sábado, 12 de novembro de 2016

Teoria da dependência e o sistema-mundo

 

 Cláudio Katz (*)    

Neste importante ensaio Cláudio Katz faz a crítica das concepções de Immanuel
Wallerstein, sublinhando nomeadamente aspectos em que convergem e outros em que
divergem e se distanciam do marxismo. Reflexão que é tanto mais relevante quanto
se tenha em conta que esta linha de pensamento tem sido objecto de intenso
debate na América Latina no decorrer da última década. Período em que o
“socialismo do séc. XXI” e a sua subestimação da questão do poder («mudar o
mundo sem tomar o poder») não deixará de ter contribuído para muitas das
dificuldades e derrotas com que os processos progressistas naquele continente
hoje se deparam.


A teoria do sistema mundial influiu em numerosas áreas das ciências sociais
contemporâneas. Foi elaborada por Immanuel Wallerstein a partir de um grande
estudo da história contemporânea e uma crítica detalhada do capitalismo global.
A sua visão apresenta numerosas sintonias com a teoria marxista da dependência.
Recolheu ideias dessa concepção e incidiu nos debates do dependentismo. Vários
autores exploraram as relações entre as duas visões: Em que terrenos convergem,
divergem e se complementam?
Ciclos e hegemonias
Wallerstein calcula que o capitalismo surgiu na Europa há 500 anos com uma
fisionomia directa de economia-mundo. Emergiu do esgotamento de um regime prévio
de império-mundo que tinha sucedido aos minissistemas de subsistência.
O estudioso norte-americano considera que as formações mais primitivas
funcionavam em torno da divisão extensiva do trabalho, em marcos culturais muito
diversos. Acha que o esquema posterior se desenvolveu em extensas geografias com
regimes políticos centralizados e que o terceiro mundo rege até à actualidade. O
capitalismo mundializado assenta em estruturas políticas múltiplas, divisão
geográfica do trabalho e grande variedade de estados nacionais (Wallerstein,
1979: 489-492).
Este sistema apareceu com a crise do feudalismo (1300-1450) e expandiu-se à
escala mundial. Distanciou-se rapidamente de outras regiões como a China, que
tinham alcançado níveis de população, superfície e tecnologia muito semelhantes.
O motor desse impulso foi a rivalidade económico-militar imperante entre as
monarquias absolutas. O choque entre esses estados incentivou a associação das
novas burguesias com as velhas aristocracias, escorou a acumulação e pavimentou
o aparecimento do comércio global (Wallerstein, 1979: 182-230, 426-502).
A partir desse momento o sistema-mundo governou o planeta através de quatros
ciclos seculares próprios do capitalismo. A fase inicial de grande expansão
(1450-1620/40) foi seguida de uma longa crise (1600-1730/50), que desembocou
numa etapa de desenvolvimento excepcional (1730-1850). O quarto período persiste
até à actualidade e seria o último deste universo moderno (Wallerstein, 2005:
cap. 2).
O pensador sistémico calcula que ciclos expansivos e contractivos de 50-60 anos
regulam essas etapas. São flutuações denominadas Kondratieff, que operam como
sequências previsíveis dentro de processos de maior duração, que determinam o
curso do sistema mundial (Wallerstein, 1984: 5).
O teórico americano calcula que uma estrutura inter-estatal funcionou à escala
internacional com hegemonias cambiantes. Cada supremacia emerge como resultado
das lutas sangrentas que garantem o predomínio da potência vencedora. Ao fim de
certo tempo a superioridade económica do vencedor é abalada pelos rivais, que
copiam inovações evitando os gastos bélicos enfrentados pelo vencedor. Essa
mesma sequência repete-se com o triunfador da etapa seguinte (Wallerstein,
1999ª: 279).
Após um antecedente ibérico, os Países Baixos tiveram a primeira liderança
significativa, aproveitando as suas vantagens no comércio, a agricultura
intensiva e o fabrico têxtil. Essa primazia foi desafiada pela Inglaterra e
França que haviam alcançado certa paridade de desenvolvimento. O controlo do
ultramar foi a chave do êxito britânico. Permitiu estabelecer colónias que
compensaram a inferioridade de população e recursos internos. Essas implantações
facilitaram a acumulação de moeda e o manejo de um grande mercado externo
(Wallerstein, 1948: 50-98, 102-174; 1999: 83-99).
Também a hegemonia norte americana obedeceu durante o século XX a vitórias no
plano internacional. Para Wallerstein o leme da economia-mundo fica sempre
definido nesse terreno externo. Assim se dirimiu a superioridade norte-americana
sobre os seus competidores (Alemanha e Japão) e subordinados (Inglaterra e
França).
Esta sucessão de hegemonias é explicada pela natureza competitiva de um sistema,
que impede a consolidação de centros imperiais totalmente dominantes. Por isso
fracassaram as três tentativas de gerir esse controlo absoluto (Carlos V,
Napoleão e Hitler). A economia-mundo recicla-se mediante a autodestruição que
gera o próprio exercício da hegemonia.
Ordens e Hierarquias
Wallerstein pormenoriza vários princípios de funcionamento do sistema mundial.
Sublinha a ampliação permanente desse circuito, mediante a incorporação de áreas
externas a uma estrutura segmentada entre países centrais e provedores de
matérias-primas. À medida que a economia-mundo se expande, todas as regiões do
planeta ficam incorporadas nesse dispositivo (Wallerstein, 1979: 426-502).
A América foi absorvida durante a conquista espanhola e a Europa Oriental quando
consolidou a sua exportação de alimentos. A Índia, o Império Otomano, Rússia e
Africa Ocidental entraram ao ficar submetidas às exigências da divisão
internacional do trabalho.
