sexta-feira, 4 de novembro de 2016

‘O Estado brasileiro parece desintegrar-se’, diz o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira



 Chico Castro Jr.

A biografia do prestigiado académico brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira é a
de um homem que acompanhou, viveu e – enquanto historiador – investigou as lutas
pelo progresso dos povos da América Latina e a evolução da situação mundial no
decurso do séc. XX. Vivendo há 20 anos fora do Brasil, a distância não
prejudica, e talvez amplie, uma visão admiravelmente lúcida e informada da
situação no seu país e no mundo.


Em seu livro A desordem mundial, o senhor aborda diversos pontos de tensão ao
redor do mundo. O mundo retrocedeu na busca pela paz entre as nações? Como o
Brasil do golpe parlamentar / impeachment se encaixa neste complicado tabuleiro
de xadrez?
Desde o governo do presidente Lula da Silva, o Brasil, conquanto mantivesse boas
relações com os Estados Unidos, inflectiu em sua política exterior no sentido de
maior entendimento com a China e a Rússia e empenhou-se na conquista dos
mercados da América do Sul e África, a favorecer as empresas nacionais, como
todos os governos o fazem. Ao mesmo tempo, reativou a indústria bélica, com a
construção do submarino atômico e outros convencionais, em conexão com a França,
a compra dos helicópteros da Rússia e dos jatos da Suécia, países que aceitaram
transferir a tecnologia, como determinou a Estratégia Nacional de Defesa,
aprovada pelo Decreto Nº 6.703, de 18 De dezembro de 2008. E essa transferência
de tecnologia, que os Estados Unidos não aceitam realizar, é necessária,
indispensável, ao desenvolvimento econômico e à defesa do Brasil, pois “la
souveraineté est la grande muraille de la patrie”, conforme o grande jurista Rui
Barbosa proclamou, ao defender, na Conferência de Haia (2007), a igualdade dos
Estados soberanos. Outrossim, ele advertiu, citando Eduardo Prado, autor da obra
A ilusão Americana, que não se toma a sério a lei das nações, senão entre as
potências cujas forças se equilibram. Esta lição devia pautar a estratégia de
segurança e defesa nacional. O Brasil é e sempre foi um pivot country no
hemisfério sul devido à sua dimensão geográfica, demográfica e econômica, a
maior do hemisfério, abaixo dos Estados Unidos, apesar da assimetria. E
constituiu com a Rússia, Índia e China o bloco denominado BRIC, contraposto,
virtualmente, à hegemonia dos Estados Unidos, e abrir uma alternativa à
preponderância do dólar nas finanças e no comércio internacional. Tais fatores,
inter alia, como a exploração do petróleo pré-sal sob o controle da Petrobrás,
dentro de um contexto em que os Estados Unidos deflagraram outra guerra fria
contra a Rússia e, também, contra a China, concorreram para que interesses
estrangeiros, aliados a poderoso segmento do empresariado brasileiro, sobretudo
do Sul do país, encorajassem e financiassem o golpe parlamentar, conjugando a
mídia e o judiciário, com o apoio de vastas camadas das classes médias.
Como o senhor viu o processo do impeachment e a ascensão de Michel Temer ao
poder? Como em 1964, há quem diga que o golpe / impeachment atende a interesses
norte-americanos - desta feita, no pré-sal. O senhor acredita nesta hipótese?
O Estado brasileiro parece desintegrar-se. Nem durante a ditadura militar a
Polícia Federal invadiu o Congresso. Ela ganhou uma autonomia, que não podia
ter, não respeita governo nem a Constituição, e muitos de seus agentes são
treinados e conectados com o FBI, DEA, CIA etc. Os promotores-públicos e juízes,
por sua vez, passam por cima das leis, extrapolam, como senhores de um poder
absoluto e incontestável. Estão incólumes. Quase nunca são penalizados. E,
quando o são, afastados das funções, continuam a receber suas elevadas
remunerações, dez vezes ou mais superiores aos dos juízes da Alemanha, França,
Inglaterra, Estados Unidos e outros países altamente desenvolvidos, segundo a
European Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ) e outras fontes.
