender que não havia democracia no socialismo ou até mesmo afirmar que
      a democracia burguesa é superior à democracia socialista não corresponde
      nem à verdade nem às realidades da sociedade capitalista, que estão à
      vista de todos.
       É necessário romper o véu da conversa sobre uma democracia acima das
      classes. Só pode haver uma verdadeira democratização se as pessoas que
      criam riqueza forem as proprietárias dos principais meios de produção e da
      terra. A democracia burguesa, onde funciona, reduz-se a espaços de
      liberdade conquistados ao capital pela luta dos trabalhadores. Quando o
      poder está nas mãos do capital, o povo é tutelado.
       Foi subestimada a influência de inúmeras estações de televisão e rádio
      sobre o comportamento das pessoas, bem como os perigos resultantes da ação
      da RFA no seio da NATO.
       A RDA sempre defendeu uma política de paz e coexistência pacífica, deu um
      grande contributo para afastar o perigo guerra na Europa. Com a sua
      liquidação, Honecker perguntava então de forma premonitória: quanto tempo
      durará esta paz? Será que a França se deixará esmagar pelo abraço da
      Alemanha?
       A anexação da RDA pela RFA 
       Apesar dos bem pagos hinos entoados ao capitalismo, ninguém pode negar
       seriamente a situação extremamente difícil em que se encontram milhões de
      operários e empregados, cientistas e artistas, sejam eles defensores ou
      adversários da "economia de mercado".
       A Treuhand, organismo criado "para a boa administração das empresas"
      estatais não foi senão uma instituição para desbaratar o património do
      povo, entregando as empresas do Estado a preços de saldo aos trusts
       capitalistas ou destrui-las para eliminar concorrentes. A liquidação das
      empresas públicas da RDA foi um polpudo negócio para os capitalistas
       O desemprego é uma tragédia para todos. Ninguém o conhecia na RDA.
      Imagine-se qual teria sido o resultado se então o chanceler Kohl tivesse
      declarado abertamente aos eleitores que haveria quatro a cinco milhões de
      desempregados, as rendas de casa aumentariam de três a dez vezes e que
      grande parte das prestações sociais seria eliminada.
       Não estava em causa derrotar um "poder pessoal", derrotar "a dominação do
      Politburo", mas sim expropriar as empresas pertencentes ao povo, liquidar
      as cooperativas agrícolas, restituir as terras aos grandes proprietários,
      eliminar a propriedade socialista. Tratou-se da liquidação da RDA, das
      suas instituições científicas, dos equipamentos de saúde, de tudo o que
      estava relacionado com o Estado da RDA.
       O poder do capital foi pura e simplesmente restaurado. Era isso que
      estava em causa. Ninguém pode negar que o guião seguido em todos os países
      socialistas consumado na contra-revolução foi dirigido a nível
      internacional. O mesmo guião levou à destruição dos partidos marxistas
      nestes países.
       As traições 
       Como qualificar de outro modo aqueles que trabalharam para a restauração
      do sistema político e económico do capitalismo sob a capa da democracia
      burguesa? Dê-se a volta que se der, tratou-se da reconquista do poder da
      burguesia perdido 40 anos antes.
       Sob a bandeira da luta contra o "estalinismo" conduziu-se a luta contra o
      socialismo. Todos os "reformadores" renunciaram ao socialismo, dando
      ouvidos ao "grande reformador" que, em seis anos, conseguiu desarmar o seu
      partido, o PCUS, de que era secretário-geral, e conduzir a URSS à sua
      aniquilação.
       A RDA foi sacrificada no altar da "casa comum europeia", pela qual
       Gorbatchov lutava com tanto afinco. Isto só foi possível porque houve
      elementos dirigentes da RDA que objectivamente contribuíram para a
       eliminação do socialismo. Entre estes havia traidores conscientes, que se
      vangloriaram de terem aberto o caminho à anexação da RDA, utilizando os
      seus contactos com a RFA em concertação com o círculo de Gorbatchov. A
       "renovação" da RDA traduziu-se apenas na sua anexação pela RFA
      capitalista.
       Uma desmesurada campanha de calúnias contra as principais personalidades
       dirigentes, uma criminalização vinda das próprias fileiras conduziu a uma
      ampla dessolidarização, facilitou às forças reacionárias da RFA a condução
      da sua ampla campanha de vingança contra os comunistas e outros elementos
      de esquerda.
       Porque se organizou uma caça às bruxas contra todos os colaboradores do
      partido e do aparelho do Estado, contra a segurança de Estado, contra os
      soldados e oficiais do Exército Nacional Popular, contra as tropas
      fronteiriças, contra professores, médicos, cientistas, jornalistas e
      artistas? Tudo isto agravou ainda mais a miséria na RDA. Centenas de
      milhares de famílias com as suas crianças foram lançadas numa situação de
      desespero.
       Aqueles que desfiguraram a história do socialismo, acentuando erros e
       deficiências, reclamando-se eles próprios de comunistas sem defeitos,
      tendo embora virado costas ao partido, contribuíram para a desagregação,
      dificultaram o trabalho ideológico junto da juventude. Foi assim que
      muitas pessoas perderam as suas convicções nos ideais socialistas.
       Porém, continua sem se saber o que seria o tão invocado "socialismo
      democrático". O afastamento decisivo do comunismo significa não só a
      negação dos ideais comunistas, mas a negação das necessárias
      transformações das relações de propriedade.
       O futuro pertence ao socialismo 
       Com a destruição do socialismo na Europa, o mundo tornou-se completamente
      caótico e desorientado. Os EUA, autoproclamados polícias do mundo, atuam a
      seu bel-prazer e impõem a "nova ordem mundial" a golpes de bombas e
      mísseis.
       A tão glorificada nova liberdade priva o indivíduo da mínima segurança. A
      "livre" economia de mercado penetra em todos os domínios. As conquistas
      sociais foram condenadas a desaparecer.
       Numa nova sociedade tem de haver um lugar para cada um dos seus membros,
       não obstante todas as evoluções tecnológicas e outros condicionalismos.
      Antes de mais isso significa um posto de trabalho para cada um. O
      capitalismo é incapaz de o garantir, isso é hoje mais evidente do que
      nunca. A corrida aos lucros fixa os limites à sociedade capitalista. Quer
      se queira quer não, no mundo capitalista atuam as leis que Marx e Engels
      revelaram e provaram cientificamente em toda a sua obra.
       Com a fé infantil de que "o mercado tudo soluciona" não se resolve nenhum
      dos problemas da Humanidade. Por isso inevitavelmente novas forças
      sociais, alcançarão e organizarão novas relações sociais.
       "Ou a humanidade é conduzida ao abismo pelo capitalismo ou vencê-lo-á. A
      última hipótese é a mais plausível, porque os povos querem viver. Apesar
      de todas as dificuldades e perigos, apesar da situação sombria, estou e
      estarei confiante. O futuro pertence ao socialismo".

      09/Novembro/2016
       [1] Erich Honecker (1912-1993) operário e filho de operários, membro da
      Juventude Comunista alemã em 1926. Estudou em Moscovo no Colégio
      Internacional Lenine, em 1930 e 1931, regressando à Alemanha em 1931. Foi
      preso pelos nazis em 1935 sedo libertado no fim da guerra em 1945. Eleito
      secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) em
      1971; eleito Presidente do Conselho de Estado em 1979. Textos completos
      em:
       Notas da prisão (I)
       Notas da prisão (II)
       Notas da prisão (III)
       Notas da prisão (IV)
        Honecker acusa 
 In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/v_carvalho/derrube_do_muro_de_berlim.html
9/11/2016

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