Essa subordinação garantiu as especializações laborais e produtivas de cada
zona. A industrialização prematura da Inglaterra, França e Países Baixos
determinou a primazia do trabalho livre. Na América do Norte prevaleceu a
escravatura para assegurar a provisão de insumos ao Velho continente. Na Europa
Oriental impôs-se a servidão para garantir o abastecimento de cereais e nas
zonas intermédias como a Itália predominaram misturas de trabalho assalariado e
forçado (Wallerstein, 1079: 93-177).
Com essa visão considera-se que o capitalismo debutou como um sistema
mundializado e garantiu-se com a inclusão de países na cúspide, no meio e na
parte inferior da sua estrutura. A situação central, periférica ou
semiperiférica de cada país determinou o tipo de exploração laboral prevalente.
 Também o produto exportado foi definidor. Àqueles que se inseriam de maneira
subordinada chegaram os bens necessários para o fabrico de mercadorias mais
elaboradas. Quando concretizaram essa integração, substituíram o velho papel de
vendedores de bens secundários (ou sumptuários) por um novo papel de provedores
de insumos específicos (Wallerstein, 1999ª: 183-207).
Essa mutação determinou a especialização do subcontinente indiano na produção de
índigo, seda, ópio ou algodão e a transformação do Império Otomano em exportador
de cereais. A Africa Ocidental garantiu a sua elaboração de azeite de palma e
amendoim e a Rússia consolidou as suas vendas de cânhamo, linho e trigo.  
Estas incorporações ao sistema-mundo provocaram, por sua vez, a destruição das
velhas manufacturas locais. Na Índia ficou demolida a produção têxtil, no
Império Otomano desmoronaram-se os centros produtivos da Anatólia, Síria e
Egipto. Na África foram pulverizadas as modalidades fabris embrionárias. Só a
Rússia pode resistir ao embate pela força relativa do seu exército (Wallerstein,
1999: 207-212).
O teórico dos sistemas entende que as situações e hierarquias de cada região se
reproduzem através de uma cadeia de produtos, que reúne todos os participantes
num mesmo circuito mundial. Mediante o intercâmbio desigual e o fluxo polarizado
do comércio, essa conexão reforça o predomínio de certas zonas centrais. O
sistema, inclui, portanto, uma recriação constante do desenvolvimento.
A mesma hierarquia global reproduz-se também com transformações industriais que
modificam a localização dos distintos ramos. A presença da indústria têxtil
retratava no século XVI uma economia central. Mas a mesma actividade era
representativa no século XIX de um país semiperiférico e tornou-se
característica de uma periferia nos finais do século XX. A cadeia de produtos
ajusta-se à reorganização periódica da hierarquia estável do capitalismo mundial
(Wallerstein, 1986).
Nesta análise também se considera que o sistema-mundo funciona mediante uma
estrutura política, que reafirma a localização central, periférica ou
semiperiférica de cada país na hierarquia global. Nesse enquadramento amolda-se
a preeminência de estados fortes, débeis e intermédios. As formações distintas
estatais coexistem através de reconhecimentos mútuos, que asseguram a
legitimidade internacional de cada país (Wallerstein, 2004: cap. 18-19).
 Esses estados são indispensáveis para mercantilizar a força de trabalho,
assegurar a cobrança de impostos, garantir o lucro e socializar o risco. O
capitalismo necessita de jurisdições territoriais e fronteiras definidas para
externar os custos dos grandes investimentos e manter políticas de protecção ou
liberalização comercial (Wallerstein, 1988: 36-48).
A gravitação decisiva que o teórico norte-americano designa ao estado contrasta
com o papel secundário que atribui à nação. Considera que estas últimas
entidades se conformarão como simples derivações dos estados e serviram para
ligar os indivíduos em torno do patriotismo, o sistema escolar e o serviço
militar (Wallerstein, 2005: cap. 3).
Com uma interpretação semelhante, afirma-se que a raça emergiu como uma entidade
adaptada ao lugar que ocupa cada agrupamento humano, na divisão internacional do
trabalho.
Os trabalhadores livres de pele branca, os escravos negros e os servos mestiços
ficaram separados pela modalidade de exploração prevalecente em cada segmento. A
etnia foi por sua vez para indicar trabalhos específicos às diversas comunidades
de cada país. Portanto, a noção genética de raça, o conceito sociopolítico de
nação e a categoria cultural de etnia ficaram definidos pelo seu papel na
economia-mundo (Wallerstein, 2004: cap. 1).
Parentescos com a dependência
Wallerstein elaborou a sua concepção adoptando vários postulados da teoria da
Dependência. Compartilhou a crítica às teorias liberais do desenvolvimento e às
concepções positivistas da modernização. Questionou a apresentação de Ocidente
como um modelo a imitar e polemizou com o mito de alcançar o bem-estar através
da simples expansão do capitalismo.
Mas objectou essas concepções sem aceitar a alternativa de desenvolvimento e
recusou especialmente a visão estatal-nacional. O pensador norte-americano deu
ênfase à conveniência de adoptar a economia mundial como ponto de partida de
todos os estudos.
Com essa visão colocou-se na vereda oposta do institucionalismo. Debateu-se com
as ideias weberianas que explicam o desenvolvimento contrastando vias distintas
de desenvolvimento nacional. Desenvolveu essa visão com a mesma veemência que
usaram os marxistas do pós-guerra nas suas controvérsias com os keynesianos.
Quando o impacto do intercâmbio se tornou desigual e descreveu as transferências
de ingressos para as metrópoles, esta visão do capitalismo convergiu na teoria
da dependência. Caracteriza esse sistema como um regime de exploração sujeito a
desequilíbrios crescentes e contradições insuperáveis. Remarca a dinâmica
polarizadora de uma estrutura que reforça a separação entre economias avançadas
e atrasadas.