Certos magistrados do STF comportam-se como políticos partidários. Outros, que
se deviam resguardar, fazem declarações públicas, antecipando julgamentos, e
afiguram como se estivessem intimidados pela grande mídia, um oligopólio,
uníssono na condenação, aprovação ou omissão de fatos. O Congresso está
pervertido, muito dinheiro correu para a efetivação do impeachment da presidente
Dilma Rousseff, canalizado pela CIA e ONGs, financiadas sustentadas pelas
fundações de George Soros, USAID e National Endowment for Democracy (NED), dos
Estados Unidos. E esse golpe de Estado, que começou com as demonstrações em São
Paulo, no estilo recomendado pelo professor Gene Sharp, no seu manual Da
Ditadura à Democracia, traduzido para 24 idiomas, atendeu a interesses
estrangeiros, entre os quais, mas não apenas, não o único, a exploração das
camadas de pré-sal, que, de acordo com a Lei 12.351 estaria a cargo da
Petrobras, como operadora de todos os blocos contratados sob o regime de
partilha de produção, condição esta anulada pelo projeto 4.567, em tramitação na
Câmara de Deputados. Todo o alicerce da república, proclamada com o golpe de
Estado de 1889, está podre. É um lodaçal.
Como o senhor vê o juiz Sergio Moro? Herói inquestionável para uns, inquisidor a
serviço da plutocracia para outros, ele é sinônimo de polêmica, inclusive, por
que passou por um estágio no FBI, segundo a filosofa Marilena Chauí.
O que Marilena Chauí disse é, virtualmente, certo. De qualquer modo, o fato é
que o juiz Sérgio Moro, condutor do processo contra a Petrobras e contra as
grandes construtoras nacionais, realizou cursos no Departamento de Estado, em
2007. No ano seguinte, em 2008, o juiz Sérgio Moro passou um mês num programa
especial de treinamento na Escola de Direito de Harvard, em conjunto com sua
colega Gisele Lemke. E, em outubro de 2009, participou da conferência regional
sobre “Illicit Financial Crimes”, promovida no Rio de Janeiro pela Embaixada dos
Estados Unidos. A Agência Nacional de Segurança (NSA), que monitorou as
comunicações da Petrobras, descobriu a ocorrência de irregularidades e corrupção
de alguns militantes do PT e, possivelmente, passou informação sobre o doleiro
Alberto Yousseff, a delegado da Polícia e ao juiz Sérgio Moro, de Curitiba, já
treinado em ação multi-jurisdicional e práticas de investigação, inclusive com
demonstrações reais (como preparar testemunhas para delatar terceiros). Não sem
motivo o juiz Sérgio Moro foi eleito como um dos dez homens mais influentes do
mundo pela revista Time. Seu parceiro, o procurador-geral Rodrigo Janot,
acompanhado por investigadores federais da força-tarefa responsável pela
Operação Lava Jato, em fevereiro de 2015, foi a Washington buscar dados contra a
Petrobrás e lá se reuniu com o Departamento de Justiça, o diretor-geral do FBI,
James Comey, e funcionários da Securities and Exchange Commission (SEC). Sérgio
Moro e o procurador-geral da República Rodrigo Janot atuaram e atuam com órgãos
dos Estados Unidos, sem qualquer discrição, contra as companhias brasileiras,
atacando a indústria bélica nacional, inclusive a Eletronuclear, levando à
prisão seu presidente, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. E ainda mais
eles e agentes da Polícia Federal vazam, seletivamente, informações para a
mídia, com base em delações obtidas sob ameaças e coerção, com o objetivo de
envolver, sobretudo, o ex-presidente Lula. Os danos que causaram e estão a
causar à economia brasileira, interna e externamente, superam, em uma escala
muito maior, imensurável, todos os prejuízos que a corrupção, que eles dizem
combater. E continua a campanha para desestruturar as empresas brasileiras,
estatais e privadas, como a Odebrecht, que competem no mercado internacional,
América do Sul e África.
No Brasil e no mundo, parece estar ocorrendo uma espécie de levante conservador
antiprogressista. Quem o senhor acha que está por trás da paranoia anticomunista
que desenterraram lá dos anos 1950 em pleno século 21? A quais interesses serve
este tipo de manipulação da opinião pública?
Não estou a ver nenhuma paranoia anticomunista no Brasil nem na Europa. Em São
Paulo, os grupos de pessoas que levantaram a questão do comunismo, nas
demonstrações contra a presidente Dilma Rousseff, eram inexpressivos e ninguém
levou a sério. Aldo Rabelo, dirigente do PC do B, foi ministro da Defesa do
Brasil e nenhum problema houve com as Forças Armadas. Como o notável historiador
Eric Hobsbawm, que conheci em Londres em 1978, disse certa vez à agência de
notícias Telam, da Argentina, “já não existe esquerda tal como era”, seja
socialdemocrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Ele toda a
razão tinha. Entretanto, o elevado desenvolvimento tecnológico favoreceu a
concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda
mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o
fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política. E oito anos após o
colapso financeiro de 2007/2008, mais de 44 milhões de pessoas estão
desempregadas nos países da Europa e nos Estados Unidos. Mesmo assim, as grandes
corporações bancárias e industriais, o capital financeiro internacional, tratam
de impor ao país reformas no sentido de acabar com os direitos sociais,
conquistados pela classe trabalhadora ao longo do século XX. E, ainda mais, os
Estados Unidos pretendem eliminar a legislação nacional dos diversos países para
que os interesses das megacorporações multinacionais, do capital financeiro,
sobrepujam a soberania dos Estados nacionais nas relações econômicas e
comerciais, conforme estatuídas nos dos Tratado de Parceria Transatlântica
(TPA), Tratado Trans-Pacífico (TTO) e Tratado Internacional de Serviços (TISA).
Mas a resistência aumenta.
Numan Kurtulmus, vice-premiê turco, declarou (no dia 20 de outubro), que a
operação para libertar Mossul (Iraque) do Estado Islâmico e a guerra na Síria
podem levar Estados Unidos e Rússia a um conflito direto, uma “3ª Guerra
Mundial”. E ainda há a situação complicada na Ucrânia. Isto vai de encontro ao
tópico das “guerras por procuração” que o senhor desenvolve em seu livro.
Estamos a caminho de um conflito global?
O polo maior de tensão não é Mossul. É Aleppo, na Síria. Lá os Estados Unidos
estão em um beco sem saída. A cidade, a segunda maior e mais importante da
Síria, sob intenso bombardeio, está na iminência de cair sob o domínio completo
das forças de Bashar al-Assad. E se Aleppo cair, Damasco, que já conquistou
Latakia, Homs e Hama, dominará praticamente toda a Síria. Essas cidades
concentram 70% da população e os mais significativos redutos industriais e
praças de comércio do país, cujo resto do território é quase todo deserto. Os
Estados Unidos, entretanto, continuam a sustentar a resistência dos que chamam
de “rebeldes moderados”, na verdade, terroristas da Jabhat Fatah al-Sham (Frente
da Conquista da Síria), Jabhat al-Nusra, ramo de al-Qaeda na Síria, Ahrar
al-Sham e mais diversos grupos jihadistas. Por volta do dia 20 de outubro de
2016, a Rússia enviou dois maiores navios de sua Marinha de Guerra, o cruzador
de combate Pyotr Velikiy (099), movido a energia nuclear, e o porta-aviões
Almirante Kuznetsov para o leste do Mediterrâneo, com a tarefa de instituir uma
zona de exclusão naval de 1.500km, ao longo do litoral da Síria, e enfrentar
qualquer ataque de países do Ocidente contra Damasco. Por outro lado, uma
fragata da Marinha de Guerra da Alemanha e o porta-aviões Charles de Gaulle já
se dirigiram para a mesma região. Quanto à Ucrânia, Washington está consciente
de que a Rússia não vai devolver a Criméia e Kiev alternativa não tem senão
reconhecer a autonomia da região de Donbass, Donetsk e Luhansk. Não creio,
porém, que a Rússia e os Estados Unidos/OTAN cheguem, diretamente, a qualquer
confronto armado seja por causa da Ucrânia ou da Síria. Uma guerra nuclear
aniquilaria toda a humanidade.
 Há quem defenda os Estados Unidos como o país mais democrático do planeta. Mas
logo no primeiro capítulo do seu livro, o senhor relata uma tentativa de golpe
fascista em 1934, alinhado ao governo alemão hitlerista e bancado pela elite
econômica ianque. Há ainda o histórico de intervenções (abertas ou secretas) que
os EUA praticam em todo o mundo, inclusive no Brasil, sempre vendendo sua ideia
de “democracia”, também amplamente documentado em sua obra. O mundo ficaria
melhor sem essa política intervencionista? Ou ela serve ao equilíbrio de poder?
Os Estados Unidos, devido às suas tradições culturais e políticas e ao elevado
desenvolvimento do capitalismo, precisavam e precisam conservar a mantra do
“excepcionalismo”, do exemplo de democracia perfeita etc. Porém, a suposição de
que lá nunca houve golpes de Estado não corresponde propriamente aos fatos
históricos. Se nos Estados Unidos não houve golpes militares, ocorreram quatro
assassinatos de presidentes e cinco atentados, que fracassaram. Constituíram
atos de violência e aparentemente resultaram de conspirações, para mudança de
governo. Abraham Lincoln (1865), James Garfield (1881), William McKinley (1901)
e John F. Kennedy (1963) foram assinados. E Andrew Jackson (1835), Franklin D.