A afinidade com o dependentismo verifica-se, aliás, na avaliação do destino dos
países subdesenvolvidos que dão insumos à indústria metropolitana. Essa
especialização obstrui o desenvolvimento interno da periferia.
Wallerstein também sintonizou com os teóricos marxistas latino-americanos, na
interpretação da acumulação mundial como um processo que compensa declives do
benefício com embaratecimento de custos salariais. Por isso estudou de que forma
a exploração nos trabalhadores da periferia resiste à retracção do lucro no
centro (Wallerstein, 1988: 24-30).
A coincidência com o dependentismo também se verifica na crítica às estratégias
políticas evolutivas e aos projectos de capitalismo nacional nos países
subdesenvolvidos. Wallerstein utilizou esse fundamento para recusar o rígido
esquema histórico de modos de produção sucessivos e para postular o carácter
internacional da passagem de um sistema a outro.
Sintonias e Distâncias
A boa acolhida da teoria do sistema mundial entre os pensadores da dependência
incluiu certas diferenciações. Dos Santos distinguiu três vertentes de
abordagens semelhantes da relação centro-periferia.
Por um lado calculou que Wallerstein colocou o tema numa conceptualização do
capitalismo histórico, como estrutura que se expandiu em conflito com outros
sistemas. Logo considerou que Amin investigou o mesmo problema desde o universo
asiático-africano, pondo maior ênfase na evolução do Terceiro Mundo.
Finalmente precisou que a sua visão (junto com Marini e Bambirra) abordou essa
temática desde a situação latino-americana, distinguindo o capitalismo central,
os países dependentes e o socialismo (Dos Santos, 1998).
Estas coincidências gerais foram ratificadas por Amin, que ressaltou a
preeminência de formulações complementares do mesmo problema. O economista
egípcio destacou as confluências na caracterização da origem e o funcionamento
polarizado do capitalismo (Amin, 2005).
Também remarcou a utilidade da posição de Wallerstein para registar a dinâmica
internacional da lei do valor e a gravitação de processos de transferência de
mais-valia. Calculou que o sistema-mundo permite observar a unidade desses
fenómenos, superando a conceptualização do mercado mundial como uma mistura de
componentes justapostos (Amin, 2008: 234-236).
Outros investigadores sublinharam as afinidades entre as três visões (Martins,
2011: 265-266), evidenciaram o enriquecimento que gerou o seu encontro (Herrera:
2001: 201-220) e apresentaram a visão sistémica como uma continuidade do
dependentismo (Blomstrom; Hettne, 1990: 243-244, 247-248).
 Algumas opiniões ponderaram por sua vez, a influência de Wallerstein sobre Dos
Santos, calculando que contribuiu para superar os ingredientes identitários do
velho dependentismo. Com a visão abarcadora do sistema mundial dissolveu-se a
abordagem unilateral do subdesenvolvimento como um «pensamento latino-americano»
e reviu-se o conceito dependência, como uma relação mutável dentro da
economia-mundo (Niemeyer, 2005).
Estes diagnósticos de confluência coexistiram com caracterizações que
evidenciaram as diferenças. Destacam que a abordagem sistémica privilegia
lógicas globais, perante a visão dependentista que realiza a interacção
dialéctica entre o centro e a periferia (Sotelo, 2005). Também calculam que
Wallerstein não consegue perceber o significado específico do capitalismo
dependente latino-americano (Osório, 2009: 41-44).
Estes problemas podem esclarecer-se precisamente precisando quais são as nações
que aproximam e separam as duas teorias.
Conceitos convergentes
Wallerstein introduziu várias noções que ampliaram uma óptica do capitalismo
contemporâneo. Ilustrou como a industrialização das economias medianas estudadas
por Marini está entrelaçada com processos integrados de fabricação global.
Dessa forma situou a dinâmica da reprodução dependente nas tendências da
acumulação mundial. Explicou de que modo as economias subdesenvolvidas
participam em cadeias internacionais de produtos e por que razão só certos
países da periferia desenvolvem um perfil manufactureiro.
O pensador norte-americano sublinhou que o capitalismo recria uma estratificação
global estável. Demonstrou a preeminência de uma hierarquia que reproduz
situações não electivas de dependência e perpetua a polarização
centro-partidária (Schwartzman, 2006)
Esta visão reforça todos os postulados do dependentismo, que sublinham os
estritos limites que o capitalismo impõe a qualquer mudança no estatuto
internacional dos países.
Assim como os marxistas latino-americanos, Wallerstein deduz essa estabilidade
da rigidez que apresenta a divisão internacional do trabalho. Ressaltou a
existência de uma arquitectura estável em cenários geográficos cambiantes.
Observou que as alterações na pirâmide centro-periférica se desenvolvem
maioritariamente no interior de cada segmento. Só em poucas circunstâncias
históricas algumas economias centrais se degradam até ao nível periférico e a
mesma excepcionalidade rege em sentido inverso (Aguirre Rojas, 2007).
Wallerstein postula um princípio de soma zero na mobilidade interna de cada
franja do sistema mundial. Considera que a subida de um componente tende a ser
compensado pela queda de uma porção equivalente.
Nesses mesmos termos situaram o subdesenvolvimento os pensadores da dependência.
A teoria do sistema-mundo trouxe novos argumentos para fundamentar teses
partilhadas de recriação estrutural da desigualdade global. Mas o autor
norte-americano introduziu ainda um conceito de semiperiferia, para ilustrar a
existência de situações intermédias, que historicamente operaram como aros de
subida ou descida no sistema mundial. Verificou que junto das potências
hegemónicas sempre existiram formações intermédias que acolchoaram a
desigualdade global. A situação semiperiférica expressou o declive de velhas
potencias a situações medianas (Espanha) onde o trânsito para ‘posições de
domínio mundial (Estados Unidos, Alemanha) (Wallerstein, 1984: 248-267,
313-329).
Esta lógica de desenvolvimento trimodal foi exposta para superar as
simplificações do esquema dual legado por Prebisch (centro-periferia) e recriado
pelas visões anti-imperialistas mais rudimentares (império-colónia).
Este novo modelo não só explicou como funciona a transferência de ingressos à
escala internacional. Também renovou os estudos sobre as alianças que
estabelecem os centros hegemónicos com os sócios subalternos, para garantir a
estabilidade do capitalismo e incorporar novas áreas ao sistema-mundo (Chase
Dunn, 2012).
O mesmo esquema foi sugerido embora não explicitado pelos teóricos da
dependência. Marini indagou as peculiaridades das economias latino-americanas
industrializadas e distinguiu-as dos países puramente exportadores de
matérias-primas. Bambirra expôs uma diferenciação entre modelos com distinto
grau de subdesenvolvimento. A noção de semiperiferia esta presente facto nessas
abordagens e essa familiaridade foi reconhecida pelos teóricos do dependentismo
(Dos Santos, 2009).
Wallerstein utilizou também uma visão muito semelhante ao ciclo dependente
teorizado por Marini, para sublinhar o lugar ocupado por cada economia no
circuito produtivo mundial. Essa visão distanciou-se do modelo inicial de
Prebisch, que só estudava a inserção da periferia nas redes do intercâmbio.
 Existem portanto muitas coincidências temáticas entre o sistema mundial e o
dependentismo. Quais são as áreas de divergência?
 Sistemas ou Modos de produção?
Os teóricos da dependência assinalam que o marxismo tem sido um terreno que os
separa da visão propiciada pelo sistema-mundo (Dos Santos, 1998; 2000: 456-470).
Wallerstein só aceita a tipificação de marxista quando essa caracterização
implica numa identificação genérica com pensamentos e atitudes radicais. Não
compartilha a aplicação habitual dessa teoria (Wallerstein, 2013: 202-210).
Alguns intérpretes da sua visão ressaltam a sua compatibilidade com o marxismo
(Penston, Busekese, 2010). Outros até acham que reformula a apresentação de
Trotsky da economia mundial, como uma totalidade estruturada em torno da divisão
do trabalho (Doronenko, 2005).
Mas o que se discute não é a classificação do autor, mas sim o sentido do seu
conceito de sistema. Esta noção articula toda a sua visão. Wallerstein recorda
que começou a estudar os conflitos sociais e indagou logo como opera o consenso
de valores na realidade africana e a história europeia. Desta investigação
deduziu a necessidade de priorizar o contexto mundial entendido como um sistema
(Wallerstein, 1979: 7-18).
Desenvolveu esta última categoria como uma perspectiva de análise ou um
paradigma e deixa aberto um aprofundamento ulterior do conceito, como uma teoria
mais completa (Wallerstein, 2011).
O sistema contém muitas proximidades com a noção marxista de modo de produção
que utilizou o dependentismo latino-americano. Mas as duas noções pressupõem
ideias distintas do desenvolvimento da sociedade.
Wallerstein apresenta uma diferença na gravitação assignada à exploração do
trabalho como pilar dos diversos regimes sociais. Os minissistemas, o
império-mundo e a economia-mundo não estão concebidos em volta deste alicerce.
Por isso o teórico norte-americano contrapõe os seus modelos ao velho esquema
que atribuía ao marxismo, uma sucessão de modos de produção (colectivismo
primitivo, esclavagismo, feudalismo, capitalismo).
A divergência não se radica na existência de uma ordem sucessiva, visto que a
tese sistémica também contem escalonamentos. A passagem inexorável de um esquema
a outro também não é central, já que essa simplificação só foi característica
das vertentes mais dogmáticas do marxismo.
 
 Nem sequer o método de Wallerstein é o motivo da controvérsia. Adopta a noção
de sistema com uma abordagem multidisciplinar, que rompe a tradição de estudos
fragmentados em cadeiras separadas. Recusa a divisão entre economia, ciências
políticas ou sociologia e constrói os seus conceitos desejando a reunificação
das ciências sociais (Wallerstein, 2005: cap. 1). Essa atitude é muito próxima
do marxismo.
Com essa visão reivindica a Marx o materialismo histórico e a primazia da
economia no estudo do capitalismo. Aprova a visão histórica dessa tradição e o
interesse por captar as contradições que solapam os processos de acumulação.
Mas Wallerstein afasta-se dessa matriz ao manter a sua noção de sistema noutros
três alicerces históricos. De Braudel recolhe a situação dessas estruturas em
temporalidades longas e espacialidades alargadas. De Polanyi toma a
classificação de formas específicas de organização social, em torno de
princípios de reciprocidade, redistribuição e intercâmbio mercantil.
Finalmente de Prigogine absorve a caracterização dos sistemas como organismos
com vidas limitadas e existências marcadas por períodos de equilíbrio e caos. Em
certas etapas essas estruturas sobrevivem assimilando as perturbações e em
outros momentos ficam afectados por torvelinhos caóticos. Estes sistemas são
estudados com a mesma óptica que os astrónomos utilizam para investigar o
universo (Wallerstein, 1979: 7-8, 2002: 69-80).
Esta passagem de critérios das ciências naturais ao pensamento social
distancia-o da visão marxista dos modos de produção. A contradição entre o
desenvolvimento de forças produtivas e as relações sociais de propriedade que
postula essa visão supõe outros padrões de transformação. Privilegia a
combinação de variáveis produtivas e confrontos de classe.
Essa diferença de abordagem é maior com a vertente historicista do marxismo, que
realiza o papel dos sujeitos na passagem de um sistema para outro. Esta corrente
recusa de forma mais categórica as analogias com as ciências naturais.