Roosevelt (1933) (como presidente eleito), Harry S Truman (1950), Gerald Ford
(1975) e Ronald Reagan (1981) sofreram tentativas de assassinato. No entanto, na
América espanhola, apesar da instabilidade, nunca geralmente ocorreu a
necessidade de matar o presidente, o que só ocorreu em meio de uma revolução ou
de um golpe militar, como, e.g., no Chile (Manuel de Balmaceda, 1891), Bolívia
(Gualberto Villarroel, 1946) e Chile (Salvador Allende, 1943) . Quase sempre
bastou que o Exército se rebelasse, desse um golpe e expulsasse ou exilasse o
presidente. É necessário, entretanto, não esquecer que os golpes de Estado,
ocorridos, sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, como no Brasil,
Argentina, Chile etc., foram encorajados pelos Estados Unidos, cujas
intervenções, diretas e/ou indiretas, só produziram, desde o fim da Guerra Fria,
guerras, terror, caos e catástrofes humanitárias.
A onda do ódio conservador atualmente em voga tem dado força a candidatos de
perfil bastante controverso, como Donald Trump, Marine Le Pen e no Brasil, Jair
Bolsonaro. O senhor acredita que eles possam chegar ao poder em seus países? Que
consequências adviriam da eleição deles?
 Jair Bolsonaro é caricatura, comparado com Donald Trump e Marine Le Pen. Não
creio que esse coronel, uma reminiscência grotesca do que houve de pior na
ditadura militar, pudesse ser eleito presidente no Brasil. Os fatores que
alimentam as candidaturas de Donald Trump (Hillary Clinton é uma excrescência
neoconservadora, responsável também pela sangueira na Líbia) e Marine le Pen são
outros e diversos. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama, do Partido
Democrata, é igual ou pior que seu antecessor George W. Bush, neoconservador do
Partido Republicano. Na França, François Hollande, do Partido Socialista, é da
mesma laia que seu adversário conservador e colonialista Nicolás Sarkozy. Entre
les deux mon cœur balance. Je ne sais pas laquell au pis-aller. E daí é que
Marine le Pen desponta.
 O senhor será homenageado pelos seus 80 anos na USP. Como se sente?
 Sinto-me confortado. É um reconhecimento de minha obra. Fiz meu doutoramento na
Universidade de São Paulo, onde sempre tive e tenho muitos amigos desde meus 20
anos de idade. Sinto muitas saudades e, infelizmente, meu coração, enfermo, não
mais me permite voar cerca de 11/12 horas para rever o Brasil. Morei muitos anos
em São Paulo e lá vivi, clandestinamente, durante a ditadura militar. E
profundamente grato sou as homenagens que meus queridos amigos e colegas da
União Brasileira de Escritores (UBE) e a Universidade de São estão prestar-me,
aos meus 80 anos. Vejo que meu trabalho, ao longo de tantas décadas, não foi em
vão. Frutificou.
 Qual sua relação com a Bahia hoje? O senhor tem memória afetiva daqui? Sente
falta?
 Apesar de viver tantos anos longe, nunca deixei de amar a Bahia, onde nasci e
me criei, até 18/19 anos de idade, quando passei para o Rio de Janeiro e São
Paulo e então me tornei citizen of the world. Porém meus vínculos com a Bahia
nunca se desvaneceram. São e continuam profundos. Sou descendente de Garcia
d’Ávila, da Casa da Torre, e de Diogo Moniz Barreto, que chegou à Bahia com Tomé
de Sousa e foi primeiro alcaide-mor de Salvador. Aí estão minhas raízes, que se
alastraram pelo Recôncavo e adjacências. Tenho muitas saudades da Bahia, a Bahia
histórica, a Bahia que sempre cultivou a cultura e deu ao Brasil grandes
escritores, poetas, romancistas, e homens de ciência. Na Bahia, recebi uma
educação humanística, desde o Colégio da Bahia, até o primeiro ano, na Faculdade
de Direito, no Portão da Piedade, o que me valeu para toda a minha vida e
carreira acadêmica, como cientista político e historiador. Nas duas instituições
de ensino tive excelentes professores, dos quais guardo as melhores recordações.
E sinto muito orgulho por haver recebido da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humana da UFBA, importante universidade de meu Estado natal, ora sob a gestão do
eminente reitor, Prof. Dr. João Carlos Salles, o título de Dr. honoris causa.
Sim, sinto falta de tudo, que tive, na minha infância e adolescência, da comida,
das moquecas, mas, até hoje, conquanto a viver na Alemanha há mais de 20 anos,
não dispenso a pimenta e a farinha.
Fonte: atarde.com.br
In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/o-estado-brasileiro-parece-desintegrar-se/
4/11/2016

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