O sistema-mundo não recorre aos raciocínios de classe que com diverso grau de
centralidade — inspiram todas as variantes do marxismo. A primazia dada à luta
social por esta concepção, contrasta com a visão estruturalista da visão
sistémica. Wallerstein avalia cada acontecimento como uma exigência funcional do
curso da história (Robinson, 2011).
Alguns críticos consideram que ao apresentar sucessivos sistemas como os únicos
motores da evolução social, esta abordagem impõe uma nociva «tirania da
totalidade». Acham que Wallerstein constrói universos forçados, assumindo que o
conjunto é sempre mais gravitante que as partes. Com essa visão ignora a
autonomia dos componentes, que são observados como simples transmissões de uma
dinâmica já pressuposta pelo sistema mundial (Smith, 1979). Outros analistas
mantêm que essa visão dilui as particularidades e perde de vista os processos
que operam em temporalidades curtas (Osório, 2009: 48-50).
 Wallerstein sintetiza as suas diferenças com a óptica marxista contrapondo ao
seu conceito de totalidade e com a totalização que adjudica Perry Anderson.
Utiliza a primeira noção para conceber mutações de sistemas cerrados, com
princípio e fim predefinidos e rigorosos mecanismos internos de mudança. A visão
oposta trabalha sobre cursos abertos, saídas incertas e uma grande variedade de
mecanismos de transformação (Wallerstein, 20123: 202; 202-210).
 A totalidade de Wallerstein e a totalização de Anderson ilustram as
discrepâncias entre as duas formas de raciocínio, que inspiram visões distintas
sobre o curso actual do capitalismo.
 Crises terminais e sujeitos sociais
Wallerstein considera que as datas de início e conclusão do sistema mundial são
previsíveis. Deduz uma rigorosa cronologia do comportamento auto destrutivo
dessa estrutura. Calculas que o esgotamento do ciclo actual implicará o fim da
economia-mundo. Não será um movimento secular que se sucede a outro, mas sim a
última flutuação do sistema. Num cenário muito caótico essa clausura fechará um
período de 500 anos (Wallerstein, 2005; cap. 5).
O pensador norte-americano assinala três causas determinantes desse desenlace.
Calcula, em primeiro lugar, que o maior poder de trabalhadores organizados em
sindicatos gerou uma forte redução dos lucros. Os capitalistas tentaram
contrariar essa pressão deslocando a produção para regiões com força de trabalho
embaratecida. Mas não conseguiram contrapor o processo garantido de urbanização
que aumenta o custo do trabalho.
Em segundo lugar ressalta o generalizado enraizamento da produção como
consequência da crise ecológica, o esgotamento das matérias-primas e a
acumulação.
Finalmente destaca que o sistema impositivo não pode resolver a democratização
política que os trabalhadores impuseram (Wallerstein, 2002).
Esses três processos precipitam a crise terminal do sistema-mundo. Já não é
possível regenerar um império-mundo, nem tão pouco recrear outra sucessão
hegemónica.
Com este diagnóstico Wallerstein descreve várias contradições que os marxistas
apresentam como limites históricos do capitalismo. Mas a sua visão incorpora
datas precisas de uma desembocadura terminal. Afirma que o declive começou nos
anos 1960-70 e culminará no ano de 2030-2050. Nesse momento uma grande
turbulência porá fim a cinco séculos de modernidade e emergirá uma forma de
organização social mais igualitária (Wallerstein, 2011: 2005: cap. 2).
 
 Essa caracterização tem pontos de contacto com as teorias do derrubamento que
os marxistas discutiam em 1920-40, para dilucidar qual seria o factor
determinante do estouro do capitalismo (retracção do consumo, queda da taxa de
lucro, desmoronamento financeiro).
A maturação posterior desse debate permitiu entender que uma crise final resulta
imprevisível e não deve ser concebida com a automaticidade de mecanismos
puramente económicos. Só as maiorias populares actuando no plano político podem
por fim ao capitalismo e substitui-lo por um regime social mais progressivo.
Mas em qualquer caso o mais importante não é a magnitude das crises, mas a
percepção popular das potencialidades anticapitalistas dessas convulsões. E esse
nível de consciência é muito inferior na actualidade ao prevalecente nos anos 70
ou 30 do século passado (Therborn, 2000, 284-266).
Esse último problema requer mais atenção que todas as especulações sobre a data
do anunciado colapso. A consistência desse prognóstico é tão duvidosa como as
diversas reflexões sobre o momento de finalização do sistema. Esse fim está
condicionado por acções político-sociais que são totalmente imprevisíveis.
Claro que o regime actual enfrenta limites históricos, mas essa fronteira não
pressupõe a temporalidade augurada por Wallerstein.
Duas opiniões sobre os ciclos longos
O pensador sistémico concebe um processo de decadência semelhante ao registado
na Europa durante a passagem do feudalismo ao capitalismo (Wallerstein, 1986).
Essa analogia tem sido tão debatida como os paralelos entre o declive dos
Estados Unidos e o império romano.
Nesses casos contrastam regimes sociais com financiamento, mecanismos económicos
e tipos de crises muito diferentes. A extensão dessas comparações a estruturas
estatais ou tipos de intervenção político-popular é ainda mais controversa.
Nos factos essas analogias só sugerem longas transições, que por sua vez
contradizem a previsão de um momento predefinido de colapso. As descrições que
Wallerstein apresenta sobre o caos actual ilustram reorganizações do
capitalismo, mudanças de relações de força ou alterações na liderança hegemónica
(Wallerstein, 2012).
Esses processos incluem situações muito turbulentas, mas não enquadram um fim
que possa antecipar-se Esse tipo de clausura é um ingrediente necessário da
visão sistémica, mas não constitui o seu corolário da visão marxista desejada
pelos teóricos latino americanos da dependência.
Dos Santos, Marini e Bambirra sempre conceberam o futuro do capitalismo em
extrema relação com o avanço de um projecto socialista alternativo. Os lapsos
que imaginaram para essa mudança estavam associados ao curso dessa batalha.
Nunca supuseram colapsos intrínsecos ou auto infligidos pelo próprio
capitalismo.
Essa diferença de abordagem verifica-se também em dois tratamentos dos ciclos
Kondratieff. Wallerstein incorpora-os na tradição de Schumpeter, como mecanismos
com temporalidades fixas que renovam a tecnologia e ampliam os mercados.
Por isso pressupõe a sua previsibilidade e reaparição cíclica cada cinco ou seis
secadas. Introduz a vigência desses movimentos ao longo de 500 anos e
prognostica que a fase de estancamento actual convergirá com o colapso do
sistema mundo. Um Kondratieff descendente unir-se-á ao esgotamento do último
ciclo secular (Wallerstein, 2016, 2012c; 2011: cap. 1).
A aplicação que Dos Santos fez desses ciclos coloca-se noutra tradição. Está
mais afim das teorias marxistas das ondas longas que desenvolveram autores como
Mandel. Regista movimentos económicos prolongados só desde o século XIX e
observa o seu desenvolvimento na relação estreita com a dinâmica da luta de
classes.
Dos Santos procurou verificar como opera um período Kondratieff no cenário
contemporâneo de reorganização tecnológico-produtiva do capitalismo. Não situou
esses ciclos em temporalidades seculares, nem em sequências de quedas do
sistema-mundo (Dos Santos, 1983).
As diferenças entre Wallerstein e os dependentistas latino-americanos incluem
também visões discordantes sobre o estancamento e a pauperização absoluta. Para
o teórico norte-americano estes dois retratam a presença de uma crise terminal
da modernidade.
Considera que a maioria dos trabalhadores enfrenta maiores adversidades do que
há 500 anos em matéria de alimentação, condições laborais e esperanças de vida
(depois do primeiro ano de existência). Atribui essa regressão à eliminação das
estruturas comunitárias e calcula que a melhoria do consumo só beneficiou a
10-15% da população mundial que alcançou o estatuto de classe média
(Wallerstein, 1988: 92-96)
As numerosas polémicas que Marini desenvolveu para demonstrar que a sua teoria
não envolvia paragem, nem miséria crescente ilustram a sua discrepância com a
visão de Wallerstein.
A tese da superpopulação que concentrou o grosso desses questionamentos foi
formulada em contraposição com os diagnósticos de pauperização generalizada, em
qualquer estádio do capitalismo.
Marini teorizou a existência de maiores taxas de exploração na periferia em,
comparação com o centro. Nesse contraponto destacou que o fordismo e o estado de
bem-estar tinham melhorado as condições de vida dos trabalhadores metropolitanos
(Marini, 1973: 81-101). Com esse contraste da situação dos trabalhadores das
economias avançadas e atrasadas reconhecia uma melhoria mais significativa nos
países desenvolvidos. Também se distanciava da tese da deterioração mais
generalizada postulada pelo teórico do sistema-mundo.
Discordâncias sobre o socialismo
No período que elaborou a sua concepção, Wallerstein incluiu a ex-União
Soviética, a China e o denominado bloco socialista dentro do sistema mundial.
Entendeu que estas regiões estavam integradas nesse circuito e enfrentariam o
mesmo declive. Considerou que a economia-mundo era uma totalidade dominante no
planeta.
O estudioso norte-americano também achou que o projecto socialista teve um
impulso revolucionário inicial e se diluiu posteriormente nas redes do
capitalismo mundial. Não pode escapar à dinâmica e destino desse regime.
Por essa razão Wallerstein não deu importância à implosão da URSS e situou esse
desaprumo na crise geral da era actual. Contrapôs a definição de Hobsbaum do
«breve século» marcado pelo surgimento e queda da URSS com um «longo século XX»,
determinado por outras circunstâncias como o auge e decadência dos Estados
Unidos (Wallerstein, 1992).
Mas ao incluir o bloco socialista dentro do sistema mundial também supôs que
esse segmento funcionava com os mesmos princípios de rentabilidade, competência
e propriedade que as economias capitalistas.
Nessa caracterização omitiu a análise interna desses países. Deduziu a sua
semelhança com o resto do mundo numa simples conexão externa com as potências
ocidentais. Aplicou o mesmo raciocínio que utilizou para inscrever dentro do
sistema-mundo, todas as regiões que ao longo de 500 anos foram absorvidas por
esse circuito.
Mas nunca explicou essa analogia entre a ex. URSS, China e Europa Oriental e o
que aconteceu vário séculos antes com a Índia ou o império otomano (Chen, 2010).
Não demonstrou como, quando e de que forma se produziu uma permanência
invariável ou uma sólida e imediata reintrodução desses países no capitalismo.
Esse retorno só se pôde constatar quando do derrubamento do bloco socialista.
Nesse terreno verificam-se as consequências de sobrevalorização das totalidades,
em lugar da dinâmica específica de cada componente do sistema mundial.
 Wallerstein forçou a classificação da URSS e China dentro do mesmo bloco que os
Estados Unidos hegemonizaram desde o pós-guerra.
 Esta assimilação foi outra área de divergência com o dependentismo. Os
marxistas latino-americanos não tratavam a URSS como um subsistema do
capitalismo e estavam atentos ao papel desse país na batalha contra o
imperialismo.
Dos Santos, Marini e Bambirra discordavam da visão elogiosa do bloco socialista
que os partidos comunistas propagavam, mas faziam ressaltar o conflito desse
sector com as potências ocidentais. Apostavam numa renovação socialista desses
países no calor dessa disputa.
Todo o raciocínio dos dependentistas estava dirigido por uma expectativa do
projecto socialista. Wallerstein só concebia esse curso como um salto
imediatamente global, ao sublinhar a existência de uma única totalidade mundial.
O grupo latino-americano não pressupunha resultados vitoriosos, mas situava-se
num campo de batalha para o socialismo. A tese sistémica desconsiderou essa
perspectiva por entender que o capitalismo caía por si mesmo numa data
previsível.
Anti-imperialismo e tradições nacionais
A teoria marxista da dependência concebia triunfos anticapitalistas como um
resultado de revoltas populares na periferia que se projectavam para o centro.
Essa esperança foi moldada pela revolução cubana, que não ocupou espaços
significativos na conceptualização de Wallerstein.
A sua visão nutriu-se de outras experiências políticas, a partir da sua formação
na esquerda norte americana junto de movimentos radicais, libertários e anti
estalinistas. Depois trabalhou em África em contacto com as correntes
protagonisticas da luta anticolonial e foi muito influenciado pelo pensamento de
Fanon (Wallerstein, 2012b).
Nessa maturação processou de outro modo a critica à visão evolutiva que os
partidos comunistas promoviam. Assimilou especialmente as consequências
historiográficas desse questionamento e extraiu conclusões para elaborar o seu
modelo de mutações sistémicas.
Pelo contrário o dependentismo concentrou os seus dardos no plano político e
objectou as propostas de capitalismo nacional auspiciadas pelos partidos
comunistas (Chilcote, 2009). A crítica dependentista teve uma finalidade
imediata que não estava presente na visão de Wallerstein.
Esse registo diferenciado alargou-se no sentido da luta nacional na periferia. A
visão sistémica recusou essa acção e em lugar de estratégias anti-imperialistas
promoveu politicas críticas para a opressão com rumos cosmopolitas. Identificou
qualquer reivindicação da dimensão nacional com o projecto desenvolmentista.
A visão de Wallerstein também não compartilha as mediações entre a acção
anti-imperialista na periferia e a dinâmica anticapitalista à escala global,
proposta por Amin no seu modelo de desconexão (Goldfrank, 2000). Supõe que o
colapso do sistema-mundo iluminará um cenário pós-capitalista global, sem
necessidade desses elos.
Por isso o pensador norte-americano imagina transformações sociais directas na
arena mundial a partir de acções anti sistémicas. Não inclui a convergência do
socialismo como nacionalismo revolucionário que defendeu o dependentismo.
Essa recusa inspira-se na sua caracterização da nação, como uma entidade
derivada da forma como cada estado se inseriu na divisão internacional do
trabalho.
Mas omite que esse amoldamento seja um processo muito convulsivo, que inclui
projectos progressistas e democráticos condicionados pela irrupção popular. O
dependentismo recolheu justamente esse legado nacional e tentou fundi-lo com a
perspectiva socialista.
As duas visões verificam-se na avaliação da guerra que levou à independência da
América Latina. Wallerstein não dá importância revolucionária a essa ruptura e
ressalta o temor dos crioulos aos escravos e aos índios. Observa o ocorrido
nesse período como um exemplo de adaptação passiva e subordinada de uma região à
economia-mundo (Wallerstein, 1999: 354, 306-317).
Pelo contrário o dependentismo foi sempre a fim da reivindicação de essa gesta
como um precedente do anti imperialismo contemporâneo. Com essa óptica propiciou
pensar o socialismo desde tradições latino americanas. Estas divergências sobre
o passado projectam-se nas estratégias de emancipação futura.
Só agora é possível?
No processo de colapso objectivo do sistema-mundo. Wallerstein dá um papel
protagonístico aos movimentos anti sistémicos forjados durante a descolonização
e as rebeliões de 1968. Calcula que essas sublevações inauguraram a recusa
revolucionária à hegemonia norte-americana e as culturas da opressão.
Também pensa que esses levantamentos iniciaram a substituição da velha esquerda
por novos movimentos sociais, que ampliam a democratização, desafiam o
eurocentrismo e introduzem o multiculturalismo.
Wallerstein calcula que pela primeira vez na história desponta um cenário de
emancipação real. Considera que nas últimas cinco centúrias não se podia
modificar o sistema e os revolucionários terminavam adaptando-se à ordem
mundial. Afrontavam dilemas irresolúveis ao tratar de modificar estruturas que
não podiam ser removidas (Wallerstein, 1999b: 127-176).
Com esse pressuposto calcula que uma grande opressão afectou às experiências
socialistas, à social-democracia e aos movimentos nacionalistas, que
infrutiferamente pugnaram entre 1870 e 1968 por outro curso de evolução social
(Wallerstein, 1989).
Essa mesma tese de inviabilidade das transformações no passado e factibilidade
no presente foram recorrentes noutros historiadores. Muitos garantiram que a
impotência sofrida pelos escravos insurrectos na Antiguidade, pelos camponeses
sublevados na época medieval ou pelos obreiros esmagados na Comuna de Paris
obedeceu ao rígido marco dessas épocas. Calcularam que a imaturidade das forças
produtivas impossibilitou em todos os casos a concreção de outras alternativas.
Mas essa visão pressupõe que recentemente na etapa que a cada um toca viver são
possíveis as transformações reais. Wallerstein expõe essa ideia com duas
considerações. Por um lado é crítico com a adaptação ao status quo de todos os
movimentos rebeldes do passado. Por outro lado declara que outra evolução é
factível desde 1968, ante a aparição de uma nova subjectividade carente de
precedentes (Wallerstein, 2004: cap. 23).
Este raciocínio de situações sem saída no passado introduz um elemento trágico
na análise da história. Supõe que em tempos pretéritos os revolucionários
estavam condenados a fracassar, sacrificar-se ou capitular e que só na
actualidade estão abertas as opções de triunfo.
Essa visão explica a atitude de Wallerstein perante as guerras da independência
hispano-americana. Sublinha que essa confrontação desembocou na formação de
estados opressores submetidos à tutela britânica, como consequência do lugar que
devia ocupar essa região no sistema mundial (Wallerstein, 1999ª: 356-357).
Mas toma esse resultado final como um sucesso imodificável, desconhecendo as
potencialidades de um confronto revolucionário. Não regista, aliás, o legado de
experiências e tradições que deixou essa luta para as classes oprimidas.
É muito arbitrário supor que a história outorga as chaves do porvir só aos
sujeitos a viver em certa conjuntura, supondo que têm o duvidoso privilégio de
actuar num cenário terminal do capitalismo.
O marxismo historicista encara o problema noutros termos. Realça o papel dos
sujeitos populares, assinalando que os projectos progressistas foram factíveis
em todas as temporalidades. Por essa razão não qualifica os contemporâneos em
desprimor dos seus precursores, sabendo que essa hierarquização podia ser
desmentida no futuro ou utilizada para descartar a gravitação do que actualmente
sucede.
Em Wallerstein o papel dos projectos é um enigma. Supõe que as acções populares
foram irrelevantes até à actualidade pela sua incapacidade de torcer a dinâmica
do sistema mundial. Mas atribui-lhes uma função cerebral na construção da
sociedade que surgirá em meados do século XXI.
Alguns analistas atribuem essas oscilações a um extremo determinismo na
conceptualização dos sistemas mundiais. Assinalam que essa visão lhes impede
registar a multiplicidade de caminhos que teve a gestação da modernidade. Esse
desembocar foi o resultado de diversas rebeliões que sucederam à revolução
francesa e não um corolário da economia-mundo (Therborn, 2000: 284-266).
Estratégias políticas
Wallerstein atribui os fracassos do passado à preeminência de projectos
políticos ligados à captura do poder. Considera que essa política permitiu no
século XX o êxito de certas reformas, mas não serviu para modificar o status
quo. Acha que dificilmente se poderia ter conseguido mais do que o obtido e nota
as consequências negativas de muitas experiências, que generalizaram a decepção
entre os sectores populares (Wallerstein, 1989; 1992).
Partindo dessa caracterização mantém que a emancipação agora será factível, sob
o impulso de movimentos anti sistémicos que não querem tomar o poder. Celebra o
abandono desse objectivo assinalando que governar dentro do sistema-mundo
equivale a renunciar às metas de justiça e igualdade. Realça a existência de
novos caminhos políticos que introduzem formas de acção não hierarquizadas, com
maior horizontalidade e descentralização (Wallerstein, 2002: 41-48).
Esta tese é muito afim da estratégia autonomista de passar por alto o
manejamento do estado para preparar a emancipação nos poros da sociedade.
Sintoniza com a teoria de «mudar o mundo sem tomar o poder», que durante a
última década se debateu intensamente na América Latina. O que se passou neste
período indica que essa visão não ofereceu alternativas viáveis de construção do
poder popular.
Wallerstein propõe uma estratégia em três estádios. Mantém que a longo prazo se
deve apostar na utopia de um mundo democrático e igualitário, sem postular
formas institucionais predefinidas desse porvir. No prazo imediato propõe
trabalhar por alternativas libertárias que ignorem o manejamento do estado e a
curto prazo auspicia optar pelo «mal menor», tanto nas eleições como na acção
directa (Wallerstein, 2008).
O seu primeiro objectivo tem semelhanças com o ideal comunista, mas omite a
necessidade de transições socialistas que permitam construir esse futuro,
através de um estado controlado pelas maiorias populares.
Wallerstein descarta esse instrumento e não oferece sugestões sobre a forma de
alcançar as suas propostas a médio prazo. Ante a ausência de um projecto estatal
alternativo a sua visão de curto prazo é mais problemática. Deixa abertas as
portas para transitar por caminhos de todo o tipo.
Nestes terrenos as diferenças com a tradição dependentista são mais
significativas. Essa visão sempre hierarquizou a meta socialista e propiciou
caminhos separados par aceder ao governo, manejar o estado e transformar a
sociedade.
A visão do sistema mundial compartilha a teoria da dependência muitas
caracterizações da relação centro-periferia. Também traz ideias boas para
adaptar o dependentismo às transformações registadas sob o capitalismo actual.
As duas concepções distanciam-se noutras aéreas chave da economia, a política e
a historiografia.
Em que medida estas convergências e divergências se alongam à visão
metrópole-satélite? Abordaremos este tema no nosso próximo texto.
 Resumo
A concepção de Wallerstein entrecruza-se com o dependentismo. Postula um modelo
de sistema mundial de cinco centúrias com pilares competitivos, ciclos seculares
e hegemonias cambiantes. Retrata inserções centrais, periféricas e intermédias
em função de modalidades produtivas e produtos comercializados. Descreve a mesma
polarização, estratificação estável e recriação do subdesenvolvimento que
diagnostica a teoria marxista da dependência.
Mas as duas visões divergem em várias áreas. Os sistemas fechados diferem dos
modos de produção contraditórios. A previsão exacta de crises terminais
contrasta com a hierarquização da dimensão político-social. A automaticidade dos
ciclos longos contrapõem-se com a atenção à confrontação classista e as teses de
pauperização absoluta distanciam-se da gravitação dada às conquistas sociais.
Também há discrepâncias na inclusão do ex. bloco socialista dentro do sistema
mundial e na valorização das mediações anti imperialistas e as tradições
revolucionárias nacionais. É muito controverso o registo da emancipação como um
episódio apenas contemporâneo e irrealizável no passado e persiste a polémica em
volta das estratégias politicas que prescindem do Estado.
 14.10.2016
 
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 *Economista, investigador do CONICET, professor da UBA, membro do EDI. A sua
página web é: www.lahaine.org/katz
 Tradução: Manuela Antunes
In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/teoria-da-dependencia-e-o-sistema/
11/11/2016

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